Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

2 de julho de 2020

Bolacha Completa - Djun (2012), de Mateus Bahiense

DJUN (2012) – disco de cabeceira que me acompanha a uns bons 7 ou 8 anos, sempre renovando o astral do ambiente sonoro com seus ritmos cadenciados e timbres mui bien selecionados – trazendo cores e sabores african@s, american@s, brasileir@s.

De fato, não é comum encontrar álbuns inteiros dedicados à percussão, mesmo falando somente de música instrumental. Em Minas Gerais, no Brasil e mesmo mundo afora, esse tipo de proposta é algo raro e, por isso mesmo, tem um sabor especial – daquelas ervas e temperos que nem todo mundo conhece e muitas vezes é difícil encontrar. Pois aí está: um achado. DJUN é um trabalho ímpar, sob vários pontos de vista.

Um grupo de músicos – uma roda de Djembê – liderados pelo grande amigo @mateus_bah parceiro já de longa data – apresenta neste disco um belo repertório de ritmos (dunumbé, djansa, balakulanjan, koukou, fankani, soli, n’goron) dançantes (por vezes hipnóticos) e texturas bem traçadas pelo diálogo/suporte dos presentes. E por falar em instrumentos... na maior parte das faixas predominam tambores – os potentes Djembês – tecendo uma contínua teia de estruturas rítmicas sobre as quais se sobrepõem motivos, comentários e solos. Além dos tambores, temos aqui também espaço privilegiado para um meta-instrumento, nobre filho da linhagem afro-brasileira: o Berimbau (aqui em versões diversas: gunga, médio e ‘viola’). Coral de Berimbaus, Orquestra de Tambores, o que mais tá faltando nessa caldeirada? O line-up se atualiza com a bateria firme e enxuta do Mateus Bahiense, instrumento de geração bem mais recente na diáspora afro-americana, e modernizando ainda mais a proposta, o líder do grupo também toca um instrumento digital/midi – o wavedrum – mostrando que ter raízes não significa negar outras ramificações e frutos!

Quem fecha a tampa dessa panela tão rica de sabores é um instrumento singular maravilhoso – e definitivamente africano – a KORA, uma harpa de 21 cordas, muito presente em todo oeste do continente negro, Guiné, Burkina Faso, Mali e Senegal. O músico senegalês Zal Idrissa Sissokho @zalsissokho – toca a luminosa Kora em apenas uma faixa do disco mas – na minha opinião – arremata com chave de ouro a bela proposta do álbum, nos levando às alturas mágicas de seu som modal, potencializando a raiz rítmica contagiante da base viva do grupo.

DJUN – mais uma gema preciosa das Minas Gerais – é mais um daqueles trabalhos musicais de qualidade que nem sempre aparecem na superfície do acesso midiático. Pra encontrar esse tipo de música é necessário farejar, sondar, cavar, para então desfrutar dessa variedade tão ímpar da nossa rica cultura musical. Vida longa à roda de tambores, motor vivo da nossa africanidade musical! Por falar em motor, acho que esse disco é perfeito pra ouvir no carro, trazendo fôlego e ritmo pro trânsito urbano ou – melhor – embalando paisagens e imagens poéticas na estrada da viagem Brasil/Mundo afora...

Por Felipe José


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