Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

3 de junho de 2015

O Clube da Esquina e seus Cruzamentos Culturais.

A formação do Clube da Esquina tem um caráter fluido, do cotidiano, da amizade e a partir daí surgem as parcerias musicais que darão origem a diversas canções emblemáticas no cenário musical brasileiro e mundial. A identidade do Clube é fruto dessa coletividade, dessa convivência desinteressada. É isso que traz a inovação, confluência de ritmos, de saberes, de culturas, para a produção do grupo. 

Considera-se que as músicas do Clube revolucionaram a MPB ao lidarem, com naturalidade, com a mistura de elementos nacionais, regionais e internacionais em suas composições, graças a modernidade que rompeu com a barreira do tempo-espaço e permitiu a circulação de uma grande quantidade de informação e cultura. Grande parte dessa variedade é resultado das diversas influências sofridas por cada um desses músicos. 

Em depoimento para o museu online do Clube da Esquina, Toninho Horta diz que “Essa é a energia que me dá pra chegar aos 55 e tocar o Clube da Esquina de uma forma meio rock and roll, que também é uma parte da formação da gente que não dá pra negar. No princípio, eu falava que os roqueiros eram o Lô e o Beto, porque eu era bossa-nova, sofisticado, jazzista. Mas, no fim, todos nós absorvemos todas essas culturas.”

Enquanto Milton trazia o jazz, a musicalidade afro, Lô Borges e Beto Guedes traziam a irreverência dos reis do iê-iê-iê. Além da importância da Bossa Nova e da musicalidade do interior que Bituca (apelido de Milton Nascimento) e Wagner Tiso trouxeram de Três Pontas, houve mais inúmeras influências que passam pelo congado e vão até a música orquestrada, passando pelos ritmos latinos. 

Dessa forma, não podemos separar os membros do Clube entre populares e eruditos, considerando-os a própria ponte entre diferentes culturas, sendo que “num mesmo espaço, estão elementos distintos de formação letrada (institucionalmente ou não) e de formação prioritariamente popular.” (OLIVEIRA, 2006, p.100). 

Apesar disso, buscam uma sonoridade própria, não deixando de ser “Esse depositário da cultura popular,composto por vozes, histórias, valores, e diversos outros elementos, que foi o que legitimou os integrantes do Clube da Esquina a compor seu projeto estético de uma identidade coesa, que soasse mais íntegra que as opções "oficiais".” (COELHO, 2010, p.58).

O Clube da Esquina representa um movimento de síntese da música brasileira, tornando-se referencia para uma enorme gama de músicos que vieram posteriormente. Para VILELA os membros do Clube da Esquina ressuscitaram o espaço da MPB quando conseguiram incorporar diversos elementos de movimentos anteriores.

Segundo Canclini, esses cruzamentos culturais acabam provocando uma reestruturação radical dos vínculos entre o tradicional e o moderno; o popular e o culto; o local e o estrangeiro; e os membros do Clube querem, justamente, descobrir formas comuns entre esses antônimos a fim de provocarem uma aproximação. 

Garcia afirma que, no caso ao qual nos referimos, “essa convivência [entre o local e o global, o tradicional e o moderno] torna-se possível no próprio espaço da cidade, na medida em que este viabilizou o encontro da música com trajetórias de vida e formação musical diversa.”. (GARCIA, 2012, p.54). 

Com a presença da música sacra, além de elementos religiosos nas letras, e através da presença da musicalidade afro – resultado da forte presença negra no estado, devido à escravidão nas minas – percebemos a identidade das Minas como elemento de destaque nas criações do Clube. 

Maria Arminda do Nascimento Arruda fala sobre a formação da mineiridade que “no destemor, porém suave, elabora-se a personalidade básica dos mineiros, fruto da combinação permanente da impetuosidade na temperança, da força na serenidade, da harmonia na desorganização "O tempo mítico é abstrato e a-histórico exatamente por confundir presente, passado e futuro. [...] O mito, ao parar o tempo, promove a identidade abstrata dos homens e os memorialistas repousam nas imagens formadas nas visões do passado, de onde sorvem os seus princípios identificadores.” (ARRUDA, 1990, p.98, 211) 

A mineiridade pode ser definida e discutida em inúmeros aspectos, sendo as Minas entendida como o local da tradição, ao mesmo tempo em que o da liberdade, lugar da religiosidade, do “come quieto”. Para COELHO, “Alguns mitos arraigados sobre Minas Gerais, entretanto, tratam da perspectiva oposta: de uma tendência que seria inerente ao mineiro para a ‘trama’ e a ‘conspiração’”. 

Brant diz que é mais fácil revolucionar na música do que na sociedade mineira. Sobre isso Lima defende que “Nessa concepção, o mineiro é pensado como um rebelde, um ser individualista que conspira em benefício próprio, o que, por sinal, entra em contradição com outro mito do estado, onde a missão dos mineiros é “a de ficardes fiéis à filosofia mineira de vida. E um dos postulados é o respeito ao passado, a fidelidade aos pontos fundamentais, às linhas de força de vossa tradição" (LIMA, 1945, p.45 APUD COELHO, 2010, p.33).” 

Minas é entendido como o lugar da tradição e do progresso, ao mesmo tempo, e Belo Horizonte é o exemplo mais claro disso. A atual capital foi construída segundo os ideais da modernidade, porém, encontra-se os traços da cultura tradicional do antigo Curral del Rey. A poucos quilômetros está Ouro Preto, a antiga capital, sendo símbolo de preservação, da tradição, da identidade das Minas. Da mesma forma, a música do Clube carrega essa dualidade de conter, ao mesmo tempo, elementos do moderno e do tradicional. 

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