Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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14 de fevereiro de 2020

Garotos da capa

Repercute desde ontem a notícia [da Folha e reproduzida] de que os hoje cinquentões Antônio Carlos Rosa de Oliveira — o Cacau—, e José Antônio Rimes — o Tonho, aqueles garotos cuja fotografia numa beira de estrada, captada pelas lentes atentas do grande Cafi em seu périplo na região serrana do Rio de Janeiro ao lado do letrista Ronaldo Bastos, estampa a capa do disco Clube da Esquina, estão processando Milton Nascimento, Lô Borges, EMI (hoje incorporada à Universal Music) e Editora Abril,  em protesto a direitos de imagem que lhes são devidos.

A questão é aplicar a Lei, o que neste país - a despeito da caríssima estrutura do Judiciário, excessivamente prestigiada com privilégios e pompas desnecessárias - parece tão difícil de aplicar, ainda que seja até óbvia para quem tem senso e um mínimo de interpretação de texto. A constituição de 1988 garantiu direito de imagem, depois foi regulamentado [aqui], como exponho abaixo:

Código Civil de 2002:
“Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais."

Uma coisa é a pessoa abrir mão, com ciência, do seu Direito, e isso ficar documentado, e outra ser lesada, ainda que estejam todos os agentes cobertos de "boas intenções". O Brasil virou esse faroeste porque ninguém entende isso, ninguém sabe o que é Direito e quase todo mundo quer saber mesmo é de privilégio. A imagem é deles e eles merecem uma remuneração, qual vai ser quem decide é a Justiça. Oportunista é Paulo Guedes da vida. Esses dois são caras pobres, que só recentemente se deram conta que foram parte de uma coisa grande , que deu grana, e eles não viram a cor. Só quando o Estado de Minas reencontrou os garotos [aqui] e houve grande repercussão [aqui] é que eles se deram conta. Vejo muita gente falando em advogado oportunista, mas isso denota também um enorme desconhecimento da realidade social dos mais pobres desse país. Tem gente que acha que todo mundo pode pagar advogado, tem parente advogado. Muita ignorância. Agora, quem se preocupar com isso arrume então um advogado confiável para dar uma consultoria gratuita a Cacau e Tonho, para assegurar que eles não serão ludibriados. Além de tudo, os caras são filhos de camponeses... se fosse anos 1960, 1970, a galera do Clube toda ia defender essas pessoas. Tenho lido comentários de gente que se diz fã dessas músicas, desses artistas, que ou não entendeu nada, ou então está empenhada em esvaziar o significado daquilo tudo, transformando lutas dignas pelo povo brasileiro em material que serve à massagem de uma estranha "consciência social" narcisista. É justa e pertinente a reivindicação, apenas quanto a incidência em cima de reedições recentes, quando a legislação já prevê o direito de imagem. E, lógico, o réu principal é a gravadora, que obviamente fará de tudo para protelar e não pagar o que deve. Talvez o Ronaldo Bastos possa ser implicado, se em algum momento ele "deteve" o direito da capa - isso não está claro. Sobre isso temos que aguardar a Justiça se pronunciar.

Se essa capa - na verdade contracapa - já tinha História, agora tem mais um capítulo. Que síntese do que sempre foi o Brasil está nela!



8 de abril de 2017

Lô Borges "Meu Filme" ao vivo no Rival (RJ) 1996

Sempre quis postar o vídeo desse show, em que o Lô, ladeado pelos competentíssimos irmãos Beto e Wilson Lopes, todos aos violões, desfia várias pérolas de sua obra e as novas canções do então recém lançado "Meu Filme". Em geral encontrava cópias com má qualidade de vídeo, ou de áudio e vídeo, como essa. Vale pelo depoimento incial do Lô, falando de sua relação com o violão, e para sacar a música que abriu, que foi Para Lennon e McCartney, com o Lô sapecando um solo no final. De Equatorial em diante já podemos passar a assistir nesse vídeo diferente, que acabei de encontrar. Se a qualidade do sinal do som não é maravilhosa, o vídeo sim, é o melhor que eu já vi desse show.


Seria maravilhoso se isso um dia fosse um DVD. Uma das coisas que me preocupa no eminente sucateamento da rede pública de televisão é justamente o acervo que está constituiu, muitas vezes na contramão do que o mercado procura destacar. Certamente em meados dos anos 1990, se quisermos saber de toda uma produção da música popular brasileira que não se prendia às necessidades e ambições comerciais, vamos ter que recorrer ao acervo da tv pública, como Cultura, Rede Minas e TVE - Rio, que foi quem registrou esse belo show de forma que pudéssemos assisti-lo mais de 20 anos depois.


25 de setembro de 2016

POR TODO O UNIVERSO




Pra contar a história da letra dessa canção eu poderia começar de tantos pontos diferentes no tempo... há alguns meses, em maio deste ano, aconteceu um show do meu parceiro Pablo Castro e banda (Guilherme De Marco (guitarra) Paulim Sartori (baixo) D'Artagnan Oliveira (bateria) Alê Fonseca (teclado) n'A Autêntica - bastião da canção autoral nas plagas do Curral D'El Rei - com participação antológica de Lô Borges tocando, segundo as palavras do próprio, o mais próximo do original os clássicos Trem Azul, Um girassol... e Para Lennon e McCartney. Foi demais, inesquecível e inenarrável... Não vou tentar descrever em palavras o que o Lô representa pra nós. Eu só conseguia lembrar da gente no apê que o Pablo morava, na Zoroastro Torres, ele tirando os discos do álbum que tinha aqueles dois meninos, um branco e um negro, pondo pra rolar, a gente ouvindo (entre tantos outros), e ele me mostrando as canções dele e depois a gente começando a fazer as nossas parcerias. E depois vi um longo arco do tempo descrevendo o desenho que levou até a noite daquele dia. Coisa de sonho real.
Eis que, no final de julho, o Pablo me telefona cheio de novidades, dentre elas a que motiva essa postagem, ou seja, que estava compondo uma canção com o Lô. Quase fiquei sem fala - quase, porque imediatamente perguntei se já tinha letra. Ele tinha começado, mas não estava propriamente satisfeito. Não hesitei, me prontificando a entrar na história e dar prosseguimento. Nos últimos tempos temos feito algumas canções assim, e pelo entendimento de tantos anos de parceria e amizade não há mistério nisso. Dessa vez, porém, um ingrediente a mais, e que ingrediente. Tremendamente generoso o Lô, nessa história toda. Quis trabalhar rápido, como se fosse preciso colocar logo a mão no troféu, não deixar escapar a oportunidade. Como pontos de partida, a gravação caseira, Pablo e Lô tocando a canção ainda sem letra, um A e um B e a partícula final lançada pelo Lô. E a parte da letra iniciada pelo Pablo, de que mantive até alguns versos inteiros (como Ávido, virei fiel/A cada sua aparição ), a ideia de usar proparoxítonas ( súbito, cálido, ávido, e depois lancei mais algumas, como órbita, átomos, partículas) e o tema romântico, contudo sem pieguice. Mas ainda faltava aquele conceito pra amarrar, sem o qual dificilmente eu consigo trabalhar. Foi pintando a temática sideral, muito forte na obra do Lô, e por ser a astronomia um assunto que curto desde a infância, enquanto o Pablo sempre teve uma ligação com astrologia. Custei mas achei o começo novo para a letra, pensando literalmente no começo do universo. Como bom fã de Cosmos penso que acertei na escolha de "pincel da Criação" - seria plausível imaginar Carl Sagan começando um programa comentando o teto da Capela Sistina, se é que não aconteceu mesmo. Como disse o Luiz Gabriel Lopes em sua relampejante leitura da canção, "referência bibliográfica é MATO". Se deixar enfio um monte mas ao mesmo tempo não poderia ficar parecendo um texto de astrofísica. Achei então os "sábios", lembrando da imagem de alquimistas, astrólogos antigos, etc., como a ilustração que tinha num livro que eu guardei desde criança e reproduzi aqui. Daí parti para aquele verdadeiro inventário do vocabulário afim, pensando especialmente em constelações, pois a ideia seria descrever a relação amorosa por meio delas. Quase tudo caiu, virou estrela cadente: Cruzeiro do Sul, cinturão de Órion, Hércules e o Leão, Virgem, Libra, Gêmeos...

Enfim, era um tipo de amor que oscilava entre o transcendental e a matéria, e me veio a ideia do cometa, puxado pela palavra "aparição", e ele por sua vez puxou "rastro" e "farol". Com alguns comentários feitos depois que a canção se tornou pública eu acabei recordando que a nossa geração teve uma onda com o cometa Halley e também que eu quando criança viajava muito pra Campinas-SP em ônibus da viação Cometa. Curiosamente, foi dentro de um ônibus, a caminho do campus da UFMG na Pampulha (ou na volta, talvez), que rascunhei mais uma boa parte da letra, usando pra tirar ideias um pequeno livro de astronomia para crianças que foi dos meus filhos e no dia que concluímos a letra dei para o filho do Pablo, meu afilhado. Foi dentro do busão que achei a chave da letra do B (escrevi: as leis da atração; gravidade; corpos) e saquei o título, homenageando a canção dos Beatles "Across the universe", que já foi lindamente gravada pelo Toninho Horta. Enfim, a gente, o Lô, Clube da Esquina e Beatles, nem preciso continuar explicando né. Daí encontrei também o lance do final, E ao final restar o nosso amor além/pelo bem de quem ainda amar a versão personalizada que eu sempre quis fazer dos versos de The End do medley final do Abbey Road. A partir daí não tive como fugir do desejo de fazer várias citações / homenagens às canções e aos letristas do Clube - Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Murilo Antunes, referências importantíssimas pra nós, ideias que ia anotando no verso de página de cópia de um artigo acadêmico escrito faz um tempo. Mas esse ouro não vou entregar, deixo pros leitores a tarefa de sair identificando letras citadas, estilos. Minto, vou dar a pista de uma só, porque é bem fora da curva: existe uma citação indireta, lateral, a uma canção de Hendrix. As outras são relativamente fáceis. Pra concluir, na gravação que eu tinha e fiquei ouvindo na viagem de ônibus (sim, porque da minha casa ao campus, com trânsito bom, gasto no mínimo 40 minutos), no final o Lô falava rapidamente sobre a última parte, usando a palavra "partícula". Resolvi que iria colocar essa palavra na letra, por mais inusitada e difícil de encaixar. Acabou saindo toda uma ideia para o final, pensando na morte e renascimento dos astros, na dança da matéria, no balé dos átomos. Foi literalmente como um cometa que essa canção pintou no nosso céu. Que ela tenha um destino no mínimo equivalente à emoção que foi fazê-la, e possa entrar na órbita da vida das pessoas.




link alternativo para o vídeo

Por Todo o Universo ( Pablo Castro / Lô Borges / Luiz Henrique Garcia ) 

Sábios contam como o céu nasceu
Breve feito o raio rompe meu breu
Súbito mas natural
O pincel da Criação
Espalhou constelações ao léu


Véu que veste a noite se despiu
Órbita precisa de um cometa
Ávido, virei fiel
A cada sua aparição
O seu rastro certo é meu farol


Linhas do destino
O que se aproxima
Touro guarda a rosa pra domar meu coração


Lei da gravidade
invade nossos corpos
Por todo o universo em expansão


A cada beijo seu aflora um sol
Na espiral da minha Via Láctea
Cálido e atemporal
Nebulosa em combustão
Concebendo estrelas num lençol


Se tudo terminar numa explosão
Partículas de um sonho violeta
Átomos que fomos nós
par a par irão bailar
colorindo o espaço sideral


Linhas...

E ao final restar o nosso amor além
pelo bem de quem ainda amar

20 de julho de 2016

Canções irmãs, compositores irmãos

Tempo de férias é tempo de dedicar um pouco mais de atenção ao blog. Tirar a poeira aqui e ali, arrumar links quebrados, pensar em novidades, retomar ideias que a falta de tempo não permitiu levar adiante. Enquanto isso vão pintando postagens sugeridas por conversas ou navegações internáuticas, como por exemplo o comentário que segue, do meu parceiro Pablo Castro, sobre as "canções irmãs".A curiosidade extra é que a inspiração foram canções compostas por compositores irmãos [o que pode vir a ser tema de outra postagem]. Obviamente a grande amizade entre parceiros ou companheiros de banda pode ser vista como uma forma de irmandade também, o que certamente é verdadeiro para todos os que estão mencionados no comentário:

"Lô e Márcio Borges fizeram uma espécie de sequência da balada Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor, chamada Onde a Gente Está, com o mesmo tipo de abordagem.
Adoro canções irmãs. Os Beatles fizeram muitas vezes isso. George fez Here Comes The Sun e depois Here Comes the Moon, While My Guitar Gently Weeps e depois This Guitar Can´t Keep From Crying.
Paul fez Yesterday e depois Tomorrow, Blackbird e depois Bluebird. Caetano fez Você é Linda e depois Você é Minha. Gil foi além : Refazenda, Refavela, Rebento, Realce, e também Extra e Raça Humana. São canções irmanadas. São como côncavos e convexos. "


Lô Borges, Márcio Borges e Wanderson Eller em intervalo de show de Lô no Circo Voador. Rio de Janeiro, RJ - 1986. [Acervo Museu Clube da Esquina]

Acabei fazendo uma playlist com a maioria das citadas para acompanhar a leitura.


23 de agosto de 2015

Outras 30 mais genias do Clube da Esquina - Bônus de anúncio: Chuva na Montanha

Depois de uma longa e frutífera reunião entre autor e editor, na tarde de ontem, venho por meio desse pequeno anúncio comunicar ao respeitável público, em grande estilo, a retomada da publicação das análises críticas holísticas e finíssimas de Pablo Castro para completar a segunda série, com as 18 restantes da lista Outras 30 mais geniais do Clube da Esquina. Desenvolvemos juntos uma complexa e criteriosa tabela para tornar o processo de escolha das canções equilibrado e instigante. Através de poderosa tempestade cerebral provocada por uma nuvem cigana que pairou sobre nossas cabeças no entardecer do dia anterior, elaboramos uma pré lista de 50 possibilidades - o que demonstra tanto o peso da obra do Clube da Esquina quanto a dificuldade da tarefa de escolher as que devem entrar no rol das geniais. 
E a recarga das baterias demanda também recalibrar as linhas de transmissão, ou seja, convidar mais uma vez a todos que já acompanham a saga da lista e a novos navegantes que porventura desejem zarpar para que se aprontem, pois a nau vai deixar o cais rumo ao campo de pesca submarina dessas 18 pérolas restantes. 
Como aperitivo, chamariz, bônus, segue o texto que o Pablo acabou de escrever sobre Chuva na montanha, de Fernando Orly, gravada por Lô no LP A Via-Láctea (1979).

"O Lô Borges criou uma dicção tão clara que eventualmente outros compositores lhe faziam músicas que é difícil não acreditar que fossem de sua própria autoria, como na excelente e relaxante Chuva na Montanha, De Fernando Oly , que, entre alguns compassos de três numa música de resto 4/4, roda várias inversões dos mesmos 3 acordes, embora o efeito seja de constante progressão. Afora um ou outro mais, basicamente a canção se limita a esses três, a saber : G7M(9) , Eb7M e D7(11)(9), num tom de Sol Maior.
O elemento extraordinário desse arranjo é a soberba linha de baixo de Paulino Carvalho , conjugando perfeitamente a funcionalidade harmônica com prolixidade das linhas melódicas de forma impressionante. Considero os arranjos de baixo de Paulinho uma evolução das linhas mccartneyanas que transformaram o instrumento num protagonista expressivo das canções, só que num território harmônico mais simples e menos ambíguo do que as dicções montanhesas de Lô .Quem dera as músicas pop-radiofônicas de hoje tivessem esse nível de inventividade e originalidade."


4 de novembro de 2014

Outras 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro - 2a. parte

Retomando agora, após permanecer em estado de hibernação e enfrentar uma longa seca, a nova lista de mais 30 canções geniais do Clube da Esquina retorna em grande estilo, para embalar, com as costumeiras análises minuciosas de meu grande parceiro e amigo Pablo Castro. Sem mais delongas!
6. Aqui, oh!
Agora, de Toninho Horta e Fernando Brant, samba acelerado e molhado de tempero harmônico que só Toninho sabe fazer :
A ironia dissimulada da letra de Aqui, oh! pode levar o ouvinte a se enganar, julgando ser um samba mineiro exaltação ; trata-se, na verdade, de uma crítica sagaz a Minas Gerais, onde “alegria é guardada em cofres, catedrais “ , “ tem benção de Deus todo aquele que trabalha no escritório”, onde “um caminhão leve quem ficou por vinte anos ou mais” ... os desníveis e o sentido profundamente vertical das montanhas são traduzidos pela austeridade, a severidade do julgamento, o rigor da moral cristã, a condenação ao “trabalho sério”, a vida dignificada na penitência da avareza , no recolhimento e na apropriação sacramental da riqueza, e a humilhação de ter que ir a pé até o “pai”, figura suprema da encarnação da autoridade e dos deveres de um homem de bem. Até mesmo a redenção do amor encontrado na varanda, que representaria um escape desse universo rígido e opressor, em modulação na harmonia, é subitamente enquadrada na mesma equação em que tudo o mais é posto, como mais um dos frutos benditos concedidos pelo senhor ao homem honrado que cumpre suas obrigações. ( Em “Ele Falava Nisso Todo Dia”, de Gil, o protagonista da narrativa tem um destino tragicômico , em decorrência da busca incessante da segurança financeira ...) O eu lírico dessa canção se compraz com a ironia de sua mirada a Minas, sem cair no amaldiçoamento de Crônica da Casa Assassinada , do romancista Lúcio Cardoso, para quem Minas , segundo suas palavras, deveria ser simbolicamente destruída, por ser fonte de repressão atávica, mas também longe de uma louvação ufanista banal ; Minas aparece aqui como espelho de sinais ambíguos e invertidos da vida que se preconiza e aquela que, de fato, se vive, ainda que a pé e sem um tostão.
Toda essa ambigüidade e profusão de sentidos é expressa pelas harmonias altamente temperadas de Toninho Horta, embora encadeadas em firme quadratura , num tom de Mi Maior ; a forma já menos clássica, com uma parte A de 20 compassos , desembocando em uma breve parte B , modulada para Fá Sustenido, “na varanda eu vejo o meu amor”, em seis compassos, seguida por uma espécie de estribilho : “bendito é o fruto dessas Minas Gerais” .
Interessante notar como o movimento pendular dos dois primeiros acordes da música, E7M(9) e C7M(13)(9), depois dá lugar a um tempo mais longo de E7M , seguido por um Lá alterado , A7(9)(#11)(13) , depois do que o ritmo harmônico se acelera . O percurso harmônico insinua uma modulação não-confirmada para Sol Maior, com Am7(9) e D7(13) , quando o que vem é a cascata de dominantes, G#7(13), G#7(b13), C#7(11)(9) , C#7(b9)(#11) , e voltando ao tom por meio da sequência F#m(7)(9) ( Segundo grau do campo harmônico de Mi Maior) , G#m7(9) ( Terceiro grau alterado, pela nona justa, do mesmo campo harmônico) , Am7(9) (Quarto grau menor) e B7(11)(b9) (Quinto grau dominante do homônimo Mi Menor) . e voltamos, brevemente ao tom de Mi, para mais uma volta ao dominante do dominante do dominante (C#7(b9) ) e enfatizamos mais tempo o Dominante do Dominante, F#7(9)(13). Esse acorde tem um sentido irônico, quase jocoso, o que enfatiza a mensagem provocativa da letra. E ele é repetido como um amuleto modal para os vários compassos de improviso que costumam preencher essa canção, transformada por muitas vezes em tema para improvisação.
A primeira versão dessa canção saiu no disco da igrejinha, o Milton Nascimento de 1969, com o próprio Toninho no violão e no contracanto; de fato, essa era a primeira composição dele a ser gravada por Bituca, de uma série de pérolas, e também traz a assinatura do então jovem Fernando Brant. Mais tarde, em 1983, Toninho lançaria uma versão de Aqui, oh! no seu segundo disco, já com uma instrumentação mais recheada e virtuosística a provar o desafio de improvisar sobre tão elaborada harmonia. De todos os membros do Clube, o único a fazer frequentemente sambas foi o Toninho, mas sambas tão molhados de sua concepção harmônica, que passaram despercebidos aos guetos tradicionais do gênero.

Aqui , Oh! ( Toninho Horta e Fernando Brant)

Oh Minas Gerais
Um caminhão leva quem ficou
Ou vinte anos, ou mais
Eu iria a pé
Oh, meu amor
Eu iria até meu pai
Sem um tostão
Em Minas Gerais a alegria é
Guardada em cofres, catedrais
Na varanda eu vejo o meu amor
Tem bênção de Deus
Todo aquele que trabalha no escritório
Bendito é o fruto (x3)
dessas Minas Gerais
(Minas Gerais...)




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7. Nascente ( Flávio Venturini – Murilo Antunes )
Balada suprema de Flávio Venturini e Murilo Antunes, já eternizada em dezenas de releituras, Nascente lhes valeu o convite para o ingresso no restrito grupo de compositores gravados por Milton Nascimento, na década de 70, quando, depois da estréia em gravação do primeiro disco de Beto Guedes, A Página do Relâmpago Elétrico, de 77, ela foi regravada no Clube da Esquina II , no ano seguinte, com participação vocal do próprio Flávio , e arranjo do grande Francis Hime.
Mas a versão que tenho como base é mesmo a primeira, de Beto, em que este canta seu falsete metálico e executa a bateria, o compositor Flávio no órgão, Novelli ao piano, Nelson Ângelo ao violão e Toninho Horta no baixo e na orquestração. A introdução se vale de ataques repentinos e suspense que vai sendo cautelosamente criado pela alternância de piano, violão, órgão e os pratos do cantor. Essa introdução, que depois volta sob a função de interlúdio instrumental, é essencial para o efeito que a melodia vocal causa ao entrar a voz : atacando, depois de um salto, dramaticamente a quarta justa da escala do tom recém-descoberto Sol Maior, o começo da melodia é já uma espécie de apogeu antecipado, de uma força incomum para a primeira frase vocal.
A letra, de um erotismo a um mesmo tempo incandescente e contido, vagueia entre metáforas visuais, quando a “estrela” aponta a nota mais aguda e alta da tessitura melódica, e surpreende pelo cume de seu salto ; nada é devidamente desentranhado desse rol de imagens que seja mais prosaico ; ao contrário, o sentimento da canção jorra muito além do que qualquer racionalização pudesse explicar. E Nascente é uma das baladas com maior carga de emoção que pode acometer um cantor : as poucas e sintéticas frases da música tem em cada nota uma densidade emotiva fora do comum.
A forma também é engenhosa, embora também firmemente ancorada em quadraturas. A introdução nos leva a um passeio de Mi Menor até a clarificação de Sol Maior, seu relativo, em 8 lentos compassos , cada um nos respectivos acordes : Em7 / F#m7 / F7M / F#m7 / D7M/F# / F7M(9) / Em7(9) / Eb6(b5) / D7(4)(9) . Então, a voz entra “clareando” , em appogiatura da quarta para a terça maior, em duas notas longas , de meio compasso cada. Segue-se uma inclinação para o relativo Mi Menor, a partir do qual o ritmo harmônico dobra e mais uma vez se inclina para o mesmo Mi Menor. Dessa vez, a descendente do baixo nos leva a C7M( quarto grau), alternando com C#m7(b5), e proporcionando uma ambigüidade clássica entre um tom maior e seu relativo menor, no caso, Sol Maior e Mi Menor. Logo em seguida, temos a repetição do desenvolvimento da parte A, a partir do momento em que aparece o Mi Menor. Trata-se de um efeito formal sutil , distintivo, e nada vulgar, de fazer o giro na canção sem voltar sempre no mesmo começo do ciclo.
Nascente carrega em si , dessa forma, os méritos de seu grande sucesso, e aponta , de certa forma, a direção de seu compositor : baladas românticas tomadas de grandes metáforas visuais e jorros de emoção melódica e alguma ambigüidade harmônica. Tanto é assim que Flávio Venturini, assim que saiu do 14 Bis, lançou um disco tendo ela como canção-título, inaugurando uma bem sucedida carreira muito pautada já por essa canção. "

Nascente ( Flávio Venturini - Murilo Antunes )

Clareia manhã
O sol vai esconder a clara estrela
Ardente, pérola do céu refletindo teus olhos
A luz do dia a contemplar teu corpo
Sedento, louco de prazer e desejos
Ardentes




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8. Bodas ( Milton Nascimento e Ruy Guerra)
O cineasta, poeta , dramaturgo e letrista Ruy Guerra era parceiro de Milton Nascimento, antes e depois de escrever a peça censurada Calabar*, ao lado de Chico Buarque e assina algumas das letras mais violentas** contra a ditadura militar que figuram no cancioneiro do Clube da Esquina. Destacam-se Canto Latino, E Daí, e Bodas.
O sax-tenor Paulo Moura imita as trombetas do inferno que foi a invasão das Américas pelos europeus, e um ataque imperial de Robertinho Silva em seus tambores é transmutado em momento mágico pelo phaser da guitarra de Toninho Horta, enquanto Bituca anuncia : Chegou num porto um canhão, dentro de uma canhoneira , neira, neira, neira , neira ...
O eco das terminações de tais ícones da tecnologia bélica, os índices da riqueza e da violência, da rainha ao capitão, a pólvora e a taça de prata, todos esses objetos que representam a fome que eles tinham de cacau e sangue, reproduzem os desdobramentos nunca apagados de toda a opressão e do genocídio que o processo de colonização significou, a despeito de tudo ter sido feito em nome do Senhor. Não se mata assim uma única vez, e a volta e a repetição de cada um desses golpes é amplificada pelo canto quase grito de Milton, nas grimpas de sua voz retumbante.
“Deus” aparece aqui no seu verdadeiro papel de salvaguarda moral para todos os tipos de atrocidades cometidas em nome da bandeira inglesa, e de tantas outras. A Corte atenta e faminta pelo cacau dessa mata, mata , mata , mata , é , por fim, satisfeita.
Os acordes giram em torno de Si Bemol Maior, com aparições de Fá Maior, Sol Menor, e Dó com Sétima suspenso , e Mi bemol Maior. Diríamos que a tonalidade oscila, no percurso da canção, entre Si Bemol Maior e Fá Maior, com uma breve passagem por Sol Maior ( Minha vida e minha morte ...) Mas essa canção não passa por uma resolução progressiva de tensões hamônicas, antes usando, longamente, cada acorde como uma cena épica e dramática do que conta a letra. O recurso do eco indefinido, a falta de pulso regular, a introdução cerimonial e a violência do canto nos levam direto a um lugar-tempo histórico onde ainda lateja a dor de tanto sangue derramado em nome da moral e dos bons costumes.
Bem apropriado para o momento histórico que estamos vivendo. 


*N.E. Me ocorre que o recurso de remeter ao tempo histórico da colonização tratando simultaneamente dos conflitos próprios daqueles tempos de chumbo constitui não uma semelhança entre Bodas e a peça Calabar, mas também um ponto de convergência entre várias canções populares do período. Um ponto a ser devidamente explorado pelos historiadores, para além do recurso didático - muito válido, diga-se de passagem - de recorrer a estas canções para interpretar a leitura que fazem do período em questão. 

** N.E. Quanto a isso remeto o leitor à análise comparativa proposta por Túlio Villaça entre Bodas e Mathilda Mother do Pink Floyd, em seu ótimo blog Sobre a canção [aqui]


 
Bodas 

chegou no porto um canhão
dentro de uma canhoneira, neira, neira...
tem um capitão calado
de uma tristeza indefesa, esa, esa...
deus salve sua chegada
deus salve a sua beleza
chegou no porto um canhão
de repente matou tudo, tudo, tudo...
capitão senta na mesa
com sua fome e tristeza, esa, esa...
deus salve sua rainha
deus salve a bandeira inglesa
minha vida e minha sorte
numa bandeja de prata, prata, prata...
eu daria à corte atenta
com o cacau dessa mata, mata, mata...
daria à corte e à rainha
numa bandeja de prata, prata, prata...
pra ver o capitão sorrindo
foi-se embora a canhoneira
sua pólvora e seu canhão, canhão, canhão...
porão e barriga cheia
vai mais triste o capitão
levando cacau e sangue, sangue, sangue...
deus salve sua rainha
deus salve a fome que ele tinha.

https://www.youtube.com/watch?v=lurFsYB3peE
https://www.youtube.com/watch?v=fOxPv9vDlLM

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 9. Ponta de Areia ( Milton Nascimento – Fernando Brant) 

A despeito de ser um compositor que costuma navegar as águas mais profundas e tortuosas das páginas da música popular, Milton Nascimento tem um canal fino de acesso ao mais infantil das cirandas de roda, capaz de desenhar as melodias mais singelas em acordes perfeitos, sob as quais ocorrem as mais heterodoxas passagens rítmicas sem que se aperceba delas, tal a integridade da frase melódica e da forma. Em certas ocasiões, a simplicidade formal é incrível, como nesta pérola, que consiste na simples reexposição de uma frase "a" e uma variação dela, "a´". Em Raça vemos esse mesmo minimalismo melódico.
Claro que esse aspecto hai-cai da melodia é dirimido pela longa introdução de sua gravação primeira, no disco Minas, com as sinuosidades do sax de Nivaldo Ornellas e a felliniana ambientação musical e percussiva que segue, interrompidas pelo canto idílico de crianças no jardim de infância, em Fá Maior; desse jardim somos catapultados de súbito uma quarta acima, em Si Bemol, tom que vai predominar daí até quase o fim, com o surreal falsete miltoniano em suas pontas mais agudas. Um coro sacro sustenta a primeira estrofe que enuncia o último ponto da estrada de ferro que ligava Minas à Bahia*; a estrada de ferro, antes índice máximo da tecnologia mundial dos transportes, curiosamente aparece como elemento da natureza, da paisagem já tomada, e agora despido de sua força-vital ; “mandaram arrancar”. Em torno da estrada de ferro todo um cenário se constitui e se desvanece , e vai se perdendo numa nostalgia que se verifica, também, em Saudade dos Aviões da Panair, também letra de Fernando Brant. Os meios de transporte "ultrapassados", como o bonde, o trem, e os antigos aviões, são tomados como eixo lírico de toda uma visão de mundo que tem no Brasil - e no interior do país - seu centro geográfico. A passagem do tempo impele um trabalho contínuo de destruição e ressignificação do que antes era progresso e hoje é nostalgia ; mas esse tempo histórico não é tido como natural, e o sub-texto da canção é uma condenação velada ao desenvolvimentismo do Brasil Grande, com suas Transamazônicas e o sucateamento das ferrovias, ao mesmo tempo que a Feira Moderna da televisão nacional anunciava o encurtamento das distâncias, enquanto outras só se alargavam.
Notável, voltando aos aspectos estritamente musicais, é o solo desenvolto e de arribação de Nivaldo Ornellas, assim como a articulação entre bateria, Paulo Braga, baixo elétrico, Novelli, e piano elétrico, Wagner Tiso, para a levada pop de uma música tão idiossincrática em sua métrica: um compasso de 4/4 é seguido de um de 5/4, em ambas as frases da melodia; porém a acentuação sugere outras possibilidades de divisão de compassos, como um compasso de 4/4, um de ¾ e um de 2/4 . E é incrível como as platéias mais leigas nunca se confundem com isso, como a reafirmar a naturalidade da divisão melódica. Cantigas de roda com esse tipo de característica não ocorrem a qualquer compositor.
Regravada uma infinidade de vezes, trata-se de uma das mais consagradas loas da dupla Nascimento e Brant, e é natural que a grandeza da música se justifique por sua simplicidade misteriosa e reveladora.


*N.E. A Estrada de Ferro Bahia Minas (EFBM) era uma linha ferroviária brasileira que ligava o norte de Minas Gerais com a cidade de Caravelas no litoral sul da Bahia. Teve como diretriz a ligação do arraial de Ponta de Areia, próximo a cidade de Caravelas, à cidade de Araçuai no interior de Minas Gerais,numa extensão de aproximadamente 600 km. (Rodney Vogel no You Tube).  Cabe lembrar que Fernando Brant, à serviço da revista O cruzeiro, produziu o texto de foto-reportagem a respeito do encerramento das atividades da linha, que segundo o próprio lhe inspirou a criar a letra da canção.

https://www.youtube.com/watch?v=kXABM6vuCmM
https://www.youtube.com/watch?v=L2AI5S76WIg
https://www.youtube.com/watch?v=eApasQ8a1Zs
https://www.youtube.com/watch?v=GNhMmdbNqso
https://www.youtube.com/watch?v=ebCi2x48U6c
https://www.youtube.com/watch?v=V7snPl8L6Zg
https://www.youtube.com/watch?v=OYV11DtFPWI [com imagens do trajeto Bahia-Minas]

Ponta de Areia ( Milton Nascimento – Fernando Brant) 

Ponta de areia ponto final
Da Bahia-Minas estrada natural

Que ligava Minas ao porto ao mar
Caminho de ferro mandaram arrancar

Velho maquinista com seu boné
Lembra do povo alegre que vinha cortejar
 
Maria fumaça não canta mais
Para moças flores janelas e quintais

Na praça vazia um grito um ai
Casas esquecidas viúvas nos portais



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10. Uma Canção ( Lô Borges e Ronaldo Bastos)
O cancioneiro nacional é repleto de meta-canções extraordinárias, desde Feitio de Oração, de Noel Rosa e Vadico, até Festa Imodesta de Caetano Veloso, desde O Compositor Me Disse , de Gilberto Gil até Corrente, de Chico Buarque, para não falar na sensacional Letra de Música, de Kristoff Silva e Makely Ka, célebre no nosso eldorado subterrâneo. “Enquanto o ouvido duvida o olho trabalha, dilatando a pupila pra ver nublado brotar a lágrima” . Poucas são tão singelas quando Uma Canção, lamento em Mi Menor cantado com ecos joãogilbertianos por Lô Borges, enquanto dedilha seu violão de cordas de aço e assobia a melodia despreocupadamente.
O lirismo melancólico, inscrito no cromatismo melódico descendente inicial, em campo claro de Mi Menor, passando pelo sexto e quarto graus ( Dó e Lá Menor) , é dos mais distintos, ilustrado por inspiradas imagens pontuais que apontam para o caráter sintético do objeto canção. A leveza que sustenta o peso, o raio que penetra o desvão, o cheiro que carrega o tempo, e lâmina de tal precisão: imagens cristalinas na descrição do ato de compor, lapidar um objeto fugaz, abstrato e ao mesmo tempo depositário de tanto sentido.
A valsa flui enquanto o desenho harmônico acumula graus de suspense e resoluções diferidas, como em A7(9), e aquela dicção típica de Lô se encontra nas equilibradas alternâncias entre graus conjuntos e saltos ; no aspecto forma, temos apenas um A com algumas variações no fim de sua segunda seção, que tem uma extensão de 14 compassos, na seguinte disposição : 3+4+4+3 . Essa extensão muda, assim como a resolução harmônica, ao fim da terceira estrofe, e ainda numa outra variação para o fim da música, com aparições elegantes de empréstimos modais do modo frígio e a resolução no homônimo maior. Coisa de gênio. Das suas maiores baladas, Uma Canção adquiriu monumental reputação em rodas de violão de amantes da música mineira.

Uma Canção (Lô Borges e Ronaldo Bastos)



Uma canção é leve e pode sustentar
Toda emoção
Que pesa demais
E num passe de mágica faz voar
É gota d'água e faz transbordar
Vai na enchente arrastando
O que pode transformar
Em nuvem do céu
Da inundação
Uma canção é clara e pode penetrar
Negro desvão
Que um raio de sol
Com a súbita chama faz clarear
Um viajante que se fez perder
Por sua estrela se inicia
Nos mistérios de querer
A lâmina ser
De tal precisão
Qualquer pessoa pode assoviar
A voz humana se decifra
Quando canta por prazer
De juntos trilharmos uma canção
Uma canção é lenha e pode consumir
Uma paixão, um caso de amor
Que o som das palavras vai traduzir
É rima simples e retém calor
Se ilumina quando toca uma pessoa
Que se quer bem perto da brasa do coração
Uma canção tem cheiro e pode transportar
Uma fração de um tempo qualquer
Que a gente viveu num outro lugar
É diamante para lapidar
Na pedra bruta segue o veio da beleza
Quando faz soar cristalina revelação...

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30 de janeiro de 2014

Outras 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro - 1a. parte

Depois do estrondoso sucesso de público e crítica da primeira lista das 30 mais geniais do Clube da Esquina, acalentávamos, eu e meu grande parceiro Pablo Castro, a possibilidade da realização de uma nova série, com outras 30 canções que fazem parte desse inquestionável patrimônio cultural brasileiro e mundial, certamente de lavra tão preciosa quanto suas 30 antecessoras. Finalmente as condições se reuniram nessa última passagem de ano e demos início à empreitada, ele na condição de autor e eu de editor exclusivo [minhas poucas notas virão em negrito com a indicação n.e.], inserindo essa nova leva no bojo de um projeto de pesquisa sobre Patrimônio Urbano e Música Popular [para conhecer melhor o projeto, clique aqui] que conduzo na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com apoio de sua Pró-Reitoria de Pesquisa (PRPq). Considero que a lista, bem como sua irmã mais velha, envolvem uma dimensão fundante da constituição de um patrimônio cultural, que é a constituição do conhecimento sobre o mesmo e sua difusão. Ao mesmo tempo, atende uma demanda cada vez mais premente no cenário cultural de nosso tempo, aquela pela apreciação crítica, pela abordagem aprofundada e consequente da criação artística e, especialmente para nós, da música popular e a vertente que a ambos autor e editor mais interessa e envolve, a canção. Para tais objetivos são precisos a análise fina, sensível e bem informada, a concisão e o didatismo bem dosado que esclarece o leigo sem deixar de ser estimulante a quem já detém maior conhecimento sobre o assunto. Qualidades que estão presentes na primeira lista e que novamente aparecem nesta, quiçá até refinadas. A proposta editorial permanece como antes, em blocos de 5 canções, que serão periodicamente lançados no blog e depois reunidos em uma página especial. Tudo isso dito, com grande satisfação o Massa Critica MPB oferece aos leitores, Outras 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro. Deleitem-se sem moderação. 





1. Beco do Mota

Chico Amaral cita em seu livro crucial sobre a música de Milton Nascimento que a primeira canção sua que se lembra ter escutado foi Beco do Mota , que lhe parecia uma estranha forma de música pop , tocada por uma turma numa roda de violão num buteco.  Nada mais mineiro do que uma roda de violão num buteco, aliás.
Curioso que tenha sido essa parceria entre Milton e Fernando Brant, sobre um tal beco que era a zona da cidade de Diamantina, depois desocupado por pressão da sociedade católica mineira.  Particularmente feliz é a dicotomia procissão / profissão, dialética aliterada entre a repressão moral (e a consequente dominação social ) entre grupos de “homens e mulheres”. Esse despojamento, em particular, ecoado em San Vicente, dos mesmos autores, só que em ordem invertida  (“ as mulheres e os homens” ) como que evidencia o véu social que constitui um recalque e um dispositivo de poder, repressão, coerção e dominação. Despidos das estranhas romarias, o que resta são homens e mulheres na noite. “Hinos de estranhas romarias” são “sons rasgando a noite escura”  , “clareira na noite “ , “profissão deserta” , “ fundo escuro beco “ .
A prostituição, aqui referida como “profissão”, deixa, mais do que um rastro, um cheiro,  um corolário de lembranças sociais que permanecem como signos de um desiquilíbrio fundamental, um conflito latente. Ao mesmo tempo, delineia-se um aspecto crucial  na obra do Clube da Esquina, que a essa altura se resumia à “pá” de músicos-amigos que participavam do segundo disco de Milton no Brasil, de nome apenas Milton Nascimento [EMI-Odeon, 1969, n.e.] (que é conhecido também como “o da Igrejinha”): a articulação entre religiosidade e crítica sócio-política, alinhavada por soluções musicais do nível de síntese que só Bituca poderia realizar.
O canto greogoriano em modo frígio já aponta na direção meio medieval da “estranha romaria" , pra dar lugar a uma levada semi-pop com baixos invertidos entre subdominante e dominante na seguinte sequência :
{F/C  /  % / G/D  / } { F/C  /  % / C /} { C / % / G/B / } {Am7 / C7(9)(11) / % }
Reparemos que os versos são cantados em  4 trechos de três compassos,  cujos acordes grafei acima. Isso já é um procedimento distintivo, nada ordinário, porquanto a música popular carrega em si arquétipos que tendem sempre mais a grandezas binárias, ainda mais num ritmo quarternário, como é essa música. Destaque também é a orquestração lírica, em uníssono, aqui de Luiz Eça.
Por falar em ritmo, vemos aqui uma alternância de levada rítmica das mais expressivas, quando o roque lento (mas incisivo, com destaque para o baixo sincopado de Novelli ) do estribilho dá lugar, sob o mesmo pulso, a uma marcha-toada (na falta de uma definição melhor), acelerada, como se aludindo a um fluxo mais denso de pensamentos, memórias, reflexões , ilustrando os ícones pedra-ponte-pedra-aviso-água-fria descritos assim, como em poema concreto, até que o povo se dissolva, na clara praça, em Lá menor, relativo da tonalidade principal da música.
A canção é, no fim das contas, em Dó Maior, com a participação especial de Dó Suspenso, flertando com o mixolídio.  Mas a tonalidade demora a se firmar, pois Bituca brinca com as ambigüidades tonais com grande facilidade, e simplicidade.
Beco do Mota sintetiza muitos dos interesses e das camadas de significados (Beco, Diamantina, Minas, Brasil ) do que poderia se chamar uma música mineira universal. 


Clareira na noite, na noite
Procissão deserta, deserta
Nas portas da arquidiocese desse meu país
Profissão deserta, deserta
Homens e mulheres na noite
Homens e mulheres na noite desse meu país

Nessa praça não me esqueço
E onde era o novo fez-se o velho
Colonial vazio
Nessas tardes não me esqueço
E onde era o vivo fez-se o morto
Aviso pedra fria
Acabaram com o beco
Mas ninguém lá vai morar
Cheio de lembranças vem o povo
Do fundo escuro do beco
Nessa clara praça se dissolver

Pedra, padre, ponte, muro
E um som cortando a noite escura
Colonial vazia
Pelas sombras da cidade
Hino de estranha romaria
Lamento água viva

Acabaram com o beco...

Profissão deserta, deserta
Homens e mulheres na noite
Homens e mulheres na noite desse meu país
Na porta do beco estamos
Procissão deserta, deserta
Nas portas da arquidiocese desse meu país
Diamantina é o Beco do Mota
Minas é o Beco do Mota
Brasil é o Beco do Mota

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2. Cais


Essa canção, contraface de Um Gosto de Sol, ambas de Milton e Ronaldo Bastos, é uma das mais emblemáticas obras do gênio trespontano. Porque, em primeiro lugar, a metáfora da viagem como lançar-se sem amarras rumo ao desconhecido tem inúmeros exemplos no cancioneiro do Clube da Esquina, mas nunca antes ou depois ilustrada por imagens tão densas e representativas dessa delonga que espera satisfação; “Eu queria ser feliz“, demora que faz o viajante tecer dentro de si sua própria trajetória: “invento o mar, invento em mim o sonhador”. Mais ainda, a letra tem ressonâncias significativas no que tange ao papel polarizador do Milton no contexto da música mineira da época: “Para quem quer me seguir, eu quero mais, tenho um caminho do que sempre quis, e um saveiro pronto pra partir”.
A agonia, a hesitação e a partida são os tripé sentimental da música, que, em Dó Menor, exibe empréstimos do modo frígio [ Db7M/C  e Bbm7(9) ] , acordes menores , como o quinto grau modal de Dó Menor, Sol Menor, em inusitada alternância.  O sabor dionisíaco da lua nova a clarear, em Sol Menor, prepara a volta a Dó como resolução da energia acumulada e suspensa que caracteriza o estado de espírito do narrador.
O ritmo é interessante:  temos um lento e vago 6/4 , onde a voz já entra no primeiro compasso da primeira estrofe, que tem o número ímpar e primo de 11 compassos, 9 com duas exposições de Cm7(9) e Cm6(9) como ponte ; em seguida, uma breve ponte de 4 compassos ( “eu queria ser feliz") , extraída ela mesma de uma sessão interna da estrofe, e uma segunda e última estrofe que desemboca na coda instrumental final.
A coda instrumental se revela, de fato, outra peça composicional, em sua nobre mudez melódica, enfatizando o sentimento soturno e épico de algo indizível, em tríades repetidas e marteladas de Dó menor com baixo descendente, seguindo a Fá Menor (subdominante) , Si Bemol suspenso ( Dominante do relativo) , Mi Bemol Maior ( relativo ) , Lá Bemol e , no fim, o acorde de Dó sustenido com Sétima e Quinta Aumentada, formado a partir da desorientadora escala de tons inteiros. 
Todos esses sentimentos se imbricam de forma notável nessa pequena fábula sobre a quebra das amarras e o mergulho no desconhecido, que tanto perpassam a obra do Clube da Esquina





Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar

Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador

Para quem quer me seguir eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar


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3. Amor de Índio


Amor de Índio foi o primeiro grande sucesso de Beto Guedes, e não é difícil entender por que. Essa canção amalgamava a receita equilibrada que ele tinha logrado apurar desde suas primeiras aparições do disco Clube da Esquina e do Tênis [Lô Borges, EMI Odeon, 1972, n.e.] e sua estréia no disco coletivo com Toninho, Danilo Caymmi e Novelli.  A balada em 12/8, sua marca, aparece aqui em cores casuais, com Robertinho Silva delicadamente conduzindo em seus chimbaus  a base de piano ( Wagner Tiso) e baixo elétrico ( Beto Guedes), pontuadas já de cara pela guitarra abelhuda do compositor e a jazzística e inconfundível de Toninho Horta. Maravilhosa é a dicotomia entre os dois guitarristas na coda final em agudo paroxismo roqueiro, difícil de imaginar pelos primeiros compassos dessa balada suave em Lá Maior, com uso intensivo do acorde bossanovístico de Lá Maior com Sétima Maior e Nona ( A7M(9) ).
Nesses tempos de perseguição aos índios, é bom lembrar que a década de 1970 viu uma valorização do índio muito significativa na música popular, como provam as canções Um Índio (Caetano Veloso), Promessas do Sol ( Milton e Fernando Brant) , Imyra Tayra Ipy (Taiguara), entre outras.  O Amor de Índio aludido na letra é aquele natural, despido dos estritos enquadramentos sociais das culturas judaico-cristãs, que se identifica com os signos da natureza, com a contracultura, do amor livre, de todo um ideário que, a despeito da não transformação das estruturas sociais almejada pela juventude subversiva dos anos sessenta , representou um avanço comportamental, uma desconstrução de amarras sociais retrógradas em bases mais livres. Ronaldo Bastos encontra, de fato, o tom mais equilibrado em que fundir um deslocamento político cultural no que seria só mais uma canção de amor.
Só mais uma canção, não, uma grande canção, que carrega os traços de um clássico na melodia consistente, (cujos primeiros versos têm a seguinte fraseologia:  a, a´, a´, b, a , a´, c ); cabe aqui ressaltar a inteligência e a economia dessa melodia, que, a partir de uma terceiro motivo melódico (“enquanto a chama arder, todo dia te ver passar" ) se constroem frases filhas desta, como (“abelha fazendo mel, vale o tempo que não voou“) que seriam, respectivamente, as d  e d´ , e repetem-se mais uma vez (“a estrela caiu do céu , o pedido que se pensou “), acumulando tensão e energia, para desaguarem em mais uma repetição melódica, mas desta feita sobre outra base harmônica (“o destino que se cumpriu , de sentir seu calor e ser todo” ) d e d´´, uma outra variação da mesma frase melódica;  e , por fim, na forma distintiva, em que temos a estrofe com 14 compassos, sendo reexposições  da mesma melodia primeiro em 6, depois, acrescida da repetição do última frase, 8  compassos , enquanto a ponte (“o destino que se cumpriu”) , modulando ao relativo da tonalidade principal, passa a exibir a quadratura normal, de 8 em 8.
A harmonia na verdade é um simples passeio pelo campo harmônico de Lá Maior, mas sempre com dissonâncias. Temos a alternância de I e IV , (tônica e subdominante) , só que A7M(9) e D7M(9)/F# , ou seja, já um baixo invertido, traço predileto do compositor.  No proto-refrão temos a aparição do relativo F#m7, seguido de C#m7, e Bm7, assim como E7(9)(11), todos muito bem na tonalidade de Lá, mas também na de seu relativo. Muito elementar e absolutamente marcante como se dá a fusão de um discurso harmônico como esse que caberia num samba, num bolero ou numa bossa-nova com o acompanhamento feroz, caudaloso, da instrumentação e , claro, da voz brilhante do falseto de Beto, em alta tessitura e contagiante interpretação.


Tudo que move é sagrado
E remove as montanhas
Com todo o cuidado
Meu amor
Enquanto a chama arder
Todo dia te ver passar
Tudo viver a teu lado
Com o arco da promessa
Do azul pintado
Pra durar


Abelha fazendo o mel
Vale o tempo que não voou
A estrela caiu do céu
O pedido que se pensou
O destino que se cumpriu
De sentir seu calor
E ser todo
Todo dia é de viver
Para ser o que for
E ser tudo

Sim, todo amor é sagrado
E o fruto do trabalho
É mais que sagrado
Meu amor
A massa que faz o pão
Vale a luz do seu suor
Lembra que o sono é sagrado
E alimenta de horizontes
O tempo acordado de viver


No inverno te proteger
No verão sair pra pescar
No outono te conhecer
Primavera poder gostar
No estio me derreter
Pra na chuva dançar e andar junto
O destino que se cumpriu
De sentir seu calor e ser todo
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4. Morro Velho

Milton em raro papel de letrista, além de compositor, conta aqui uma história, uma narrativa. Convém ressaltar que são raras suas canções com narrativas, mais ainda detalhadas, como essa, muito embora a imagem de viagem, de travessia, se apresente desde o início de sua carreira. A história dos dois meninos amigos de infância, mas um, filho do patrão, outro, do empregado, separados pelos extratos sociais a que pertencem já é, em si, tocante, no que desvela a impossibilidade de comunhão de vida, de papéis, de lugares sociais, mesmo a amigos inseparáveis que nasceram e cresceram na mesma fazenda.  De fato, a introdução do violão, com baixo pedal em Mi, no que se revela um acorde de Lá Maior, é conduzida pelo delicado contraponto de duas notinhas agudas, cada qual representando um menino, que vão se distanciando lentamente um do outro, denotando, através de sua relação, uma série de acordes subjacentes.  Esse tipo de artifício extrai sua força de uma aparente ingenuidade até mesmo rudimentar, enquanto conduz a narrativa harmônica a um lento resolver de tensões, num acorde maior que soa, ainda assim, melancólico.
Na levada, uma das hibridizações do que era descrito então como toada moderna, assim que a letra começa e a voz de Milton lembra do sertão da sua terra.  Aqui um dos eixos da sua pesquisa harmônica se mostra claramente, como diz Chico Amaral, quando a tônica maior se mistura muito facilmente com a tônica menor, e com acordes emprestados do mixolídio e do lídio, dando um sabor modal a várias passagens, mas tudo isso imbricado num discurso que é, em última instância, tonal. Na segunda parte, temos a aparição do relativo F#m7(11), alternando com a tônica Lá, mas em tonalidade menor. Outra inovação de Bituca.
E, além de tudo, e antes de tudo, claro, uma melodia, angulosa, pouco consistente, (a, b, c, b, d , d´, e , f , f´, f´´ ) e mesmo assim de fácil memorização, tal o seu equilíbrio,  e uma forma clássica, com uma introdução de  8 compassos,  estrofes de 14 compassos ( 8 + 6 e, entre as duas primeiras estrofes, a volta da intro) e uma segunda parte de 17 compassos ( 16 + 1 de preparação para a volta) em “não me esqueço, amigo, eu vou voltar “ , promessa destinada a ser cumprida e quebrada a um só tempo, porque volta “outro” ; e , por fim a última estrofe , quando os caminhos dos dois amigos de infância já são inconciliáveis, seguida de uma última exposição da introdução, espécie de amuleto resignado e tristonho dessa saga humana.
Morro Velho foi gravada por Elis Regina, Tamba Trio, Nana Caymmi, e uma infinidade de releituras que provam a grandeza dessa canção inocente do nosso Bituca. Ela já figurava entre as prediletas pessoais dele mesmo, e compartilhava a idéia da introdução em baixo pedal no violão com Travessia, que acabou se revelando uma música ainda mais reverenciada. Mas Morro Velho não fica nada a lhe dever.



No sertão da minha terra, fazenda é o camarada que ao chão se deu
Fez a obrigação com força, parece até que tudo aquilo ali é seu
Só poder sentar no morro e ver tudo verdinho, lindo a crescer
Orgulhoso camarada, de viola em vez de enxada

Filho do branco e do preto, correndo pela estrada atrás de passarinho
Pela plantação adentro, crescendo os dois meninos, sempre pequeninos
Peixe bom dá no riacho de água tão limpinha, dá pro fundo ver
Orgulhoso camarada, conta histórias prá moçada

Filho do senhor vai embora, tempo de estudos na cidade grande
Parte, tem os olhos tristes, deixando o companheiro na estação distante
Não esqueça, amigo, eu vou voltar, some longe o trenzinho ao deus-dará

Quando volta já é outro, trouxe até sinhá mocinha prá apresentar
Linda como a luz da lua que em lugar nenhum rebrilha como lá
Já tem nome de doutor, e agora na fazenda é quem vai mandar
E seu velho camarada, já não brinca, mas trabalha

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5. Nuvem Cigana


Esse proto-rock mineiro com subdivisões ternárias, ou simplesmente um shuffle, como diria mestre Marcos Gauguin, foi feito por Lô Borges e Ronaldo Bastos para o disco Clube da Esquina, em 1972 [mais tarde Lô a regravaria para dar título a seu 3° disco solo, em 1981, n.e.], e já se tornou um ícone da produção cancional de ambos.  Nuvem Cigana veio a ser o nome de um movimento de poesia marginal de que Ronaldo Bastos fazia parte, além de ser uma tradução perfeita daquela música onírica e surrealista, mas ainda assim incisiva, dura, que o Clube fazia àquela altura dos acontecimentos da Música Popular Brasileira.  Essa síntese híbrida se revela logo na introdução de viola de 10 cordas, por Beto Guedes, um instrumento nada comum em qualquer coisa ligada ao rock, não como ícone da música caipira, como tinham feito Os Mutantes em 2001, mas como um instrumento qualquer que pudesse acompanhar aquela melodia meio vaga e harrisoniana (aludindo ao compositor invisível dos Beatles) que Lô tinha feito.  Milton entra tocando um piano discreto, Toninho Horta no baixo, Lô toca a guitarra sublinhando cada nota da melodia vocal, e a orquestração de Wagner Tiso, perfeita, como que massageando a mente de um náufrago psicodélico já em estado avançado de transe.

Vejamos como Lô suscita esse transe numa forma que é toda enquadrada em quadratura : 8 compassos cada estrofe, 12 compassos o refrão, em três repetições da mesma frase (“ se você deixar o coração bater sem medo”), o que caracteriza um procedimento bastante corriqueiro . O deslocamento na verdade é proporcionado pelas sucessivas mudanças de modos ( escalas subjacentes à melodia vocal e à cadência harmônica) em baixo pedal de Sol. Para o leigo, o baixo pedal é justamente aquela nota grave que se mantém durante quase a música inteira , enquanto outras notas na harmonia vão mudando.  Enquanto esses acordes vão mudando, temos , basicamente três modos vão se alternando : o lídio, o mixolídio e o menor, no refrão.  A influência dos Beatles se faz presente na adoção da quarta aumentada durante o refrão, uma nota muito incisiva em clima blue, que é repetida no refrão.  E, como já mencionado, reverbera as melodias no contratempo de canções como If I Needed Someone, Taxman, I Want to Tell You e Only a Northern Song [todas de George Harrison, n.e.], onde os ataques melódicos se dão contra o pulso da levada rítmica.

A letra quase toda na condicional (se você quiser ..., se você deixar... se você dançar) denota um caráter de  sedução, de mistério, de convite ao desvelar transcendente de múltiplas formas de nuvens ciganas, nos cabelos verdes, no pó da estrada, sol sereno, ouro e prata, sol semente, madrugada, e a dança como ponto alto desse acasalamento surrealista a que o narrador parece aludir. Clássico, standard do Clube da Esquina.


Se você quiser eu danço com você
No pó da estrada
Pó, poeira, ventania
Se você soltar o pé na estrada
Pó, poeira
Eu danço com você o que você dançar


Se você deixar o sol bater
Nos seus cabelos verdes
Sol, sereno, ouro e prata
Sai e vem comigo
Sol, semente, madrugada
Eu vivo em qualquer parte de seu coração


Se você deixar o coração bater sem medo

Se você quiser eu danço com você
Meu nome é nuvem
Pó, poeira, movimento
O meu nome é nuvem
Ventania, flor de vento
Eu danço com você o que você dançar


Se você deixar o coração bater sem medo
Se você deixar o coração bater sem medo
Se você deixar o coração bater sem medo