"Que dia estranho ...
Acordar com a notícia da morte prematura e inesperada do Vander Lee ...
Ele era, de todos os mineiros cantores e compositores independentes, o mais bem sucedido, tinha público no país inteiro, cantava suas composições que tinham um pé no Brasil profundo, e nunca resvalavam para o popularesco, para o fácil, apelativo, ainda que estivesse sempre próximo do clichê radiofônico. Muito bom letrista, muito bom melodista, muito bom cantor, versátil, capaz de sambas, emboladas, toadas, baladas, tudo seguro na sua mirada.
Para além disso, era um de nós. Não encarnava nunca qualquer pretensão de superioridade advinda desse sucesso, não um sucesso estrondoso, espalhafatoso, mas um sucesso silencioso, enterrado nas raízes quase invisíveis do gosto popular. Na lida pessoal, um sujeito elegante, perspicaz, grande espirituosidade, ouvia e falava pouco mas com propriedade de todos os assuntos, com algumas pitadas enigmáticas.
Morávamos na mesma rua e ficamos de combinar umas violãozadas, mas não deu tempo.
Hoje passei a tarde no estúdio gravando vozes e mais vozes e pensando na extrema fugacidade que é esta profissão: fazer constructos tão abstratos mas capazes de ser tão resistentes, duradouros e ao mesmo tempo fugidios, as canções.
Há poucas semanas, dividimos um rochedão no Santa Tereza, ele, Telo Borges e eu. Lembro-me de pensar nessa trinca ali, um vencedor do Grammy, um cantautor do Brasil profundo mas que teimava em permanecer nessa estranha província, e eu, que nem sei me definir e cuja obra é insignificante, em vários aspectos, em comparação à deles. Mas estávamos ali na total informalidade, como amigos e partícipes de uma coisa maior. Tínhamos feito juntos uma viagem para a Itália, há muitos anos, no mesmo clima.
Essa coisa maior ficou maior ainda hoje, e nós perdemos um dos mais nobres contribuintes dessa coisa que poder-se-ia chamar música mineira.
Salve Vandeco Do Cavaco !!!" Por Pablo Castro
Se eu posso acrescentar alguma coisa, é apenas uma breve nota que ressalta aquilo que tem sido a tecla batida por todos os músicos da cena mineira com quem convivo na hora de apreciar a criação de Vander Lee - sua habilidade em produzir canções afinadas a certos traços do gosto popular sem deixar de lado a elaboração e o acabamento cuidadoso em música e letra, atingindo um equilíbrio possível que lhe permitiu alcançar um grande público, ter sucessos radiofônicos e ser gravado por grandes intérpretes, dentre as quais Gal, Bethânia e Elza Soares, que além de tudo o amadrinhou, tendo influência decisiva no andamento de sua carreira.
Escolhi dar à nota um tom pessoal, escolhendo falar de "Galo e Cruzeiro". Lembro a primeira vez que ouvi essa canção na tv, ele tocando em algum programa local, que nem deve existir mais. A simpatia pela canção foi imediata, um samba carismático, mas a letra é que realmente me chamou à atenção, cheia de achados e mesmo assim mantendo o apelo popular. Na condição de letrista, àquela altura tratando o ofício como algo que merecia o devido esmero, fiquei bem impressionado com a habilidade dele em combinar os universos semânticos da rivalidade futebolística e do relacionamento amoroso sem cair em lances desgastados ou "tocar de lado". Sua desenvoltura em acionar o vocabulário do cotidiano, cozido numa espécie de comédia de costumes, tem um poderoso efeito que é o de desenrolar a narração da partida com imensa fluência e naturalidade. Esperamos certas palavras e situações, e elas aparecem mesmo. Simultaneamente, há dribles mais desconcertantes, passes em profundidade, ou um sutil toque de calcanhar, como quando ele brinca com as palavras em "ela é quem bota fogo" que também remetem ao nome de um famoso clube de futebol, Botafogo. Um toque magistral é a comparação de "status de relacionamento" do eu lírico da canção com o posicionamento do jogador em campo, em "Caí de centro-avante, pra médio-volante, agora sou zagueiro", cujo sentido depende da compreensão de nossa cultura futebolística, que define uma hierarquia simbólica em que o ataque é privilegiado sobre a defesa. E, por fim, com muita visão de jogo, ele brinca com o mascote de seu próprio clube do coração, o Atlético, deixando para a rival amada cruzeirense o papel dominante no espaço em que se dá o certame amoroso, invertendo a figuração recorrente do imaginário futebolístico belorizontino em "Ela fala, eu me calo, ela canta de galo lá no meu terreiro". Isso, pra quem de fato vivencia e reconhece essa rivalidade intestina, tem grande efeito para dar sentido à intensidade do relacionamento de que a canção trata. Em súmula, tudo isso sem perder o gingado, tocando massivamente no AM e no FM.
Né qualquer um que consegue não.
Minha Preta não fala comigo
desde primeiro de janeiro
Ela me deu a mala eu fui dormir na sala,
fiquei sem dinheiro
Não tem mais feijoada, nem vaca atolada,
rabada ou tropeiro
Já fez greve de cama diz que não me ama,
quebrou meu pandeiro
Na hora do cruzamento, ela deu impedimento
ou falta no goleiro
Pra aumentar meu tormento, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro
Com o gol anulado, saí do gramado,
voltei pro chuveiro
Isso tudo porque, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro
Caí de centro-avante, pra médio-volante,
agora sou zagueiro
No último domingo ela foi jogar bingo
e eu fiquei de copeiro
Ela fala, eu me calo, ela canta de galo
lá no meu terreiro
Ela apita esse jogo, ela é quem bota fogo
no nosso palheiro
Ela finge que não, mas no seu coração
ainda sou artilheiro
Só faz isso porque, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro
Ela finge que não, mas no seu coração
ainda sou artilheiro
Só faz isso porque, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro
Morávamos na mesma rua e ficamos de combinar umas violãozadas, mas não deu tempo.
Hoje passei a tarde no estúdio gravando vozes e mais vozes e pensando na extrema fugacidade que é esta profissão: fazer constructos tão abstratos mas capazes de ser tão resistentes, duradouros e ao mesmo tempo fugidios, as canções.
Há poucas semanas, dividimos um rochedão no Santa Tereza, ele, Telo Borges e eu. Lembro-me de pensar nessa trinca ali, um vencedor do Grammy, um cantautor do Brasil profundo mas que teimava em permanecer nessa estranha província, e eu, que nem sei me definir e cuja obra é insignificante, em vários aspectos, em comparação à deles. Mas estávamos ali na total informalidade, como amigos e partícipes de uma coisa maior. Tínhamos feito juntos uma viagem para a Itália, há muitos anos, no mesmo clima.
Essa coisa maior ficou maior ainda hoje, e nós perdemos um dos mais nobres contribuintes dessa coisa que poder-se-ia chamar música mineira.
Salve Vandeco Do Cavaco !!!" Por Pablo Castro
Se eu posso acrescentar alguma coisa, é apenas uma breve nota que ressalta aquilo que tem sido a tecla batida por todos os músicos da cena mineira com quem convivo na hora de apreciar a criação de Vander Lee - sua habilidade em produzir canções afinadas a certos traços do gosto popular sem deixar de lado a elaboração e o acabamento cuidadoso em música e letra, atingindo um equilíbrio possível que lhe permitiu alcançar um grande público, ter sucessos radiofônicos e ser gravado por grandes intérpretes, dentre as quais Gal, Bethânia e Elza Soares, que além de tudo o amadrinhou, tendo influência decisiva no andamento de sua carreira.
Escolhi dar à nota um tom pessoal, escolhendo falar de "Galo e Cruzeiro". Lembro a primeira vez que ouvi essa canção na tv, ele tocando em algum programa local, que nem deve existir mais. A simpatia pela canção foi imediata, um samba carismático, mas a letra é que realmente me chamou à atenção, cheia de achados e mesmo assim mantendo o apelo popular. Na condição de letrista, àquela altura tratando o ofício como algo que merecia o devido esmero, fiquei bem impressionado com a habilidade dele em combinar os universos semânticos da rivalidade futebolística e do relacionamento amoroso sem cair em lances desgastados ou "tocar de lado". Sua desenvoltura em acionar o vocabulário do cotidiano, cozido numa espécie de comédia de costumes, tem um poderoso efeito que é o de desenrolar a narração da partida com imensa fluência e naturalidade. Esperamos certas palavras e situações, e elas aparecem mesmo. Simultaneamente, há dribles mais desconcertantes, passes em profundidade, ou um sutil toque de calcanhar, como quando ele brinca com as palavras em "ela é quem bota fogo" que também remetem ao nome de um famoso clube de futebol, Botafogo. Um toque magistral é a comparação de "status de relacionamento" do eu lírico da canção com o posicionamento do jogador em campo, em "Caí de centro-avante, pra médio-volante, agora sou zagueiro", cujo sentido depende da compreensão de nossa cultura futebolística, que define uma hierarquia simbólica em que o ataque é privilegiado sobre a defesa. E, por fim, com muita visão de jogo, ele brinca com o mascote de seu próprio clube do coração, o Atlético, deixando para a rival amada cruzeirense o papel dominante no espaço em que se dá o certame amoroso, invertendo a figuração recorrente do imaginário futebolístico belorizontino em "Ela fala, eu me calo, ela canta de galo lá no meu terreiro". Isso, pra quem de fato vivencia e reconhece essa rivalidade intestina, tem grande efeito para dar sentido à intensidade do relacionamento de que a canção trata. Em súmula, tudo isso sem perder o gingado, tocando massivamente no AM e no FM.
Né qualquer um que consegue não.
Minha Preta não fala comigo
desde primeiro de janeiro
Ela me deu a mala eu fui dormir na sala,
fiquei sem dinheiro
Não tem mais feijoada, nem vaca atolada,
rabada ou tropeiro
Já fez greve de cama diz que não me ama,
quebrou meu pandeiro
Na hora do cruzamento, ela deu impedimento
ou falta no goleiro
Pra aumentar meu tormento, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro
Com o gol anulado, saí do gramado,
voltei pro chuveiro
Isso tudo porque, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro
Caí de centro-avante, pra médio-volante,
agora sou zagueiro
No último domingo ela foi jogar bingo
e eu fiquei de copeiro
Ela fala, eu me calo, ela canta de galo
lá no meu terreiro
Ela apita esse jogo, ela é quem bota fogo
no nosso palheiro
Ela finge que não, mas no seu coração
ainda sou artilheiro
Só faz isso porque, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro
Ela finge que não, mas no seu coração
ainda sou artilheiro
Só faz isso porque, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro
Uma perda indescritível grande Vander Lee!
ResponderExcluirSem dúvida, Judson! A gente lamenta, e faz a nossa parte pra continuar espalhando as belas canções que nos deixou.
Excluir