Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

14 de outubro de 2012

Redescobrir o Brasil

É, vai ser preciso redescobrir o Brasil. Parecemos, como sociedade, cada vez mais dispostos a esquecer coisas que nos distinguem. Faço minhas as palavras do Chico: "Eu já tô de saco cheio". Pensei que entraríamos o século XXI sendo, ainda que na utopia, ainda que nas promessas douradas do sol, ainda que no desejo, ainda que no canto e na conversa, ainda que no jeito de corpo, ainda que fosse a macumba pra turista E a prova dos nove, pensei que buscaríamos nesse novo século algo diferente, que seríamos para o mundo uma fonte, ainda que imperfeita, de inspiração para outras formas de sociedade, de solidariedade, de interculturalidade, de amizade. Que nada... vamos repetindo estúpidas retóricas, vamos adotando modelos de desenvolvimento fracassados, vamos imitando o que já fizeram de pior, vamos fabricando os guetos que ainda não tínhamos e vamos jogando fora o que temos de alternativa, nos tornando o espelho de Próspero em sua face de maior fracasso. Que tristeza...

Como a reflexão se beneficio da audição de Partido Alto, uma reflexão malandra sobre o Brasil, pensei em aproveitar o ensejo e deixar aqui essas referências importantes sobre a história desse samba e seu entrevero com a censura.
De bem com o público e de mal com a censura, Chico Buarque desenvolveu intensa atividade artística em 1972, que incluiu a participação como ator e autor da trilha sonora no filme Quando o Carnaval Chegar, a peça musical Calabar (que não chegou a ser encenada), versões para o espetáculo O Homem de La Mancha e, por fim, um show com Caetano Veloso, no Teatro Castro Alves, em Salvador. Uma das músicas compostas para o filme foi o samba Partido Alto, que se tornou um sucesso, em gravação do MPB 4. Imitando, sem rigorismo musicológico, essa forma primitiva de samba, ele criou uma espirituosa letra em que, entremeadas por um refrão, são cantadas quatro estrofes, procurando dar a impressão de que elas estão sendo improvisadas por partideiros. E sem prejuízo do humor, aproveitou para lançar mais algumas farpas contra a ditadura - "Deus me deu mão de veludo pra fazer carícia / Deus me deu muitas saudades e muita preguiça / Deus me deu pernas compridas e muita malícia / pra correr atrás de bola e fugir da polícia / um dia ainda sou notícia..." Como era fácil de prever, a censura considerou o samba "uma ofensa ao povo brasileiro" e só consentiu em sua liberação depois de vetar algumas palavras como "titica" ("Como é que pôs no mundo essa pouca titica", que passou a "pobre coisica") e "brasileiro" ("Na barriga da miséria eu nasci brasileiro", substituído por "batuqueiro"). Partido Alto tem uma versão francesa com o curioso título de "Qui Ces't Lui-lá?"
  Zuza Homem de Mello, 85 anos de Música Brasileira Vol. 2, 1ª edição, 1997, editora 34
A música só pôde ser gravada com a substituição de titica por coisica e brasileiro por batuqueiro. Nesse episódio, um censor com ar britânico e o último best seller de Mario Puzo na mão, puxou a orelha de Chico: "Como é que você, que fez uma música bonita como Construção, agora vem com esta falando em titica e saco cheio?"
  Humberto Werneck, Chico Buarque Letra e Música, Cia da Letras, 1989
Também gostaria de deixar aqui uma canção de lavra mais recente, que pra mim ganha esse sentido de redescoberta do Brasil, e me parece que fica ainda mais atual e contundende ao falar em miscigenação num momento em que adentramos o seco e binário mundo das cotas. 
Trata-se de Casa Grande, canção que Pablo Castro compôs e Juliana Perdigão interpretou em seu Álbum Desconhecido (2011)
04 Casa Grande by Juliana Perdigão

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