Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

30 de outubro de 2012

Machado, maxixe, espetáculo!

Eis que hoje me deparo com essa peça, "Breve História da Música Popular Brasileira", atividade dos alunos do curso de Licenciatura em Música do Izabela Hendrix, conduzida pelo "peça", grande músico - e agora se revelando um professor igualmente criativo - Avelar Jr. Uma iniciativa pra lá de bacana que me fez recordar dos tempos de doutorado pela citação do conto Um homem célebre (1896) de Machado de Assis, estudado no ensaio Machado Maxixe: o caso Pestana de José Miguel Wisnik.


Foi daquelas inserções de última hora, descoberta meio casual. Tinha comigo a coletânea Sem receita, do Wisnik, precioso empréstimo de meu parceiro Pablo Castro, mas por causa de outro texto, "O minuto e o milênio ou Por favor, professor, uma década de cada vez", referência importante, muito citado e tal. Mas o tal caso Pestana calhou de ser muito mais interessante, inclusive porque se aproximava de um outro texto que eu tinha encontrado de Machado sobre a polca, citado num desses livros genericões sobre história da música popular brasileira (era praticamente a única coisa que de fato me chamara a atenção ali). Lembro-me até hoje da pressa com que devorei o conto, catado numa edição de obras completas de Machado daquelas da Nova Aguilar, em pé na biblioteca do Unileste-MG, na frente da estante. Essa recuada no tempo, muito fora do recorte proposto para o grosso da tese, era muito em função de que as discussões sobre trocas culturais na historiografia tratavam esse momento como chave, e discutia ali conceitos e dilemas que continuariam presentes, ainda que transmutados, em outros contextos históricos como o que eu propunha estudar, em torno do "nacional" e do "popular". Segue uma provinha:
Neste ponto, a literatura tende a ressaltar o re-processamento local dos gêneros importados – polca-lundu, maxixe, etc. (PERRONE & DUNN, 2001:8; MACHADO, 2002:75-76; entre outros). Aliás, uma crônica de Machado de Assis, escrita para a Gazeta de Notícias em 1887, é bem exemplar:

“Mas e a polca? A póla veio
de longe terras estranhas
galgando o que achou permeio
mares, cidades, montanhas (...)
Pusemo-lhe a melhor graça
No título que é dengoso
Já requebro, já chalaça
Ou lépido ou langoroso”

Surge aqui todo um vocabulário recorrente nas abordagens sobre a música popular brasileira, que aponta o “molejo”, o “requebrar” como índice de brasilidade. Expressões sintetizadas, musicalmente, pela figura da síncope. É significativo que José Miguel WISNIK, no ensaio Machado Maxixe: o caso Pestana, mencione a mesma crônica e destaque através das palavras “requebro” e “saracoteio” o procedimento rítmico que sugere a aplicação da síncope à polca (WISNIK, 2004: 45). Através dos dilemas do protagonista do conto Um homem célebre (1896), Pestana, bem sucedido músico popular que almeja compor uma sublime obra clássica, Machado de Assis penetra nos conflitos e cruzamentos que marcam a vida musical brasileira no final do século XIX, revelados, por exemplo, através da passagem da polca ao maxixe (WISNIK, 2004: 21). [GARCIA, 2007]

Nenhum comentário:

Postar um comentário