Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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19 de abril de 2020

Bolacha completa - Terra, vento, caminho (1977), de Dércio Marques

Fico muito contente em inaugurar uma nova fase da coluna "Bolacha completa", trazendo como colunista convidado meu caríssimo e admirado Felipe José, compositor, multi-instrumentista e professor do curso de Música da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana). Quem quiser pode sacar melhor o trabalho e o currículo dessa grande figura. Estamos ainda desenhando uma proposta, mas podem esperar coisa boa a caminho, como séries temáticas dentro da coluna. Por agora fiquem com a postagem de estreia, que foi a motivação para esse convite. Vamos longe!


-- V --


Um disco de música forte e misteriosa, do mineiro (de Uberlândia) filho de Uruguaio, cabra forte e lamentavelmente muito pouco conhecido: Dércio Marques. Nesse álbum, o primeiro da carreira de #derciomarques - lançado em 1977 - aparecem canções de #atahualpayupanqui e também de #elomarfigueiramelo, além de canções autorais. Gosto muito dos arranjos e da força dessa música que não sei nomear... um misto de canção simples com música devocional pagã e mineiridade clássica (leia-se #sacroprofana). Uma beleza pra guardar direitinho no peito de gente humana.
Tive a sorte desse disco aparecer na minha mão um certo dia desavisadamente num sebo em São João del Rei, me me deleitei com um teor musical de tipo enigmático pra mim. Depois vim a saber, pela minha amiga @deatrancoso_oficial - também figura forte enigmática - que o tal Dércio era ligado à natureza e aos vegetais, e dei ainda mais valor à esse disco que conjuga coisas simples e poderosas: TERRA, VENTO, CAMINHO. De lá pra cá o escuto a tempos esparsos, sem me deter demasiado, mas sempre, a cada encontro, tenho uma sensação de força profunda, coisa de raiz de árvore grande. #minasgerais #musicamineira #musicabrasileira #violao #songs #latinoamerica #sertao #brasil #brasilprofundo #musicaboa #voz #ohminasgerais

Por Felipe José 

 

5 de março de 2018

Na estante: Le Grand Tango

Meu deleite do momento é essa magistral biografia de Piazzolla, que adquiri numa banca de rua na feira cultural no bairro de San Telmo, em Buenos Aires, no final do ano passado. Nos dias em que estive por lá, ir ouvindo a música enquanto lia a biografia em pleno centro de Buenos Aires dava uma sensação ímpar a tudo. Le Grand Tango: the life and music of Astor Piazzolla, escrito pela argentina María Susana Azzi (da Academia Nacional de Tango e da Fundação Piazzolla)  e pelo estadunidense Simon Collier (latinoamericanista e professor da Universidade Vanderbilt). Pesquisa de fôlego (5 anos), entrevistas, material de arquivo, texto agradável, análises decentes, sem medo de usar termos técnicos mas conseguindo dar a ideia a qualquer leigo, detalhes curiosos - por exemplo, Piazzolla quando adolescente conheceu Gardel em Nova Iorque e quase esteve na sua trupe como ajudante na viagem à Colômbia que matou o grande ídolo argentino. Que vida movimentada e que figura foi Piazzolla. Ler uma biografia dessa modifica totalmente a forma de ouvir a música do artista biografado. 







"Quando você se casa com a música , ela é seu amor para sempre, e você vai para o túmulo com ela". Piazzolla!

P.S.
Um dos pontos altos do livro é a passagem de Piazzolla pelo Brasil em 1972, quando Nana e Dori Caymmi o levaram para ver o show de Milton Nascimento no Rio - à época do disco Clube da Esquina. Na sequência o argentino e seu conjunto tocaram num espaço privado para uma plateia de músicos brasileiros que incluiu, além do trio já mencionado, Chico Buarque, Egberto Gismonti, Luiz Eça e outros. Após a reunião de depoimentos e casos dessa passagem, fica inclusive a sugestão dos autores para que se escreva um livro devotado às conexões de Piazzolla com a cena musical brasileira, reforçada pelo relato de um diálogo entre ele e Caetano, no qual ele indaga ao baiano porque não o tratam na Argentina como o Brasil lhe trata.

P.S. 2 - acrescento essa entrevista que traz vários assuntos tratados no livro e acabei de assistir por indicação do músico argentino Lisandro Massa. 

 

1 de fevereiro de 2014

O outro lado do Grammy

Assisti, erraticamente, à cerimônia do Grammy 2014, basicamente pela presença de Paul McCartney e Ringo Starr. Pois depois de ver o Ringo e os veteranos da All Starr Band tocarem Photograph, fazendo seu som de forma digna e apresentando-se de modo a colocar a música em primeiro plano, assistir a pirotecnia e encenação de "artistas" quem não tocam e não cantam nada foi um verdadeiro castigo, do qual tentei me poupar o melhor que pude. Tanto que perdi os dois juntos no palco tocando Queenie eye rsrsrs e celebrar os 50 anos do início da invasão britânica. Depois vi pelo You Tube, antes que os donos dos direitos do evento saíssem bloqueando. Enfim, é um negócio da indústria cultural com N, nem compensa render muito em cima disso não.  Acontece que o Trio Corrente, um dos mais prestigiados da música instrumental  brasileira atualmente, levou junto com Paquito D'Rivera o troféu de melhor álbum de jazz latino pelo CD “Song For Maura”. O que não foi devidamente noticiado, inclusive porque ocorreu naquele limbo das premiações paralelas. Acabei lendo a matéria escrita por Kiko Nogueira [completa, aqui], que chamou-me a atenção por conter o relato do pianista Fabio Torres, que "contou o que é ganhar um Grammy sem que ninguém note muito". Um relato vivo e sincero que transcrevo porque é um jeito de ver o outro lado da coisa:

Eu, o baterista Edu Ribeiro e o baixista Paulo Paulelli fazemos música instrumental brasileira, tocando basicamente os grandes autores do choro, do samba e da bossa, como Jobim, Pixinguinha e Baden, e também nossas próprias composições. Escrevo sob o impacto do prêmio por nós recebido no dia 26 de janeiro, o Grammy de melhor álbum de jazz latino, pelo CD “Song for Maura”. Esse trabalho foi fruto de uma parceria entre o Trio Corrente e o saxofonista cubano radicado nos EUA, Paquito D’Rivera. Muita gente me disse: “Eu assisti a cerimônia do Grammy na TV e não vi vocês lá”. É bom esclarecer que além dessa premiação televisionada que reúne as grandes estrelas do Pop, num teatro menor ao lado do imenso Staples Center é realizada uma outra cerimônia que entrega 72 Grammys para as mais diversas categorias como jazz, gospel, música clássica e outras.
Pois bem, é aí que estão incríveis grupos de música de câmara, compositores e intérpretes de música erudita, bem como alguns dos jazzistas mais conceituados dos EUA e do mundo.  Vimos alguns de nossos ídolos ganhando ou perdendo seus prêmios na nossa frente. E, esperamos 40 categorias – mais ou menos 2 horas – até chegar nossa vez. Apenas um brasileiro havia faturado essa categoria até hoje, nosso maestro Tom Jobim em 1996.
Eu fiz de tudo pra fugir do espírito de competição, exorcizar o terrível “winners and losers” dos americanos. Mas o fato é que foram duas horas da mais terrível angústia. E o instante em que anunciaram nosso nome foi algo indescritível. Sim, é um pouco piegas, mas foi exatamente isso. Uma mistura de alívio com extrema felicidade. Pensei também na enorme e artificial distância que nos separava dos outros indicados preteridos. Após nos tornarmos “Grammy Winners” nos tiraram da platéia e nos levaram pra sessões de fotos e entrevistas enquanto os outros eram como que abandonados à própria sorte.
Logo depois fomos ao Staples Center assistir a premiação das estrelas do pop, rock, country, rap etc. Eu estava acompanhado de minha filha e entramos pelo tapete vermelho junto com dois caras com roupas de robô. Também havia muitas luzes e burburinho mas sou completamente ignorante em matérias de ícones pop. Minha filha acha que no centro de uma rodinha muito agitada pela qual passamos estava a Madonna…mas podia ser a…Taylor Swift??
Vimos de pertinho o Paul e o Ringo, o Stevie Wonder e uma negra muito, muito linda que, há pouco descobri, se chama Beyoncé. Claro que, para ouvidos de músico experiente, foi fácil identificar muitos artistas sem nenhuma substância musical, alguns inclusive sendo consagrados e que serão vítimas da efemeridade inclemente. Assim como foi fácil perceber o porquê de alguns veteranos fazerem sucesso durante tanto tempo, tal a verdade de sua arte.
Toda essa experiência inusual me fez pensar muito sobre a música, o sucesso. Pensei na distância que separava a nossa música da música daquelas estrelas. Pensei na estrutura imensa, paquidérmica, que move essa fábrica de celebridades e no quanto, cada vez mais, essa estrutura será ameaçada pela multiplicidade de vozes que a internet traz. 
Muitas pessoas se queixaram da ausência do Trio Corrente na televisão brasileira, na noite da premiação. Achavam que deveria ser destacado o fato de artistas brasileiros serem premiados. Estarei sendo sincero em confessar que isso não diminui nem sequer uma ínfima fração de meu contentamento. Não tenho televisão em casa e tive a sorte de conhecer uma moça que também não tinha e me casar com ela.

Trio Corrente & Paquito D' Rivera
Festival Internacional de Jazz de Punta del Este - Uruguay
Janeiro de 2011

Paquito D'Rivera -clarinete
Fabio Torres - piano
Paulo Paulelli - contrabaixo
Edu Ribeiro - bateria