Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

31 de janeiro de 2015

Joyce Moreno, essa cantautora

Joyce Moreno tem uma trajetória brilhante e está entre as grandes da nossa música popular. Sua música ecoa sempre em nossas vidas, ouvidos e corações. Hoje é aniversário dela. É da mesma cepa fundamental da nossa MPB, emergindo na Era dos Festivais com Edu, Caetano, Chico, Milton, Dori , entre outros, entre os quais a impressa da época costumava coloca-la como "bendito é o fruto" ou, alternadamente, chamar-lhe de "Chico Buarque de saias". Desse pouco já se depreende que na condição de mulher teve que enfrentar diferentes graus de prevenção e preconceito por não corresponder à imagem pretendida para o sexo feminino em seu tempo. Inclusive no meio musical, em que havia pouco espaço para compositoras, deveriam ser todas "canárias". Um relato dela pra dar uma ideia de como a banda tocava:

 “Nunca entendi por que não havia canções brasileiras no feminino escritas por mulheres. As poucas compositoras brasileiras de até então eram muito tímidas quanto a isso, as letras eram neutras”, afirma Joyce. “Houve até críticos que chegaram a pôr minha autoria em dúvida, dizendo que as músicas eram boas demais para terem sido feitas por uma mulher.”

Outro detalhe interessante, em relação a esse período de efervescência de meados da década de 1960, é que Joyce transitou entre diferentes músicos e programas estéticos que num momento ou noutro ali, não se bicaram, por assim dizer. Ela que foi d'A tribo, que fala tanto em tribos no seu livro "Fotografei você na minha rolleyflex" das tribos pelas quais circulava, ela na sua morenice belíssima brasileiríssima seria como uma índia desbravadora.


Achei essa entrevista que ela concedeu ao Pedro A. Sanches (uma das melhores coisas que ele já fez, inclusive: completa, aqui) muito interessante, por condensar coisas que estão pelo livro dela e em outros lugares. Separei o trecho que segue:

Eu era amicíssima de todos, sem exceção, embora estes grupos muitas vezes não se dessem bem, pois era a época dos festivais e tudo era muito competitivo. Mas eu não conseguia fechar totalmente com um grupo só, gostava de todos, achava que todos estavam certos dentro das suas razões. Então os baianos achavam que eu era mais ligada a eles, porque eu frequentava as reuniões nas casas de Torquato Neto e Bethânia. Mas os mineiros também… E os cariocas, nem se fala, era a turma que se reunia nas casas do Tom Jobim, do Vinicius de Moraes e do Luizinho Eça… Eu sozinha era a quinta-coluna da MPB! Os mineiros eram meio sem-teto aqui no Rio, vinham de ônibus, sem grana e sem ter onde morar. No apartamento que o Bituca dividia com Novelli e Helvius Vilela moravam quase 20 pessoas – numa quitinete. Então nós, cariocas, começamos a hospedar o pessoal. Acabou que tive um namorico com o Lô Borges (“Abrace Paul McCartney” etc.) e acabei me casando com o Nelson Angelo, numa viagem ao México que fizemos num grupo chamado Sagrada Família, liderado por Luiz Eça. Por essa convivência, vi grande parte do que depois se chamou clube da esquina ser gestado na minha casa. Mas, apesar da amizade, musicalmente não me influenciou, não. De todos os mineiros, o que sempre teve maior afinidade musical comigo é Toninho Horta. Mas isso porque ouvimos as mesmas coisas na adolescência, ele é mais jazz e bossa nova do que Beatles, assim como eu. Então, sempre que dá, até hoje tocamos juntos (e gravaram o disco Sem Você, lançado em 1995).
Sua vasta discografia [aqui] faz jus a um lugar destacado na história da música popular brasileira, bem como sua habilidade e versatilidade como compositora, instrumentista e intérprete. Talvez um inevitável lugar comum, seu disco mais emblemático para mim segue sendo Feminina (1980), ainda mais que tenho em vinil, em condições maravilhosas. Foi provavelmente seu momento de maior exposição midiática, clipe no Fantástico, não sei se vi quando era criança mas canções como Feminina e Clareana (que depois viria a ser adorada pelo meu filho quando tinha uns 3, 4 anos) sem dúvida estão arquivadas numa gaveta à parte da minha memória musical. Separei alguma coisa para ouvir direto aqui mas vale conferir mais. Dê uma passada no site dela que é elegantíssimo no visual, e lógico, no som [aqui]. Salve Joyce!















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