Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

21 de setembro de 2020

PAU BRASIL

A temática política sempre faz parte das minhas intenções na hora de fazer letras de canção, mesmo que não seja uma sugestão direta ou uma demanda explícita do parceiro que me manda a melodia. Lógico que isso não implicar em adotar uma forma de expressão panfletária, ideológica e manifesta. Mas a coisa não anda fácil no Brasil, temos convivido com tal intensidade de ocorrências absurdas em nosso cenário político que fica simplesmente impossível evitar essa tecla.

Foi assim que nos idos de 2019 finalizei a letra dessa canção cuja música me foi mandada pelo parceiro Daniel Guimarães. Era um negócio que já puxava a contundência, uma coisa roqueira e até mesmo marcial, mas que ao mesmo tempo tinha uma segunda parte mais melodiosa que sugeria como que um comentário ou ponderação à primeira. Nesta mesma época, eu estava lendo as correspondências entre Sérgio Buarque de Holanda e Mário de Andrade, e pensando muito sobre a brasilidade e suas contradições. Ainda que tenha sido de outro Andrade, o Oswald, que tenha pintado a inspiração para o título e o mote geral da letra. Para mim ter um título, ainda que provisório, dado por mim ou sugerido pelo parceiro, é quase indispensável. Neste caso foi muito certeiro, eu senti de cara que ia ser e ia puxar o resto da linha. Investi sobre a bandeira e os signos nacionais, talvez sob inevitável sombra de palmeira lançada por canções como Geleia Geral de Gil e Torquato ou da letra original de Fernando Brant para Ao que vai nascer. Daí a escolha de substantivos muito óbvios, um inventário militaresco pintando o quadro que é tão alusivo de conflitos entranhados em nossa História mas que igualmente se apresentam no agora, com suas cores próprias.  

Acabei de me dar conta que com os últimos acontecimentos a canção ficou ainda mais necessária. Por vezes o mínimo a fazer é produzir uma explosão catártica, para pelo menos não ficar simplesmente assistindo de camarote enquanto soterram o firmamento.

 


Pau Brasil (música de Daniel Guimarães e letra de Luiz H. Garcia)

Êêê chei-
ra o sangue, o arame, o metal
terra Brasil, ouro e pó
mata bandeira nacional

Êee fi-
ra, a mira, o animal
rito primal, pelotão
fuzil, trincheira, invasão

(b) A guerra, que erra e desfaz
Atrás da divisão
Soterra então
O firmamento

Êêê ati-
ra a pedra, o gás, o pau
tiro frontal, camburão
linha de frente, Capital

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