Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

7 de setembro de 2012

Mais uma lista...

A rádio Eldorado FM, o Estadao.com e o jornal ‘O Estado de S. Paulo’ acabaram de realizar uma enquete aberta ao público, perguntando qual o melhor álbum brasileiro da história. Com mais de 25 mil votos de  computados, Ventura, da banda Los Hermanos, foi o vencedor, com 2.816 votos [veja o “Top 10” e uma breve entrevista com Marcelo Camelo aqui]. Os organizadores fizeram uma lista prévia com 30 álbuns [aqui] e depois os internautas escolheram o seu preferido dentro da mesma. Mesmo essa listagem prévia traz vários problemas e poderia ter escrito sobre eles. Mas agora não compensa. Essas listas feitas com enquetes são cheias de falhas, mas uma boa parte diminuiria com uma simples alteração no enunciado: os "x" discos brasileiros preferidos pelos leitores desse jornal, ou pelos internautas, em todos os tempos. Acho que essas enquetes não promovem uma apreciação do melhor, e sim medem preferência, de uma forma totalmente impossível de se qualificar. Enquanto eu voto pensando numa série de critérios, outro está votando pensando noutros (não preciso entrar no mérito desses critérios, apenas indico que não tem como garantir que todos estejam votando da mesma forma). Dessa forma o resultado é tolo, pois transforma numa simples soma coisas de ordem diferente. Ou seja, no fundo, não quer dizer muita coisa. Mas o pesquisador pode ser instigado justamente por isso, para ver o que consegue extrair.
Conseguiram colocar 11 discos entre os 10+. Se fizessem como é lógico, com um empate "subtraindo" a posição seguinte, Tropicália ficaria em 10° e o Roberto Carlos fora. Isso é muito suspeito, considerando as relações interessadas entre as rádios e as gravadoras. Não há, na lista toda um único disco independente, mesmo que haja artistas que possam ser considerados "alternativos". Qualquer lista dessa é, também, um produto de mercado.
O texto de avaliação do 1° colocado incorre em inconsistências significativas. Diz ao final que "(...) O disco foi bem recebido pela crítica, mas teve pouca repercussão popular. Com Ventura, a banda conquistou amplo prestígio, virou fenômeno pop e viu sua legião de fãs multiplicar em larga escala.". Não dá pra entender, certo? O autor faz no fundo uma avaliação anacrônica, atribuindo à repercussão do disco fatos bem posteriores de seu lançamento. O que ele deveria ter constatado, basicamente, é que Ventura está em primeiro na enquente porque a geração que tende a votar nele tem um convívio muito cotidiano e familiarizado a com internet. Não é, nem de longe, o melhor, e se considerarmos o peso cultural não pode ser equiparado ao Chega de Saudade, por exemplo, que nem entre os 10 ficou. O fator geracional pesa demais nessa listagem, inclusive na prévia. Enquanto ele é o único dos anos 2000, temos um disco dos Titãs e outro do Legião Urbana na década de 1980, e todos os outros são da década de 1970. Será que antes não foi gravado nada melhor? Não é por acaso. A sonoridade dos 1970 aparece hoje como referência forte em muitas bandas e compositores jovens, refletindo também nas preferências de seus ouvintes. Curioso pois a apreciação feita na própria época é muito marcada por expressões como esgotamento, crise criativa, impasse, etc. Vi muito esse tipo de relato na pesquisa de mestrado. Naquele momento, era grande a percepção que contrastava a produção com a que marcara a década anterior, já no rastro da Bossa Nova, com a emergência da MPB e depois o Tropicalismo. Fiz toda uma discussão mostrando como a crítica dos 1970 queria avaliar a produção da época com a medida do passado, esperando um novo "movimento". Poderia continuar "espremendo", mas em resumo, independente de achar muito interessante o Clube da Esquina em segundo, considero essa enquete aí extremamente enviesada e seu maior valor é provocar reflexões que possam ir além de suas fraquezas. 



3 comentários:

  1. Então, toda lista, acho que é vítima de controvérsias, por princípio. A questão é a metodologia para se computar votos motivados por critérios tão díspares assim. Claro que a questão geracional (o fato de ser a votação na internet influi em quem vota, logo, nos resultados) é importante. Mas acho que a minha mãe (que é uma analfabeta digital, diga-se de passagem, e que entende um pouco de música), não discordaria tão veementemente da lista. Esse dos Los Hermanos (que é um disco bem mediano, para não dizer fraco) está em primeiro lugar, muito provavelmente, porque digere de maneira bem palatável, uma série de misturas um tanto quanto indigestas para o paladar geral de sua época e que ironicamente aparecem nos últimos lugares entre os 10 mais. Enfim, esse tipo de metodologia de simplesmente computar de maneira quantitativa, uma lista reduzida dos mais mais, me parece fornecer uma fotografia, um instantâneo, do gosto médio no momento em que ela é tirada. Leva em conta o que impactou num período de curto prazo (até 10 ou 15 anos atrás), com as referências daquilo que está no topo da crença de uma crítica cultural na atualidade. Se a eleição fosse a 5 ou 6 anos atrás, talvez quem estaria na primeira posição seria o Chico Science e a Nação Zumbi, com o Da Lama ao caos (que diga-se de passagem, é muito melhor que o Los Hermanos). Quando realizada daqui a 5 ou 6 anos, não me assustaria se tivesse no topo um Janeci da vida... Enfim, acho que essas listas são importantes para se ter um instantâneo do momento. E se a questão é a metodologia, a das listas da Rolling Stone é muito mais coerente.

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  2. Pedro Marra, observações oportunas. Pena que os meios não convidam gente assim pra organizar as benditas listas! Mas queria ter mais dados (por exemplo, a idade de quem votou) pra definir melhor o gosto de quem a lista permite fotografar. Tem muitas variáveis que influenciam. Me pergunto, por exemplo, se o fato do Clube da Esquina (álbum) estar comemorando 40 anos e sendo agora incensado de uma forma praticamente inédita em "canais" que os internautas que votaram acessam não teve influência direta em sua colocação. O que nesse sentido, dialeticamente, faz com que um álbum desse alcance um certo público que não o ouviria se não o visse assim classificado nesse tipo de lista.

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  3. Mas cá entre nós... dá pra tentar "advinhar" o público votante pelos resultados e pelo que anda tocando no main stream "meio intelectual, meio de esquerda" da atualidade, não? Ah... e pelos jornalistas que elaboraram a pré lista também (todo jornalista tem um certo perfil de leitores, que usualmente os lêem para ver sua opinião refletida nos grandes meios).
    E, engraçado... não colocaria um disco do clube da esquina na minha lista de X mais. Mas aí, a questão é comigo mesmo. Meu santo não bate com a música feita pelo Milton, Lô Borges, Beto Guedes e cia, fazer o quê, né? Mas respeito e até entendo a importância deles.
    Abs!

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