Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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3 de janeiro de 2019

Entre a terra e o céu, há Djavãos

A velha fórmula aplicada a Milton (um mistério que o Brasil entendeu) pode muito bem aplicar-se a Djavan, cantautor idiossincrático que consegue dar ao sofisticado a sensação de ser simples, ao estudado a sensação de ser intuitivo, ao enigma de suas letras a sensação de ser solução. Ele acaba de lançar um belo álbum, Vesúvio, que já recebeu boas resenhas [Mauro Ferreira] e deveria ser o foco da escuta e da conversa [entrevista]. Entretanto o assunto não é esse, mas um trecho de entrevista motivada pelo lançamento, no qual ele diz: “Eu estou muito esperançoso. Eu sou uma pessoa otimista. Eu tenho uma esperança de que o Brasil vai dar certo. Tudo o que acontece agora aponta para um futuro melhor. A gente não pode garantir, porque o governo ainda não está atuando, está apenas se formando, mas estou esperançoso” [para ver o vídeo, aqui]. A isto se seguiu um destemperado ataque virtual que não se restringiu à declaração, transformando em alvo sua pessoa e sua obra - a que ele respondeu. Como é difícil as pessoas entenderem das falhas daqueles em quem projetam, erroneamente, uma infalibilidade. Djavan se equivoca como todos nós podemos. E como Toquinho pode. E amanhã imagino que é razoável esperar que ambos, e tantos outros, se arrependam. Aliás, é das melhores coisas que podemos esperar pois os que caíram no engodo do fakeado poderão nos ajudar a refazer o que foi desfeito. É uma imaturidade. O amor, a admiração por uma obra, pelo artista, depende de entender sua humanidade.
Para piorar, aqueles que promovem qualquer tentativa de ponderação, nos quais me incluo, são também atacados em doses maiores ou menores de fúria santa daqueles que se outorgam o papel de policiais morais e ideológicos das redes sociais. Isto é bastante revelador de que o está morrendo é a capacidade crítica. As pessoas adotam um binarismo que, no final, será insuportável para elas mesmas. Falta ler um tiquinho. De repente só O alienista de Machado já as ajudaria a ver como o mundo é bem mais complicado do que elas querem achar. Querem atribuir aos que defendem distinguir e dar proporção entre uma opinião política criticável e a avaliação do que o artista criou por toda uma carreira a pecha de cumplicidade. Há uma aplicação muito equivocada dessa expressão "passar pano". Parece mais que se trata de um verdadeiro santo sudário. Ninguém está deixando de criticar, lamentar, discordar da fala de Djavan, que é péssima mesmo se contextualizada, uma vez que ele se contradiz ao se afirmar antibelicista e depositar expectativas no governo que começou. Isto está explícito. Isso, dito, ser um bom compositor não torna ninguém infalível. Qualquer ser humano se equivoca às vezes, e tomar uma entrevista como suficiente para anular uma obra inteira , uma vida inteira, é desmedido. Fazer crítica é ter medida, e não aplicar julgamentos que parecem partidos de divindades que supostamente estariam acima (!?) da falha que é própria da condição humana. Djavan, como todos nós, pode desentender inclusive de si mesmo. Na capa do disco, ele nos mira (e também se mira, pois ela seguramente é espelho diante dele) como esfinge, cuja música merece um ouvido que tente decifrá-la e devorá-la. Entre a terra e o céu, há Djavãos. Não devemos nos tornar surdos porque um deles fala o que não queremos ouvir. Ouçamos todos.



28 de janeiro de 2016

O sentido de Djavan

Aproveitando o ensejo do aniversário de Djavan, recordei-me de sua participação no ótimo programa O som do vinil, conduzido por Charles Gavin. Num dos momentos mais comentados, ao ser perguntado, Djavan adentra na polêmica criada por "alguns críticos" (sendo de fato Arthur Xexéo, colunista do jornal O Globo, o alvo principal que ele cita nominalmente) ao considerar versos de sua canção Açaí (do disco Luz, 1982) como expressão máxima de nonsense. Ele então desfia sua interpretação, bastante direta até, desarmando por completo a leitura "nonsense". Acho que nem precisaria. Só mesmo numa perspectiva muito tacanha do que pode ser a construção do sentido a partir da combinação alquímica da palavra e do som se poderia querer que apenas se constituísse na forma de um discurso óbvio e unívoco. A espetada disparado por Djavan ao final do trecho é mais que bem dada. 




Mas claro, o programa (parte 1; parte 2) não se resume a isso e como de costume dedica-se a enfocar um determinado momento da carreira do artista, gravitando em torno de um álbum considerado especialmente significativo em sua obra, como no caso é o "Luz", que traz canções consagradas de seu repertório como a própria Açaí, Sina, Samurai, e coisas lindas como Banho de rio. Enfim, vale ouvir o disco todo e também ler a entrevista. Separei aqui um trecho em que ele mapeia um pouco de sua formação musical, dos músicos que lhe influenciaram, o que sempre desperta meu interesse como pesquisador, que é entender (ou ao menos tentar) a forma como esse colecionamento de referências é de alguma forma amalgamado em criações que também tem traços muito distintivos, mas guardam os efeitos desse contato, de uma apreensão e um processamento de tudo isso:


Você ali no ambiente do nordeste, com toda a música nordestina, que é espetacular e faz parte da formação de todos nós. Mas você enveredou por outro caminho, não foi nem o samba, nem a música nordestina. Fala um pouco dessa formação que veio dar no seu som, na sua música.
Eu tenho a música nordestina como cama, digamos assim; é a minha base fundamental. É tanto que, se eu falo de influência, eu coloco Luiz Gonzaga numa ponta e os Beatles na outra, porque foram os dois sons que me formataram. É claro que dentro disso tudo, há jazz, bossa nova, bolero, baião. Eu sempre tive uma curiosidade muito grande sobre a diversidade. Para mim a grande graça era essa, eu jamais seria um especialista feliz porque eu sempre busquei a diversidade. Isso que sempre foi o motivo. Como se faz uma salsa, como que é a valsa, como que é o jazz. Eu sempre tive essa curiosidade e a minha geração tinha como valor uma formação voltada pra diversificação.

Sua geração enfatiza exatamente a diversidade, o Tropicalismo é exatamente isso.
Exato. Graças a Deus eu pude nascer no Nordeste e conviver com um homem como o Luiz Gonzaga, quer dizer, com a obra dele. Porque o Luiz Gonzaga, eu o considero simplesmente um dos artistas mais importantes do Brasil em todos os tempos. Ele era um melodista fabuloso, um harmonizador intuitivo, extremamente instigante e um cantor extraordinário. Letrista também, e teve grandes letristas ao seu redor a vida inteira. Ele trouxe a realidade do Brasil, sobretudo do Norte e Nordeste, para o mundo de uma maneira belíssima, criativíssima. Eu pude conviver com essa obra no momento em que eu estava me formando, com aquela curiosidade de menino músico, querendo ver como as coisas aconteciam, e tive o Luiz Gonzaga. Depois os Beatles; eles foram pra mim um revelação extraordinária, porque eu os conheci exatamente na época em que eu estava envolvido com a dissonância da Bossa Nova. A Bossa Nova lidava com os acordes dissonantes e tudo, era o grande trunfo do movimento, uma coisa que teve ligação com o jazz. Os Beatles vieram pra ensinar ao mundo a usar o acorde perfeito, que não era uma coisa muito aceita pelas pessoas que estavam vislumbrando esse universo da dissonância. E eles fizeram isso com uma propriedade incrível, com muito talento. Aquilo pra mim foi uma explosão de novidade; eu considero os Beatles e o Luiz Gonzaga os meus grandes influenciadores, embora eu tenha ouvido de tudo. Eu tive uma ligação com o jazz sempre muito grande. Eu ouvi todos os grandes do jazz durante muito tempo da minha vida. O meu contato com jazz aconteceu muito cedo porque eu tinha um amigo que gostava de mim porque eu cantava, e o pai dele era um médico, rico, morava numa casa bacana, tinha uma vida muito boa e ele tinha em casa uma discoteca fabulosa, de onde se encontrava de tudo; jazz, música latina, música africana. Ele tinha música africana em Maceió naquela época!