Após a apresentação ao vivo pela internet (vulgo "live") de Caetano Veloso e filhos na última sexta, a edição brasileira da revista Rolling Stone cometeu essa tremenda ga(r)fe:
Esse pequeno destaque se presta a uma análise que poderia até tomar o tamanho de um artigo. Como tantas vezes aqui no blog, o comentário oportuno, de ocasião, no calor do momento, tem sobretudo o objetivo de mostrar a relevância e capacidade de intervenção da história cultural e dos estudos sobre o patrimônio musical popular, sobretudo no contexto brasileiro.
Constatar o desconhecimento desse patrimônio e da história da música popular no Brasil, por parte do autor da notinha, é imediato. Trata-se de alguém com nenhum repertório, nenhum mísero átomo de conhecimento sobre a tradição do samba-de-roda, seja no Recôncavo Baiano - onde fica Santo Amaro da Purificação, terra da família Veloso - seja do samba em geral, uma vez que esse "recurso" seguiu sendo usado em terras cariocas "desde que o samba é samba". Desconhece ainda que esta forma de se reapropriar de objetos do dia a dia para fazer música é recorrente desde tempos imemoriais. E finalmente, que a marca do improviso revela um tanto sobre a criatividade popular e as formas de desdobrar as evidências do precário, do provisório. Tensões sociais que as classes pobres desvelam e enfrentam nas táticas improváveis e soluções imprevistas que nascem da força do improviso. Nada há de inusitado, ou cômico, nem faltou instrumento e muito menos a habilidade de percussionista de Moreno poderia ser assim desconectada de sua aproximação orgânica com tal tradição, muito menos massacrada pelo clichê roto proferido aos borbotões por certo apresentador de programa televisivo. Uma resposta que Caetano já deixou dada há décadas para a Rolling Stone, eco da explosão do tropicalismo: "Vocês não estão entendendo nada, absolutamente nada!”
Lamentável que esteja se perdendo entre os que tem espaço em mídias (sejam digitais ou não) a capacidade de reconhecer seu próprio desconhecimento e pesquisar para informar e formar melhor seus leitores, caindo facilmente nas armadilhas espetaculares de um tempo "homogêneo e vazio" (já dizia Benjamin, aliás um dos filósofos que mais bem tratou da tradição sem reificá-la, a meu ver), realçando que uma cultura desmemoriada exacerba a predileção pela barbárie. Sem História não temos perspectiva sobre quem fomos, somos, e para onde vamos. E para isso não se pode deixar tudo ao sabor do mercado, é preciso dedicar esforço e investimento públicos, é preciso reconhecer a centralidade da Cultura na construção de uma sociedade plural e justa.
Daí a importância de manter registros preservados e difundir fontes para apreciação e conhecimento de feitos culturais como o "prato e faca". Em meio às objeções lançadas por gente que conhece do riscado vemos menções a Dona Edith do Prato, baiana de Santo Amaro que deixou belos registros dessa arte em disco, ou João da Baiana, um dos artífices maiores do samba brasileiro desde as rodas e terreiros do Rio de Janeiro. Em disco, em filme, em objetos, depoimentos, documentos, nossa produção cultural merece todo cuidado. Louve-se, por exemplo, o trabalho do MIS do Rio de Janeiro - que começou por João da Baiana sua coleção de "Depoimentos para a posteridade" e incorporou prato que ele tocava em seu acervo de objetos [aqui], as iniciativas da família Veloso - entre tantas gravar com Dona Edith [aqui], ou do compositor francês Pierre Barouh que entre outras contribuições dirigiu o belo documentário Saravah (1972).
Eis a motivação central por trás da maioria dos projetos de pesquisa e trabalhos que conduzo na UFMG, atualmente reforçado por um esforço conjunto que se materializa no Grupo de Estudo SOMMUS (Som e Museologia), junto com estudantes de graduação e pós-graduação. Termos que reivindicar importância para estas coisas com tanto esforço é, em si, sintomático, porém cabe também aos pesquisadores participar do trabalho de superar essa ga(r)fe.