Feliz da vida de voltar a escrever sobre uma parceria assim que a gravação é lançada e começa a chegar aos ouvidos das pessoas. Cada canção, uma história. Ou várias, ainda mais quando passa um longo período entre a lavra e o lançamento, como é o caso desta. Enquanto tento rememorar, eu já sei, inclusive como alguém que se dedica a estudar a memória, que algo já se perdeu nesse caminho. Outro tanto, quem sabe, vou ganhar agora, ao recobrar a lembrança neste instante, no presente.
Estimo (nos dois sentidos) ter conhecido o parceiro Leandro César em meados da década passada. Tempo em que ele estava envolvido em projetos como o Festival Palavra Som e o Coletivo Casa Azul. Eu tinha retornado de Governador Valadares para BH em 2010, para tomar posse como professor do curso de Museologia da UFMG, e depois disso sei que levou algum tempo para me reconectar com a cena musical da cidade. Encontrar a galera da geração seguinte à minha agistando muito o coreto, com festivais autorais, discos, iniciativas coletivas de toda ordem, foi empolgante e estimulante. Além de tudo me comovia o fato dessa geração seguinte ter proximidade com a minha, conhecer nossos trabalhos, andar junto também. É um sentimento que ainda me toca muito, e que revela a densidade dessa cena autoral Belorizontina, Mineira, Brasileira, da qual tenho muito orgulho de fazer parte. Depois de um tempo nessa aproximação, naturalmente apareceram as primeiras parcerias. Leandro me passou duas melodias, uma delas era a que veio a ser Ouro Sa(n)grado. Acho que ela capta bem um aspecto fundamental que nos une, que é o esmero do ofício: ele como um artesão que se desdobra em tudo que cerca a música, de construir instumentos a compor, arranjar, tocar, cantar e gravar num estúdio que ele mesmo ergueu; eu um historiador e letrista, sempre querendo reunir com as palavras os sons e as histórias vividas.
Minha profissão costuma vir à baila nas sugestões feitas por parceiros quando me entregam uma melodia. Foi o caso. A princípio eu não queria fazer "mais uma" letra de canção sobre a escravidão colonial, um veio tradicional nas temáticas da música popular brasileira. Queria me arriscar numa leitura contemporânea atravessando a História do Brasil, conectando na forma de associações fragmentadas as explorações do passado e do presente. Tentei, mas não estava saindo tão bom quanto eu idealizara, o que ficou evidente pro meu parceiro até mais do que pra mim. Conversamos e eu retomei a feitura da letra numa abordagem mais sólida, tradicional, digamos assim. Mas de alguma maneira - quase sempre é assim - eu dei um jeito de adaptar a minha concepção original, casando a construção de uma narrativa relativamente contextualizada nas Minas coloniais. Logo eu, que apesar de ter sido orientando de IC da grande Carla Anastasia, queria evitar a Colônia, tema de estudos forte na UFMG, tanto que virei um historiador da cultura do Brasil República!
De todo modo aquela intenção de fugir de uma narrativa linear, pelo menos, preservou-se. Ainda que os versos da primeira e da sexta estrofes sejam "didáticos" ao recapitular a diáspora como travessia do Atlântico no navio negreiro (aqui adotei por sugestão do Leandro o sinônimo Tumbeiro) até as Minas, as demais eu montei a partir do recurso ao "icônico", minerando substantivos que remontavam num mosaico as imagens da exploração dos corpos e dos metais nestas terras. A este garimpo uni a labuta de ourives, que foi arruar rimas internas e reiteração de sonoridades. Acho que logrei captar a dialética da colonização, como diria o grande Alfredo Bosi, reunindo na composição elementos que aludiam a diferentes aspectos da experiência social dos escravizados, ainda que ponto de vista do eu lírico seja de empatia e ênfase no processo histórico que culmina, no saldo de tantas contradições no tempo, em sua libertação e afirmação como sujeitos.
Dentro da pegada do disco, orgânico, acústico, o arranjo - que fui ouvindo crescer num processo de gestação que o meu parceiro atenciosamente foi compartilhando comigo ao longo do tempo, quase como periódicos ultrassons - me cativou com suas cores e timbres, combinando energias telúricas que aludem à conexão do ser humano com a terra através da labuta com as da cultura que a transcende, alçando nossa imaginação ao sobrevoo que nos dá a ver as várias formas de desafio à opressão e sua superação. E que felicidade que esse canto tenha sido vestido na poderosa voz afrobrasileira de Sérgio Santos, além de tudo grande parceiro em composição de um de nossos maiores letristas, Paulo César Pinheiro. Ambos óbvias referências para qualquer compositor de música popular brasileira tratando deste tema.
Finalmente, no título, sobrou essa brincadeirinha formal, vanguardeira, que nem sempre as artes gráficas e editoriais captam. O "n" entre parêntesis sintetiza no jogo de sentido cambiante que evoca as faces da moeda colonial e seu papel na formação do Brasil. O fascinante na canção, como linguagem, é que podemos fazer isso sem que soe como uma aula. Compor é mais aprender, com a música e a língua, e compartilhar com os ouvintes a tremenda síntese de sua conjugação.
Ouro Sa(n)grado
Leandro
César & Luiz H. Garcia
Quando atravessou no cativeiro
Oceano,
vão entre dois mundos
Tumbeiro levou um povo inteiro
Fundo
do porão, futuro incerto
Corrente,
chibata, catedral
Seu
corpo, su’alma, seu coração
Pra
longe do seu chão
No dente, na tranca, no punhal
Na carne, no ventre, n’ oração
Resistiu
Na mina, na sina, no missal
No ouro sa(n)grado aluvião
Na fila, na vila, no curral
mercado, marcado, marginal
Senzala, serviço, união
No veio, no seio, na prisão, na palma da mão
Mistura o metal e a fé
na lança, na face, a multidão
na dança que atravessa o vão
Pra se libertar...
Quando
aqui chegou tanto tormento
Terra
dura cruz dos pés desnudos
Mineiro na lavra o dia inteiro
rude
escravidão, palavra nua
Cansaço,
no braço, um sinal
De
santo de guarda de devoção
Traz
perto seu irmão
No
dente, na tranca, no punhal
Na
carne, no ventre, n’ oração
Resistiu
Na
mina, na sina, no missal
No
ouro sa(n)grado aluvião
Na
fila, na vila, no curral
mercado,
marcado, marginal
Senzala,
serviço, união
No
veio, no seio, na prisão, na palma da mão
Mistura
o metal e a fé
na
lança, na face, a multidão
na
dança que atravessa o vão
Pra
se libertar...