Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

28 de junho de 2013

Quem cala sobre teu corpo

Enquanto a conjuntura política efervescente e angustiante que estamos vivendo foi tomando conta de tudo e o tempo parecia cada vez mais escasso para fazer as coisas, bolei e desembolei várias postagens para o blog, a maioria delas pensando a relação entre música popular e engajamento político. Pensei em começar uma série especial, para dar uma agitada no blog, que vem sofrendo com minha falta de tempo. Quanto a isso o segundo semestre se aproxima, com muita expectativa para novidades. Bem no meio desse turbilhão um acontecimento deveras trágico se impôs no horizonte, e me motivou, entristecido e indignado, a fazer essa postagem. Deu no jornal:

"Morreu no fim da noite desta quarta-feira (26), o jovem que caiu do viaduto José de Alencar, na avenida Antonio Carlos, durante os confrontos entre a Polícia Militar (PM) e os vândalos infiltrados nas manifestações que acontecem em Belo Horizonte. O metalúrgico Douglas Henrique de Oliveira Souza, de 21 anos, caiu de uma altura de aproximadamente 6m, em um vão que existe no viaduto. Do mesmo local, outras quatro pessoas caíram durante os protestos.

O jovem foi socorrido pelos bombeiros e levado de helicóptero, em estado gravíssimo, para o Hospital João XXIII. Douglas teve perda de massa encefálica, passou por diversas cirurgias durante a noite, mas não resistiu aos ferimentos. Esta é a primeira morte contabilizada em consequência dos protestos que tomaram as ruas da capital desde a última semana." reportagem completa, aqui

Uma colega da universidade me dissera dois dias antes que estavam procurando o Edson (Luis). Encontraram. Como tá difícil fazer essa homenagem, recorro à História e a palavras escritas em outro tempo, por outras razões, escritas sob o peso da sombra daquele Edson.  Que o jovem Douglas encontre lugar também na História que fazemos, para que sua a morte absurda não seja acompanhada do fúnebre silêncio do esquecimento.

"Ao tratar da morte do estudante Edson Luís alguns anos depois, os músicos do Clube a transformaram numa alegoria do “corpo político” dos cidadãos. O silêncio assume a face de sua morte. Se o anjo da história não pode recolher os mortos, cabe ao historiador materialista redimi-lo para que a derrota não se cumpra duas vezes. Romper o silêncio, gritando, instaura vida. O relógio no chão avisa a hora, o tempo do agora, a hora em que cada um é chamado a gritar, a preencher o espaço vazio com um som, o grito que é a caveira da voz, o primeiro som do recém-nascido e o último dos moribundos – a ressonância da vida na morte. A interrupção é feita por raios de efeitos de guitarras, e feita pela sensação do alarme de incêndio, alertando contra o perigo de que todos se calem e aceitem o curso inexorável da história" (GARCIA, 2000):

Menino(Milton Nascimento/Ronaldo Bastos)

“Quem cala sobre teu corpo / Consente na tua morte /
Talhada a ferro e fogo / Nas profundezas do corte / Que a bala riscou no peito 

Quem cala morre contigo / Mais morto que estás agora
Relógio no chão da praça / Batendo, avisando a hora / Que a raiva traçou no tempo 

No incêndio repetindo / O brilho de teu cabelo / Quem grita vive contigo”





Ficha técnica:
Violão e voz: Milton Nascimento / Guitarra: Nelson Ângelo
Baixo acústico: Novelli / Guitarras(efeitos): N. Ângelo e T. Horta
Bateria: Robertinho Silva / Órgão: João Donato[1]



[1] L.P. Geraes. Rio de Janeiro: EMI, 1976.

Referência Bibliográfica:

GARCIA, Luiz Henrique Assis. Coisas que ficaram muito tempo por dizer: o Clube da Esquina como formação cultural. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 2000 (dissertação de mestrado). [acesso aqui]


 

2 comentários:

  1. Queria a refereência completa GARCIA, 2000???

    davison.hugo@gmail.com

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    1. Caro Davison Alves, a referência é minha dissertação de mestrado: COISAS QUE FICARAM MUITO TEMPO POR DIZER. O Clube da Esquina como formação cultural, defendida na pós graduação em História da UFMG. http://ufmg.academia.edu/LuizHenriqueAssisGarcia através desse link vc a encontrará para baixar. Dê notícia se conseguiu e depois comente a leitura. Abs

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