Pensando aqui em mais o quê escrever sobre Milton Nascimento. Penso primeiro que poderia falar a partir de minha experiência de ouvinte, das lembranças de desde criança, ouvindo fragmentos de sua obra impressionante nas fitas K7 do meu pai, com sua eclética organização. Assim fazia um esboço de Milton, uma Travessia ao lado de um Carro de boi, um Gran Circo do lado de uma Fazenda, sentir o Cio da Terra e de repente soprar uma Canção do Sal, depois a da América, e voar de avião "nas asas da Panair", andar no trem "da Bahia-Minas, estrada natural". Me aproximo de uma hipótese sobre esse repertório das fitas, que creio que refletia os momentos de maior presença do Milton para o grande público, que foram seu surgimento no festival em 1967 e a partir de meados da década de 1970, em que alcançou grandes patamares de vendagem e platéia em shows. Mas aí já é o pesquisador falando, péra um pouco. Vou puxando da memória a impressão, o impacto, mas na verdade penso que quando era criança ouvia aquilo como se fosse o som do rio correndo, como se fosse o cascalho rolando, o sol nascendo, a vida vivendo. Depois fui descobrir, na adolescência, outro Milton, o que tinha uma obra e tinha um Clube da Esquina, o que arrefeceu meu "beatlemanismo" e me fez escrever na introdução da tese que
Ainda que eu não pudesse expressar de forma consistente ou em termos conceituais, instintivamente percebi as afinidades entre a música que ouvia ali e os trabalhos dos Beatles. Aquilo parecia bem mais próximo das minhas referências, mas simultaneamente “afinava” minha percepção, criava uma ponte para que eu fizesse a travessia. A partir de então meu horizonte de escuta ampliou-se e gradativamente superei a fase da beatlemania, interessando-me mais e mais pela música popular brasileira. Como resultado, depois de algum tempo, a composição de meu acervo pessoal mudou bastante, incorporando os discos dos membros do Clube, de Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, João Bosco, Edu Lobo, entre outros nomes da chamada MPB.(GARCIA, 2007)
Só por aí dá pra sentir o peso dele na minha trajetória. No violão, ia (e ainda vou) aprendendo e desaprendendo as músicas difíceis, harmonias e variações rítmicas inalcançáveis pro tocador limitado e indisciplinado que sou. Mas felizmente há outras formas de apre(e)nder e fui me aproximando desse outro Milton, referência para criar, objeto de admiração mas também de estudo. Ouvir suas canções é entrar num imenso oceano de possibilidades, um planeta inteiro de ideias. Um troço inclassificável. Claro que aí vai aparecendo o Milton Nascimento que está lá, também, nas pesquisas, o Milton que de certa forma não é mais, porque é "recortado", é o personagem na história, o protagonista de outro enredo, em outro tempo. Aí me deu vontade de ressaltar um lado que às vezes é negligenciado, que é o engajamento político dele durante a ditadura. Vou pinçar um trecho da boa e velha dissertação que não me deixa na mão, em cima do LP Milagre dos Peixes e da canção Menino:
ALVES vê Milton Nascimento como um dos compositores mais visados pela censura, ressaltando aí a proibição das letras de três canções do disco Milagre dos Peixes(1973): Hoje é dia de El Rey, Cadê e Escravos de Jó. Para ela, a resposta do compositor seria exatamente denunciar “(...)as dificuldades de se escrever músicas hoje(...)”[1]. A reação de Milton à sistemática censura do LP: ia “botar no som tudo o que eles tiraram na letra. Eles vão ver comigo...”[2]. O disco apareceu com a metade das músicas instrumentais, mas vocalizadas de maneira a deixar explícita sua natureza de canção e a censura das letras. O encarte trazia mesmo o crédito aos letristas, de maneira a explicitar de forma brusca aquele corte profundo. Os gritos de Milton traziam em sua crua selvageria um sinal da rebeldia ancestral que as palavras muitas vezes não lograrão descrever. SOUZA fala em uma verdadeira “estética do silêncio” que traduz a generosidade do cantor[3].A gravação de Hoje é dia de El Rey preservava um enigmático “filho meu...”, como se as palavras, privadas de seu significado original, estivessem ali apenas para deixar evidente que houvera censura. A letra censurada trazia a descrição de um presente negro, sem amor e poesia, que deveria ser superado pela luta: “(...)Se hoje é triste a verdade/procure nova poesia/ procure nova alegria/para amanhã (...)”[4]. O próprio autor Márcio Borges repara tratar-se aí da comum imagem do “dia que virá”. O que estaria sendo censurado? Talvez, as referências claras à luta armada, soldados, guerra. Mas o que realmente chama a atenção na letra é sua forma de diálogo, que retrata o conflito entre duas gerações, duas mentalidades. A luta entre o pai e o filho torna-se representação alegórica do conflito social entendido pelo prisma geracional. Podemos ver El Rey como a encarnação do governo, que o pai apoia e contra o qual o filho se rebela, inclusive através de armas. A canção procura assim situar os conflitos próprios daquele momento no Brasil num quadro muito mais amplo, de um conflito geracional.Conflito este que também se traduz na violência sofrida pelos jovens durante a repressão do período ditatorial. Ao tratar da morte do estudante Edson Luís alguns anos depois, os músicos do Clube a transformaram numa alegoria do “corpo político” dos cidadãos. O silêncio assume a face de sua morte. Se o anjo da história não pode recolher os mortos, cabe ao historiador materialista redimi-lo para que a derrota não se cumpra duas vezes. Romper o silêncio, gritando, instaura vida. O relógio no chão avisa a hora, o tempo do agora, a hora em que cada um é chamado a gritar, a preencher o espaço vazio com um som, o grito que é a caveira da voz, o primeiro som do recém-nascido e o último dos moribundos – a ressonância da vida na morte. A interrupção é feita por raios de efeitos de guitarras, e feita pela sensação do alarme de incêndio, alertando contra o perigo de que todos se calem e aceitem o curso inexorável da história:
Menino(Milton Nascimento/Ronaldo Bastos)“ Quem cala sobre teu corpo / Consente na tua morte /Talhada a ferro e fogo / Nas profundezas do corte / Que a bala riscou no peito / Quem cala morre contigo / Mais morto que estás agora/ Relógio no chão da praça / Batendo, avisando a hora / Que a raiva traçou no tempo / No incêndio repetindo / O brilho do teu cabelo / Quem grita vive contigo”Violão e voz: Milton Nascimento / Guitarra: Nelson ÂngeloBaixo acústico: Novelli / Guitarras(efeitos): N. Ângelo e T. HortaBateria: Robertinho Silva / Órgão: João Donato[5] (GARCIA, 2000)
[1] ALVES,
Magda. op.cit.p.92.
[2]
BORGES, Márcio. op.cit., p.306.
[3] SOUZA,
Tárik. “Sem palavras”. Veja. São
Paulo: Abril, 11/06/1973, p.76.
[4]
BORGES, Márcio. op.cit., p.304.
[5] L.P. Minas. Rio de Janeiro: EMI, 1975.
Enfim, ainda haveria coisas por dizer, mas se deixar vou passar da data do aniversário de 70 anos do Bituca, desses Bitucas todos de que falei um pouco. E o bom é que ainda falta o que entender, sobra algum mistério pra desvendar nos Miltons e seus mil sons geniais, que um crítico uma vez comparou a uma esfinge, ou como disse Gilberto Gil ... "O Milton é um mistério que o povo brasileiro soube decifrar".
A interpretação fulminante da Elis pra essa música "Menino" é arrepiante.
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