Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

22 de junho de 2019

SAMBA EM TRÊS






Esse maravilhoso rebento geminado veio ao mundo recentemente, "Sozinho e bem acompanhado", do parceiro Maurício Ribeiro, com três canções cujas letras saíram das mesmas pontas de dedos que vos escrevem estas linhas. A já "aerada" e radiodifundida "Veneno Remédio", um pequeno tratado sobre a contagiante e contaminante atividade de torcer pela tevê, e as ainda pouco ventiladas "Às cegas", sombria leitura da velhice que agora me assombra como premonição da nefasta reforma da previdência, e "Samba em Três", pequena fantasia impregnada de sonoridades e referências icônicas caribenhas, respingo da minha ida a Cuba e quiçá do meu gene tropicalista recessivo. Estou felicíssimo de estar no meio de várias feras musicais, alguns igualmente gente querida da nossa cena belOUROizontina, num disco duplo gravado entre dois oceanos e expressivo de musicalidades que, se rompem fronteiras, também não desconhecem os respectivos berços.

Das três da safra, foi esta a última a germinar.  Tenho adotado às vezes o procedimento de manter os títulos provisórios que nomeiam arquivos de mp3 ou outros formatos que os parceiros me enviam, quase como se fosse um traço inconsciente falsamente acidental, que dá uma pista das motivações por trás da música que me chega. Podemos nesse caso observar que "Samba em Três" é um "metatítulo" que simultaneamente dá identidade E analisa o objeto musical que embala, na medida que ressalta esse caractere distintivo de sua lavra, ou seja, de que se trata de um samba em compasso ternário, raro para o gênero, mas com
antecedentes, ao feitio de Cravo e Canela, por exemplo. Sob o signo da síncope, estrofes muito econômicas e serelepes saltitavam em meus ouvidos. A sugestão de algo caribenho talvez tenha sido reforçada por esse recurso ao arquivo do repertório bituquiano, especialmente a versão gravada no disco Milton (1976) em terras da América do Norte. Ao mesmo tempo, a melodia sugeria versos curtos, com pouco "espaço" para digressões e especulações às quais às vezes me lanço. Senti que era preferível perseguir um estilo mais "telegráfico", livre e associativo, com frases soltas e ligadas pela temática, sem necessariamente apresentar uma sequência narrativa lógica.

A princípio, assim, o tema sugeriu um inventário geográfico, mais alusivo que propriamente descritivo. A inspiração estava ainda temperada pela inesquecível viagem que fizera a Cuba naquele mesmo 2016, cujas sonoridades aderiram ao ouvido da memória, aquele que não olvida. O eixo central da letra então se definiu a partir de duas listagens paralelas, países e gêneros musicais caribenhos. Inventário iniciado, alguns jogos com sonoridades e rimas foram surgido daí, especialmente a partir da 3ª estrofe - porém sem brincar propriamente com a mescla entre português e espanhol como fazem Chico na versão de Canción por la unidad latinoamericana e Caetano em Quero ir a Cuba. Mas se as primeiras estrofes parecem quase que pinçadas de peças publicitárias de agências turisticas e revistas de companhias aéres, o espírito crítico de historiador me sugeriu uma drástica virada de clima, como se um furacão tropical sacudisse tudo quando entra o "B". Borrei o painel idílico e eufórico com uma espécie de "crônica" icônica e abreviada da colonização e seus desdobramentos históricos e culturais na região do Caribe. Essa foi a última parte que escrevi, e a que me deu mais trabalho. Marcadamente distinta musicalmente, instalando uma certa suspensão e irregularidade no momento em que o ouvinte já vem de 4 estrofes com a mesma estrutura. É como se esse "B" dividisse a letra de tal modo que depois o "eu lírico" observador descreve um Caribe bem mais complexo, com esquemas de paraíso fiscal, intervenção militar, motim e outros conflitos armados entremeando as alusões amenas já evidenciadas na primeira parte. Finalmente, como persistente entusiasta do refrão que sou, 'pirateei' um ao repetir, com uma sutil alteração, a 4ª estrofe no 8º "A". 


Aproveito o vídeo divulgado pelo parceiro:
Hoje, recebendo o Triar aqui na Espanha, acordamos inspirados e nos juntamos pra um "desayuno musical". O arranjo de "Samba em três" (música minha com letra do Luiz Henrique Assis Garcia) vai ser aprimorado até o show de amanhã, no Cafe Mercedes Jazz, em Valencia. Mas já segue aqui o gostinho em vídeo, e os dados do show estão no link abaixo.

Samba em três (Maurício Ribeiro e Luiz Henrique Garcia)

Índia ocidental
Onde para o sol
Latitude vinte graus



Ilhas a granel
Mar que beija o céu
Bem no clima tropical

Passa o Panamá
Na Jamaica, Jah
Cúmbia na Colômbia

Bravos siboneys
Dançam samba em três
Habaneras ancestrais

Lá se converteu, se bebeu, por amor
Quente sangue que se verteu, por louvor
Serras, costas, botas e matagais
biltres, putas, padres e canibais,
escravos, senhores...

Granada, intervenção
Haiti, motim
Trinidad, não tá ruim

Nas Antilhas cais,
Mastros e canhões
Offshores sem fiscais

Grande Caimão
Rumba, Salsa, Son
Merengues dominicais

Bravos siboneys
Dançam ao som do Tres
Habaneras ancestrais