Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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2 de janeiro de 2025

Bolacha completa: Cativo, ábum de Clayton Prósperi



Estou devendo há um tempão uma resenha desse trabalho impecável do meu parceiro e amigo Clayton Prósperi. Penso que entre as muitas conotações do título Cativo, a primeira que me ocorre é aquela de um vínculo férreo, mineral, do mesmo modo que dizemos “cadeira cativa”. Com ele, está reservado o lugar do Clayton neste vasto estádio da MPB, não na condição de mero espectador, continuador de seja o que for, e sim de criador com toda autoridade, maduro, de canções belíssimas e arranjos esmerados que receberam um registro de primeira categoria.

Cativados, no sentido hiperbólico de aprisionados, ficam os nossos ouvidos, conquistados pela inegável força desse repertório autoral que os convida a tudo. Ritmos hipnóticos, letras poéticas, harmonias ousadas, melodias voadoras. Tudo isso embalado numa produção impecável, acompanhado por gente que é do ramo, feito Tutuca, Ismael Tiso, Enéias Xavier e Teco Cardoso, entre outros. Encontramos um vasto panorama de invenção na música popular, que vai dos arranjos vocais aos solos de guitarra, das pausas sugestivas a energéticos pulsos de baixo, das faunas timbrísticas a alternâncias rítmicas que demonstram quão alargada e proficiente é a concepção de Cativo. É como se fôssemos alçados ao alto das montanhas do Sul de Minas e de lá divisássemos o mundo. Se a in/fluência da música e poesia mineira mais universal que há se apresenta, nas picadas abertas por monstros sagrados como Milton (onipresente), Toninho Horta (que toca em uma faixa) ou Drummond, também se apresenta o Prósperi com sua própria voz e caminhos, com suas teclas audazes que percutem não as cordas do piano, mas nossas fibras, neurônios, artérias.

Sim, habemos baladas, como a faixa título e Conta, ou Samba em sete, um compasso lunar, digamos assim, trova em toada como De Mar e de Drummond, hibridações que navegam por águas impressionistas até eventualmente as costas da península Ibérica, feito o par Vinheta da quietude/Inquietação (esta última em parceria com Edson Penha), ou a sutil brasilidade jobinianamente sincopada de Hora senhora. E claro, aquela mistura subversiva de fronteiras em que se pode reconhecer as pegadas dos sons imaginários de um certo Clube que ocupou a Esquina mais aberta do planeta, ouvida em Caminhante (com Talis Júlio) e Feira da fé, por exemplo.

Por fim, muito apropriado que a arte do álbum traga o traço extremamente humano da nossa querida Loló Weissman. É tudo, enfim, muito próprio e apropriado. E indisfarçável é a minha alegria em ter o Clayton como parceiro, com a sensação de que muitas canções ainda vamos botar nos trilhos dessa terra. Assim, pela Prosperidade da música popular brasileira, ouça. Se possível, de fone.




19 de abril de 2020

Bolacha completa - Terra, vento, caminho (1977), de Dércio Marques

Fico muito contente em inaugurar uma nova fase da coluna "Bolacha completa", trazendo como colunista convidado meu caríssimo e admirado Felipe José, compositor, multi-instrumentista e professor do curso de Música da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana). Quem quiser pode sacar melhor o trabalho e o currículo dessa grande figura. Estamos ainda desenhando uma proposta, mas podem esperar coisa boa a caminho, como séries temáticas dentro da coluna. Por agora fiquem com a postagem de estreia, que foi a motivação para esse convite. Vamos longe!


-- V --


Um disco de música forte e misteriosa, do mineiro (de Uberlândia) filho de Uruguaio, cabra forte e lamentavelmente muito pouco conhecido: Dércio Marques. Nesse álbum, o primeiro da carreira de #derciomarques - lançado em 1977 - aparecem canções de #atahualpayupanqui e também de #elomarfigueiramelo, além de canções autorais. Gosto muito dos arranjos e da força dessa música que não sei nomear... um misto de canção simples com música devocional pagã e mineiridade clássica (leia-se #sacroprofana). Uma beleza pra guardar direitinho no peito de gente humana.
Tive a sorte desse disco aparecer na minha mão um certo dia desavisadamente num sebo em São João del Rei, me me deleitei com um teor musical de tipo enigmático pra mim. Depois vim a saber, pela minha amiga @deatrancoso_oficial - também figura forte enigmática - que o tal Dércio era ligado à natureza e aos vegetais, e dei ainda mais valor à esse disco que conjuga coisas simples e poderosas: TERRA, VENTO, CAMINHO. De lá pra cá o escuto a tempos esparsos, sem me deter demasiado, mas sempre, a cada encontro, tenho uma sensação de força profunda, coisa de raiz de árvore grande. #minasgerais #musicamineira #musicabrasileira #violao #songs #latinoamerica #sertao #brasil #brasilprofundo #musicaboa #voz #ohminasgerais

Por Felipe José