Espaço que visa divulgar e disponibilizar trabalhos de criação e crítica referentes à MPB e música popular, não apenas para promover o intercâmbio de gostos e opiniões, mas fundamentalmente catapultar o debate sobre o tema.
Cerejas
Silêncio
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...] Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida." Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
Por Pablo Castro Ouvindo aqui dois discos de Rafas diferentes, ambos pertencentes ao nosso idílico Eldorado Subterrâneo da música autoral mineira.
O mais experiente, cerebral, desconcertante Rafael Macedo, nos instiga e rompe todas as expectativas mais ou menos comuns do que se espera ouvir num disco. Rafa, dessa vez longe do piano, seu instrumento mais comum nos últimos dez anos, continua fazendo superposições de acordes, sempre na contramão de qualquer tipo de padrão melódico e harmônico mais comum em canções, preferindo tirar o ouvinte do conforto com formas, letras, arranjos , escalas e acordes que apontam mais na direção de um certo atonalismo que é assaz representativo de nossa época meio niilista, bizarra, sem sentido. O curioso é que esse disco de Rafa representa, em alguma medida, um retorno a algumas de suas canções mais antigas , que ele havia preterido no seu primeiro disco. "Hoje Eu Acordei Estranho" eu lembro dele tocando numa roça há uns 15 anos. Nessa época, sua mão direita ao violão ponteava umas levadas muito originais. Agora ele volta ao violão, e junto com seu duo de ferro, parceiro de muitos anos de estrada, Bernardo Caldeira e Rafael Lima Pimenta ele retoma aquela doideira calcada em Hermeto e Kurt Cobain, esse é o nosso grande Rafa Macedo.
Já o Raphael Sales , em seu disco de estréia, faz com muita inspiração uma música modal, quase "étnica", mas muito inteligente, melodias muito apuradas, uma canção muito pertinente, que ao trazer calor no coração não doura a pílula desse mundo injusto em que vivemos. Algumas canções são baseadas nos elementos astrológicos : água, vento, fogo e terra. A produção de Rafael Dutra ( outro Rafa ) faz jus ao caráter telúrico do cantor e compositor. De destaque também o timbre muito bonito do artista, e sua capacidade rítmica altamente elaborada e engenhosa ao violão. Rapha Sales já chega completo : faz letra e música muito bem, canta bonito, e está buscando o original, o autêntico, o verdadeiro.
É ouvindo discos assim de nossos pares que nos convencemos que o financiamento à Cultura tinha que parar de focar em EVENTOS e passar a focar em OBRAS. Esses discos tinham que tocar o tempo inteiro na Incondifdência e ser celebrados.
Esse disco fundamental para a história da música brasileira não poderia nunca faltar na coluna Bolacha Completa. Calhou do meu parceiro Pablo Castro escrever o texto que segue e, com o imenso poder de síntese que afinal é mister do cantautor, ainda mais no caso dos bons, como ele, resolver a charada, o enigma da esfinge como certa feita o crítico Renato Moraes denominou Milton. Segue:
"O
espetacular disco Minas é o melhor de sua carreira. Vozerios
ancestrais assombram o território telúrico daquele vinil. Desde os
meninos cantando nanananananana até o coro meio informal que estava
Conversando no Bar, depois de um Beijo Partido. A maior das maravilhas
de Ponta de Areia, lembrando o que já foi. Uma cidade que é moderna e
sonha seus metais traz no lombo , no seu ombro carregando a lona suja do
grande circo humano. A costela que vai se quebrar, o mistério que vai
se mostrar, coração partido, pena , que pena, que coisa bonita. a
palavra que nunca foi dita. Caminho de ferro, velho maquinista com seu
boné, mandaram arrancar. Grande é grande a tua coragem , o teu amor. O
ouro da mina virou veneno, e aquela criança ali sentada. Dizia o cego
ao seu filho.
O nível do adensamento enigmático das palavras e dos sons desse disco
ainda me deixam muito impressionado. Um disco que tem cor, sabor e
cheiro. Vai pra além do arco das canções, pra além de cada acorde, pra
além da elegância, pra além da fluência melódica, pra além das
progressões harmônicas. A voz de Bituca vem do alto da mais alta
montanha. Música total e absolutamente imortal.
Milton Nascimento ... mais Nelson Ângelo, Toninho Horta, Beto Guedes,
Wagner Tiso, Nivaldo Ornellas, Novelli, Paulinho Braga. Obrigado
eternamente. Ronaldo Bastos, Márcio Borges e Fernando Brant. " Pablo Castro
Para o leitor completar a audição com mais imersão sobre o disco, faço algumas indicações de leitura e incluo links e materiais:
O equilíbrio entre o ensaio de ocasião e o estudo de fundo é precário. Escrever neste blog tem sido para mim uma forma de exercitá-lo, desde sempre. Sem dúvida ainda não alcancei o ponto que idealizo, mas tem havido um trânsito interessante, com textos que nascem aqui amadurecendo e se tornando parte de reflexões mais delongadas, que tenho apresentado em eventos ou mesmo aproveitado na feitura de artigos, como no que recentemente publiquei em parceria com o amigo crítico musical, blogueiro de mão cheia e profundo conhecedor da música popular brasileira, Túlio Ceci Villaça, tratando do disco Todo mundo é bom (2016), do Coletivo Chama [aqui].
Neste último sábado tivemos, em horários praticamente simultâneos, dois lançamentos de artistas da mais alta estirpe do cenário musical dessas Minas, o que obviamente é dito sem desconsiderar a dimensão nacional e universal de seus trabalhos. Falo de "Titane canta Elomar na estrada das areias de ouro" no Palácio das Artes e "O anjo na varanda", de Tavinho Moura, no no Bar do Clube da Esquina, ambos em Belo Horizonte. Num daqueles dias em que a gente gostaria de se dividir em dois, compareci ao belíssimo show de Titane e não pude estar no de Tavinho, um lançamento de grande importância. O que já saquei do disco achei de alto gabarito, aliás falar isso do trabalho de Tavinho Moura é chover no molhado.
Aliás, para não ficar redundante, cito as resenhas feitas por meus parceiros Makely Ka para o disco de Titane e Pablo Castro para o show e disco de Tavinho, ambas disponíveis na página de Facebook deste mesmo blog. Obviamente, sugiro que aproveitem o ensejo para conhecer o trabalho de ambos, cuja qualidade os leitores que ainda não conhecem facilmente constatarão. Vamos a elas:
"A proposta de gravar um álbum com a obra do compositor preenche uma lacuna no nosso cancioneiro e se justifica pelo ineditismo do registro de um conjunto de suas canções com forte herança ibérica numa voz feminina de tradição popular. Na linhagem trovadoresca que remete aos provençais e galego-portugueses, Titane estabelece um arco atemporal atualizando a força ancestral dessa obra contemporânea no universo cancional brasileiro. A obra de Elomar é um portal entre dois universos, dois mundos distintos, uma fenda no espaço-tempo para penetrar em um imaginário mítico-poético atemporal. A localização geográfica habitada por seus personagens pode ser visualizada facilmente nos mapas, na divisa entre o norte de Minas e o sudeste da Bahia, mas através do prisma elomariano tudo parece transmudado e se desvela um outro universo.
Titane por sua vez sempre pautou sua carreira pelas escolhas rigorosas, do repertório aos arranjos, tudo sempre foi feito de forma a desafiar os limites de sua interpretação, sustentada por uma voz afiada como lâmina. Seu caminho até aqui é único e seus passos sempre foram firmes a ponto de transformá-la numa das mais importantes intérpretes brasileiras. Ela agora se embrenha nas estradas das areias de ouro, no sertão profundo, provavelmente um de seus maiores desafios, trazendo de sua viagem ecos de outrora, visagens do futuro, regalos do presente.
Titane, em trinta anos de carreira ainda não havia se dedicado a um único compositor. Da mesma forma não há registro fonográfico de outra cantora que tenha realizado um trabalho a partir de um conjunto de canções selecionadas da obra de Elomar. É um encontro especial que celebra outros encontros.
Entre eles, o encontro de Titane e Hudson Lacerda, violonista de grande precisão técnica, compositor erudito impregnado pela música popular brasileira, Hudson é um dos responsáveis pela transcrição de partituras do rigoroso Cancioneiro de Elomar Figueira Mello, obra fundamental de registro com um recorte específico e imprescindível da produção elomariana.
Celebra ainda o encontro do erudito com o popular em uma perspectiva subliminar ao optar por um formato acústico que remete tanto à sofisticação das formações camerísticas quanto à simplicidade de um recital de música popular, destacando a arquitetura dos arranjos já intrínsecos às composições e valorizando a imponência da voz em estado bruto.
Cruzando referências dos negros trazidos para trabalhar no garimpo do ouro e do diamante no Sudeste com a herança hibérica disseminada pelos europeus no Nordeste brasileiro, o encontro da cantora mineira da cidade de Oliveira e do compositor baiano de Vitória da Conquista promove uma aproximação de universos diferentes mas complementares, do ancestral com o contemporâneo, do sertão com o cerrado." Por Makely Ka
Sobre o show em si, acrescento que a performance segura de Titane, sempre em contato direto com a terra e encantando o público com a presença cênica e a força de sua voz, completou-se com a poderosa inserção de trecho do Dom Quixote de Cervantes tratando da condição feminina, como a própria cantora explica nessa boa matéria do Estado de Minas. O desempenho dos músicos que lha ladearam no palco foi impecável, e ela gentilmente reservou a cada um uma apresentação especial, mais que devida. Foram eles meu Hudson Lacerda (violão)e André Siqueira(bouzouki), meu querido parceiro Kristoff Silva (diretor musical do álbum, que cantou lindamente e percutiu delicadamente marimba), Aloízio Horta (contrabaixo acústico) e Toninho Ferragutti (acordeom). Nesta apresentação no Programa Sr Brasil é possível ter uma pequena provinha:
O mestre Tavinho Moura lançou mais um disco ontem, O Anjo na Varanda, modestamente e discretamente no Bar do Clube da Esquina. Sua obra parece marcenaria musical. Ele faz canções com um frescor, aparentemente sem nenhuma ideia pré-concebida sobre o que deveria ser uma canção, que tipo de letra e forma e mesmo harmonia deve ter uma canção. Ele faz canções como objetos sensíveis, como móveis, quadros, cadeiras, mas nada funcionais , apenas objetos nutridos de uma integridade de uma originalidade acachapantes.
O seu canto é rigorosamente atado à melhor prosódia possível, um cuidado metódico. É sempre notável como, em comparação com versões de suas canções na voz de Beto Guedes, um cantor mais animado e emocionado, Tavinho imprime uma sobriedade, um certo comedimento, como para que evitar que a música se superponha à palavra.
Acompanhado pelo insubstituível Beto Lopes , com participações vocais especialíssimas de Mariana Brant, Bárbara Barcellos e Amaranto, Tavinho Moura fez um show bonito, mas o que interessa em sua apresentações é a sua obra, antes de mais nada : trata-se de um criador talhado, mas com temperamento de artesão , com uma profundidade e uma convicção que não dá espaço para qualquer tipo de exagero ou afetação.
Eu aconselho vocês ouvirem esse disco recém-lançado, mas também toda a obra desse compositor extremamente original que temos. Tavinho é gênio. Por Pablo Castro
Para além dos evidentes laços geográficos, que demonstram a incontestável pujança da música popular feita em nosso estado, no contexto nacional e internacional - e deixo a provocação: vejamos a frequência com que ambos os discos serão lembrados naquelas famigeradas listas de melhores ao final deste 2018 - o que quero ressaltar é essa qualidade compartilhada em ambos e afirmada em tantas obras que integram a história de nossa música popular: o esmero, o apuro, o rebuscamento, a elaboração que perpassa esse grande oceano de canções, arranjos, gravações, interpretações e apresentações. Dentre os grandes fenômenos da história da cultura no século XX certamente poderemos posicionar a explosão das distinções apriorísticas entre as hierarquias socialmente construídas para criar, reproduzir, circular e ouvir música. Não resta dúvida de que o desafio às fronteiras previamente estabelecidas, valor estético consagrado na modernidade, teve nos músicos populares alguns de seus melhores protagonistas (aqui não resisto a uma ponte com a trajetória de Piazzolla, cuja biografia foi alvo de uma recente postagem, mas remeto-me ainda à resenha que escrevi do livro O triunfo da música, de Tim Blanning). Mas se o liquidificador energizado pela indústria fonográfica tritura ingredientes e põe no balcão tantos milkshakes cuja variação de sabor mal esconde sua semelhança, não a livra, definitivamente, das contradições que são necessárias admitir para que uma certa magia ponha em movimento o câmbio dos gostos. Seu sabor de mercadoria não pode descartar a insistência de outros códigos concomitantes, de outras ordens que não lhe são completamente coincidentes, como as que regem o campo das artes (ver Artistas da fome e o valor da bolacha) ou o do trabalho do artesão, com seus modos de fazer, estética e esmero. É um lugar comum dizer que a música popular historicamente foi definitivamente imbricada à fonografia. Mas como historiador tenho o cuidado de notar que a primeira antecede à segunda, e de que na receita que a compõe há traços de fazeres musicais anteriores e contrastantes à própria modernidade, ao capitalismo e seus valores. Há gente que esquece disso. E o esquecimento é um dos grandes males de nosso tempo. Aparece, por exemplo, quando se constitui uma percepção binária sobre o objeto música, através de associações mecânicas entre os sujeitos em seus lugares sociais de origem e a lógica de sua produção e consumo. Criou-se uma espécie de fronteira artificial, felizmente desconhecida pela maioria dos músicos, mas obviamente muito conveniente para a vida dos críticos e também dos tais "influenciadores de rede social", cujas opiniões são tão estereotipadas quanto a do um fantasioso bunker de defensores do bom gosto que pretendem explodir, ignorando que tal já foi feito ao longo do próprio século XX. Uma boa mostra disso se encontra nesta postagem recente, crítica de uma crítica ao último single da cantora Marina Lima. A revolta extemporânea contra o elitismo que pauta tais críticos e de modo geral nuns tantos autointitulados ativistas da cultura, ao desconhecer as rupturas e aproximações materializadas claramente na obra de um Elomar, de um Tavinho, e de resto um sem número de criadores que povoam a grande galáxia de nossa música popular, aparenta ser inclusiva e tolerante, mas é finalmente conformista, paternalista e excludente, pois sua consequência é subestimar as possibilidades de fruição e elaboração daqueles que supõe defender, além de manter canais fechados onde deveria querer abri-los, como eu já havia considerado nessa postagem em comentário a um texto do Hermano Vianna. Este é um esforço em andamento para superar generalizações e relativizações, e nesse sentido as apreciações dos trabalhos de Titane e Tavinho Moura me pareceram ótimos catalizadores de um raciocínio que ainda preciso burilar, mas que essencialmente trata de reconhecer que o esmero não tem classe, o que não equivale nem de longe a desconsiderar a importância da classe como categoria para pensar sobre estética e criação - o mesmo para qualquer outra categoria chave como gênero, etnia, espaço, campo, tempo, etc. - mas sim entender que a limite para sua influência, como apontei anteriormente em A origem de classe na música popular não é o seu ponto final. Na verdade, me parece estratégico para a compreensão da vitalidade das culturas populares reconhecer que o esmero não é um elemento estranho a elas, incorporado num enxerto de erudição, de valores elitistas. É mais lógico reconhecer que ela tem suas próprias maestrias e sofisticações, através das quais muitas pontes foram construídas como podemos constatar através de estudos tão diversos como os de Ariano Suassuna ou de Peter Burke. Eventualmente imperceptíveis ao ouvido academicista de anteontem, mas que paradoxalmente hoje estão inaudíveis para a crítica pós-modernosa. Se queremos entender as hibridações e trânsitos que de fato foram responsáveis pela demolição de barreiras culturais e consequente polinização mútua de tantas expressões que nos movem, é preciso superar essa audição folclorista invertida, que na prática expropria todo o oceano de variedade e qualidades de ouvintes que são convencidos que a poça d'água que lhes é oferecida lhes basta porque é sua, quando na verdade é deles tanto o mar quanto o sertão.
O falecimento do cantautor Vander Lee ontem (05/08) deixou a todos em choque, sentimento que se intensifica aqui em Belo Horizonte, sua terra natal . Uma perda para a música popular brasileira em geral e mineira em particular. Penso no papel que cabe a um blog como este nessas horas, devotado especialmente ao conhecimento, à apreensão, ainda que de variados ângulos, do que representa a música popular. Além, portanto, de homenageá-lo, senti que seria justo trazer algumas linhas sobre sua carreira e obra. Entretanto eu não queria que fosse nada como esses epitáfios de praxe, como os que os leitores poderão encontrar em portais de notícia e jornais de grande circulação [matéria completa]. Como tantas vezes ocorre, meu parceiro Pablo Castro produziu um texto à altura da tarefa e eu me senti incumbido a abrir espaço aqui:
"Que dia estranho ...
Acordar com a notícia da morte prematura e inesperada do Vander Lee ...
Ele era, de todos os mineiros cantores e compositores independentes, o mais bem sucedido, tinha público no país inteiro, cantava suas composições que tinham um pé no Brasil profundo, e nunca resvalavam para o popularesco, para o fácil, apelativo, ainda que estivesse sempre próximo do clichê radiofônico. Muito bom letrista, muito bom melodista, muito bom cantor, versátil, capaz de sambas, emboladas, toadas, baladas, tudo seguro na sua mirada.
Para além disso, era um de nós. Não encarnava nunca qualquer pretensão de superioridade advinda desse sucesso, não um sucesso estrondoso, espalhafatoso, mas um sucesso silencioso, enterrado nas raízes quase invisíveis do gosto popular. Na lida pessoal, um sujeito elegante, perspicaz, grande espirituosidade, ouvia e falava pouco mas com propriedade de todos os assuntos, com algumas pitadas enigmáticas. Morávamos na mesma rua e ficamos de combinar umas violãozadas, mas não deu tempo. Hoje passei a tarde no estúdio gravando vozes e mais vozes e pensando na extrema fugacidade que é esta profissão: fazer constructos tão abstratos mas capazes de ser tão resistentes, duradouros e ao mesmo tempo fugidios, as canções. Há poucas semanas, dividimos um rochedão no Santa Tereza, ele, Telo Borges e eu. Lembro-me de pensar nessa trinca ali, um vencedor do Grammy, um cantautor do Brasil profundo mas que teimava em permanecer nessa estranha província, e eu, que nem sei me definir e cuja obra é insignificante, em vários aspectos, em comparação à deles. Mas estávamos ali na total informalidade, como amigos e partícipes de uma coisa maior. Tínhamos feito juntos uma viagem para a Itália, há muitos anos, no mesmo clima. Essa coisa maior ficou maior ainda hoje, e nós perdemos um dos mais nobres contribuintes dessa coisa que poder-se-ia chamar música mineira. Salve Vandeco Do Cavaco !!!" Por Pablo Castro
Se eu posso acrescentar alguma coisa, é apenas uma breve nota que ressalta aquilo que tem sido a tecla batida por todos os músicos da cena mineira com quem convivo na hora de apreciar a criação de Vander Lee - sua habilidade em produzir canções afinadas a certos traços do gosto popular sem deixar de lado a elaboração e o acabamento cuidadoso em música e letra, atingindo um equilíbrio possível que lhe permitiu alcançar um grande público, ter sucessos radiofônicos e ser gravado por grandes intérpretes, dentre as quais Gal, Bethânia e Elza Soares, que além de tudo o amadrinhou, tendo influência decisiva no andamento de sua carreira. Escolhi dar à nota um tom pessoal, escolhendo falar de "Galo e Cruzeiro". Lembro a primeira vez que ouvi essa canção na tv, ele tocando em algum programa local, que nem deve existir mais. A simpatia pela canção foi imediata, um samba carismático, mas a letra é que realmente me chamou à atenção, cheia de achados e mesmo assim mantendo o apelo popular. Na condição de letrista, àquela altura tratando o ofício como algo que merecia o devido esmero, fiquei bem impressionado com a habilidade dele em combinar os universos semânticos da rivalidade futebolística e do relacionamento amoroso sem cair em lances desgastados ou "tocar de lado". Sua desenvoltura em acionar o vocabulário do cotidiano, cozido numa espécie de comédia de costumes, tem um poderoso efeito que é o de desenrolar a narração da partida com imensa fluência e naturalidade. Esperamos certas palavras e situações, e elas aparecem mesmo. Simultaneamente, há dribles mais desconcertantes, passes em profundidade, ou um sutil toque de calcanhar, como quando ele brinca com as palavras em "ela é quem bota fogo" que também remetem ao nome de um famoso clube de futebol, Botafogo. Um toque magistral é a comparação de "status de relacionamento" do eu lírico da canção com o posicionamento do jogador em campo, em "Caí de centro-avante, pra médio-volante, agora sou zagueiro", cujo sentido depende da compreensão de nossa cultura futebolística, que define uma hierarquia simbólica em que o ataque é privilegiado sobre a defesa. E, por fim, com muita visão de jogo, ele brinca com o mascote de seu próprio clube do coração, o Atlético, deixando para a rival amada cruzeirense o papel dominante no espaço em que se dá o certame amoroso, invertendo a figuração recorrente do imaginário futebolístico belorizontino em "Ela fala, eu me calo, ela canta de galo lá no meu terreiro". Isso, pra quem de fato vivencia e reconhece essa rivalidade intestina, tem grande efeito para dar sentido à intensidade do relacionamento de que a canção trata. Em súmula, tudo isso sem perder o gingado, tocando massivamente no AM e no FM. Né qualquer um que consegue não.
Minha Preta não fala comigo
desde primeiro de janeiro
Ela me deu a mala eu fui dormir na sala,
fiquei sem dinheiro
Não tem mais feijoada, nem vaca atolada,
rabada ou tropeiro
Já fez greve de cama diz que não me ama,
quebrou meu pandeiro
Na hora do cruzamento, ela deu impedimento
ou falta no goleiro
Pra aumentar meu tormento, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro
Com o gol anulado, saí do gramado,
voltei pro chuveiro
Isso tudo porque, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro
Caí de centro-avante, pra médio-volante,
agora sou zagueiro
No último domingo ela foi jogar bingo
e eu fiquei de copeiro
Ela fala, eu me calo, ela canta de galo
lá no meu terreiro
Ela apita esse jogo, ela é quem bota fogo
no nosso palheiro
Ela finge que não, mas no seu coração
ainda sou artilheiro
Só faz isso porque, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro
Ela finge que não, mas no seu coração
ainda sou artilheiro
Só faz isso porque, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro
Provocado pela matéria publicada no site noisey, "BH é o Texas: o rock triste e a cena fantasma de Belo Horizonte" (completa, aqui), meu parceiro Pablo Castro escreveu esse comentário que foi muito além da matéria - diga-se de passagem, jornalismo ruim, incapaz de dar voz a outros pontos de vista a respeito do assunto que trata ou verificar determinadas informações.
Por Pablo Castro
Para além de ser contestado quase que unanimemente pelos próprios
roqueiros da cidade, o conteúdo da matéria " BH é o Texas " incorre no
mesmo erro ancestral do rock : se fechou em si mesmo, como uma espécie
de torcida de futebol difusa e desorganizada, querendo o tempo inteiro
estigmatizar qualquer influência que seja em alguma medida brasileira,
ainda que o rock seja um de seus elementos, como a Tropicália e o Clube
da Esquina, respostas diferentes para questões semelhantes.
Eu acho engraçado por dois motivos : da cena autoral de MPB da cidade
eu sou talvez o que mais diretamente conversa com a influência do rock, e
também me considero o que mais afirma minha afinidade e minha admiração
para com a obra do Clube da Esquina. Isso contudo não significa nem que
meu trabalho é de rock nem que eu tente imitar ou recauchutar o Clube ,
que é uma das várias facetas da minha busca como compositor. É possível
amar uma obra, ser influenciado por ela e ao mesmo tempo não querer
repeti-la. E mais, conheço, no estado de Minas, excelentes experiências
criativas mais inequivocamente informadas pelo Clube e que também não
lhe são imitações, como o que faz meu amigo Clayton Prosperi
, que esteve aqui semana passada , a quem não pude assistir justamente
por ocasião da minha apresentação com o Lô na casa A Autêntica. Até
porque o que se chama de Clube da Esquina tem lados muito
diversificados, Toninho Horta de um lado, Tavinho Moura de outro, Nelson
Ângelo de um lado, Beto Guedes de outro. Não se trata de forma alguma
de uma obra homogênea. A genialidade de Milton de alinhavar tão
heterogêneas direções nos mesmos discos tem a ver com a sua própria
capacidade de sintetizar esse mosaico de forma bem acabada.
O que
é chamado de rock hoje é qualquer agremiação musical que olha e olhará
sempre para fora e não enxergará o que está próximo, desde que tenha
guitarras elétricas , baixo e bateria. Acho que isso é uma opção, claro,
mas depois não reclamem que a "cena não dialoga". Nem mesmo as bandas
clássicas da década de 90, como Cartoon, Calix e Somba, ainda na ativa,
são sequer mencionadas por uma matéria que credita a reputação do
Graveola ao Fora do Eixo (???) , e que fala de umas bandas de que eu
realmente nunca ouvi falar.
A música de Minas é grande, e
variada. É a maior província do Brasil, mas provavelmente é o maior
celeiro. A mim não me interessa me filiar a um nicho que se considera
escolhido por Deus ou pelo Diabo a ser algo "oxigenado" por quem ignora a
grandeza do que ultrapassa os cercadinhos do que se chama de rock. Sou
músico pela música, e ela é muito maior do que uma espécie de
super-gênero meio messiânico.
Apenas para finalizar, o compositor
de mais estofo da minha geração, do Rio de Janeiro, qualifica a
produção de canções em Minas como a mais rica do Brasil. E ele não se
preocupa se é rock, baião, balada, sertão, barroco, música de câmara,
valsa, arrasta-pé, reaggae ou que seja. A nossa música vai mais além.
Tô meio apertado de serviço para produzir qualquer coisa mais substanciosa que faça conexão entre os estudos de desastre em geral e o recente acontecido em Mariana. O que posso dizer é que nessas horas se revela a importância da História. É ela que permite, por exemplo, estabelecer os nexos profundos entre esse tipo de desastre, o modelo de civilização que adotamos, e as forças que se mobilizam na arena política e no campo da cultura para produzir a justificativa e perpetuação de um estado de coisas. Pelas leituras, e também pela pesquisa em jornais que fizemos, quem se interessar poderá constatar que os recursos retóricos não variam muito, sempre recorrendo ao conceito de "fatalidade" e afins como forma de isentar os responsáveis [ver a fala do secretário de Estado de Desenvolvimento Econômico, Altamir Rôso], e que escusos interesses comerciais invariavelmente estão presentes e são em boa parte os responsáveis por essas catástrofes, que nada tem de natural.
A Estratégia Internacional de Redução de Desastre (ISDR) da ONU define desastre ou catástrofe como “grave perturbação do funcionamento de uma comunidade ou de uma sociedade envolvendo perdas humanas, materiais, econômicas ou ambientais de grande extensão, cujos impactos excedem a capacidade da comunidade ou da sociedade afetada de arcar com seus próprios recursos” (UNISDR, 2009). O risco, portanto, não se caracteriza tão somente a partir das condições naturais, mas da combinação de fatores espaço-temporais que levam em conta os limites de adaptação ou resiliência aos eventos em questão. Daí a importância de utilizar o conceito de vulnerabilidade social, que nos permite articular a percepção dos indicadores de risco ambiental à das desigualdades que caracterizam a ocupação dos territórios, de modo a identificar populações que estão sob condições mais desfavoráveis e repensar políticas públicas que sejam efetivas para combater tal vulnerabilidade. Quem quiser se aprofundar nessas discussões pode recorrer à página do projeto que coordenei enquanto fui professor da Univale, em Governador Valadares [aqui].
Mais uma coisa a se aprender (será que é possível???) - e aqui fica o lamento porque tantas vezes nesse mundo nosso as preocupações e reflexões só deslancham depois que o caldo entorna - é o valor dos profissionais de campos de conhecimento, dos que entendem do riscado e fazem alertas sobre situações como essa por anos e anos [ver o relatório de 2013]. Dos pesquisadores, dos funcionários de órgãos públicos, anônimos, quase afônicos, que redigem relatórios catataus que ninguém lê. Ou que são silenciados pq o que têm a dizer contraria interesses poderosos, vai contra a força da grana. Existe uma falinha nefasta que circula pelas mesas das recepções bacanas, pelas festas invocadas, pela night dos bem nascidos, pregando a privatização de tudo, denegrindo o servidor público em geral, e outras asneiras afins. Mas não é assim que devem ser visto, e sim como servidores, aliados de todos nós sociedade civil, de nós, cidadãos, gente comum que não tem acesso, que não banca campanha de deputado, que não sonega quantias vultuosas nem mantém conta na Suíça. De nós, meros. Essa mesma gente da falinha jamais ergue a voz pra questionar algo que um empresário faz. No máximo sussurra ao pé do ouvido. Pode ser perigoso, seus filhos podem ouvir e começar a achar que ser empresário e ser "do bem" não é a mesma coisa. Enquanto a sociedade não revê seus valores, vamos nessa, um dia todas as torneiras irão jorrar lama. Tóxica.
Mas outras falas se acumulam e se postam contra uma outra morte, a morte do esquecimento, do engano, da omissão, a morte das brechas da lei, dos homens que sabem andar por elas. Somos pela vida e contra todas essas 2as mortes que desde já querem impingir aos mineiros assassinados pela ganância e pela inépcia, pela lama da indústria do minério. E nesse sentido eu recorro à belíssima - e tristíssima - canção Simples, de Nelson Angelo, gravada primeiramente por Milton Nascimento no LP Minas, em 1975. A densidade do arranjo, também obra de seu compositor, expressa perfeitamente a atmosfera pesada que a letra enuncia, ironicamente talvez não tendo muito de simples. O final, arrebatador, é lançado pela poderosa imagem da criança. Se até aqui o eu-lírico nos conduz, de repente como um Virgílio a nós como Dantes a encarar a conversão da terra em inferno, e até então cumpria-nos simplesmente olhar, a criança, interposta - "ali sentada" - diante de nossos olhos, como que antes do cenário de desolação, nos olha de volta. É a expressão do colapso do futuro, de sua eminente não realização. Mas enquanto a voz dilacerante de Milton se perde na micro-eternidade do estéreo, o acorde final é como uma revoada de sons e pássaros, uma promessa de regeneração. Promessa que, ainda que ameaçada, resiste, daí sua volta como expressão de início/nascimento nos primeiros compassos de Geraes (1976), que abre justamente com Fazenda, a canção gêmea desta também escrita pelo Nelson Angelo. Acabei achando uma versão ao vivo executada em 1990, que não conhecia. Encontrei também, por tabela, uma apresentação ao vivo de 1983 em que Bituca executa A chamada, seu impressionante canto de sereia composto inicialmente para a trilha de Os deuses e os mortos de Ruy Guerra. O arranjo de "Simples" nessa performance de 1990, que infelizmente pelo vídeo não consegui determinar o autor, parece ter tirado ideias dela.
Simples (N.Angelo)
Olha a volta do rio virou a vida
A água da fonte nossa tristeza
O sol no horizonte uma ferida
Olha o ouro da mina virou veneno
O sangue na terra virou brinquedo
E aquela criança ali sentada
Estive ontem na Fafich, com grande satisfação, a convite da querida colega Miriam Hermeto, professora do departamento de História da UFMG, participando da mesa "A música de Minas entre a História e a Memória" ao lado do compositor Toninho Camargos, integrante do grupo Mambembe, cuja criação, atuação e engajamento nos tempos difíceis da Ditadura Militar pude conhecer melhor, junto com os demais presentes. Só por isso já é digna de elogio a iniciativa da Miriam, e torço para que essa iniciativa se propague e lance luz sobre outros momentos e protagonistas de nosso cenário musical que de certa forma ficam à margem de uma memória oficial que se configura basicamente na combinação do que promove a indústria fonográfica e a preferência dos resenhistas da grande imprensa.
Mas acho muito gratificante participar de uma mesa em que o debate franco e o envolvimento de todos acaba repercutindo muito além daquelas horas que ali ficamos, e essa pra mim foi assim. Tanto que abri agora há pouco uma postagem que compartilha a coluna do Zé Miguel Wisnik em O Globo, intitulada "Feira e devaneio", e não pude evitar retomar algumas das questões e reflexões da noite de ontem. Até porque me achei meio "jazzista" (deve ser a influência do livro do Becker [ver a postagem especial], que estou tentando evitar de acabar de ler) e me empolguei nos improvisos, deixando certamente muitas frases no ar...
Enfim, vou reter aqui o trecho que me instigou: "Do samba à bossa nova e à MPB, de Villa-Lobos e os compositores nacionalistas a Tom Jobim, da antropofagia à Tropicália, de Graciliano ao Cinema Novo, com todas as diferenças implicadas, a cultura brasileira dos anos 20 aos 60 do século XX foi movida em grande parte pelo desejo de equacionar a nação na perspectiva de uma original combinação do erudito com o popular. Combinação que resta, aliás, como seu traço diferencial inequívoco. E Brasília, com todas as suas contradições, e sua grandeza, é o próprio símbolo de um projeto nacional guiado pela elite intelectual modernista.
A ditadura veio marcar o fim desse ciclo de grandes obras totalizantes. Junto com ela, a televisão em rede nacional, ocupando todos os espaços e movendo-se pelo território nacional com uma facilidade que Macunaíma só tinha com a licença poética e imaginária do folclore. Vou isolar abruptamente um dado dessa nova realidade: a publicidade bombardeando todas as classes sociais pela televisão aberta com as promessas miríficas das mercadorias às quais os despossuídos só têm acesso imaginário"
Lembro que recordei minha inquietação com esse olhar - e escutar - tão enviesado que opunha tão categoricamente os 1960 e os 1970. A conta, pra mim, não foi fechada, aliás a ditadura e o fenômeno da televisão vão mais é ser variáveis importantes a fazer parte da equação. Isso me faz retomar o primeiro capítulo da minha tese, justamente intitulado Feira Moderna: modernidade, internacionalização da cultura e música popular, do qual tinha planos de extrair um trecho para apresentar na mesa, mas acabei optando por restringir a breves comentários sobre a canção que inspirou tal título. Assim acabei tendo vontade de reproduzir aqui essa seção do texto (pags.56-59), claro que deslocado do grande arco argumentativo feito ao longo do capítulo, mas creio que válido ante a oportunidade de acrescentar algo que ficou por dizer na mesa e também como comentário ao escrito de Wisnik. Segue:
Por hora, vou valer-me de quatro canções que concorreram em festivais para identificar linhas de força deste debate, que irei retomar em outros capítulos. São elas Roda Viva (Chico Buarque), Alegria, alegria (Caetano Veloso), ambas do III Festival da Música Popular Brasileira (Record, 1967); Comunicação (de Edson Alencar e Hélio Matheus, defendida pela cantora Vanusa), do V Festival da mesma Record (1969); e Feira Moderna (Lô Borges, Beto Guedes e Fernando Brant), do V FIC (Globo, 1970).
Roda Viva, composta para a peça teatral homônima, trata do artista que se vê apanhado nas armadilhas da máquina comercial:
“Tem dias que a gente se sente/ Como quem partiu ou morreu (...) A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar /Mas eis que chega a roda viva/ E carrega o destino pra lá”
A sensação de rodopiar, tragado pela “roda viva”, é reforçada pelo arranjo de vozes do refrão (com participação do conjunto MPB4), principalmente ao final, em que é repetido com andamento cada vez mais acelerado, como se fosse a própria roda girando cada vez mais rápido: “Roda mundo, roda gigante/ Roda moinho, roda pião/ O tempo rodou num instante/ Nas voltas do meu coração”. O turbilhão carrega tudo aquilo que o narrador valoriza: o destino, a roseira, a viola, o samba, a saudade. O protagonista procura manter a resistência, “vai contra a corrente”, “toma a iniciativa”, mas seus esforços são vãos, pois “foi tudo ilusão passageira”. O canto de Chico, angustiado, denota o impasse e a impotência diante da máquina que também o carregava contra a vontade naquela época, após o sucesso estrondoso de A banda.
Já Alegria, alegria, expressa um ponto de vista emocional diametralmente oposto, em que o protagonista da canção, diante dos impasses da vida moderna e da realidade cotidiana da sociedade de consumo, aventura-se:
“Caminhando contra o vento/sem lenço sem documento/ (...) espaçonaves guerrilhas/em cardinales bonitas/eu vou/ em caras de presidentes/(...)bomba ou Brigitte Bardot (...)”
O narrador procura se ambientar ao cenário: “eu tomo uma coca-cola (...) e uma canção me consola”. Segue vivendo, e vendo “o Sol nas bancas de revista”, iluminado por ícones pop, uma imagem perfeitamente traduzida musicalmente na sonoridade eletrificada por órgão e guitarra do arranjo. O universo da indústria cultural é recebido numa canção de melodia e harmonia solares. Ante a angústia que assola o protagonista de Roda Viva, a alegria descompromissada, alheia a exigências intelectuais e políticas: “sem livros e sem fuzil”. Porém, num efeito tipicamente tropicalista, a canção pode ser lida em registro crítico, a começar pela forma do ritmo musical escolhido, a marcha. Se revela a integração do poeta que pensa “em cantar na televisão”, afirma seu caráter desafiador da ordem, simbolizada em instituições como o casamento e a escola. Ele, moderno, vai, “sem lenço e sem documento”.
Comunicação (a canção também foi gravada por Elis Regina em ...Em pleno verão. Philips LP, 1970), uma montagem com trechos de textos publicitários em que produtos de consumo dos mais diversos tipos se confundem, mostra um narrador perplexo como o de Roda Viva, mas lançado numa selva de signos como o de Alegria, alegria. Enlouquecendo, ele responde a mais uma pesquisa: “(...) já sou fã/ Do comercial”. O consumo é engendrado pela ciranda midiática: “Só tomava chá/ Quase que cansado vou tomar café / Ligo o aparelho vejo o rei Pelé/ Vamos então repetir o gol”.
Feira Moderna, por fim:
“Tua cor é o que eles olham,/ velha chaga
Teu sorriso é o que eles temem,/ medo, medo
Feira moderna, o convite sensual / Oh! telefonista, a palavra já morreu
Meu coração é novo / Meu coração é novo/ E eu nem li o jornal
Nessa caverna, o convite é sempre igual /
Oh! Telefonista, se a distância já morreu
Independência ou morte / Descansa em berço forte/
A paz na terra amém”
Esta música, que foi defendida pelo conjunto Som Imaginário no FIC em 1970 e gravada em seu primeiro LP (depois gravada por Beto Guedes no LP Amor de índio, em 1978) capta bem a associação entre os modernos meios de comunicação e o misto de espanto e sedução que atingem o homem moderno. A morte da “distância” e da “palavra” está associada a um meio que parece não dar conta de comunicar a novidade - o jornal. Anuncia-se uma nova fase em que o “agora” torna-se o tempo por excelência do mundo do capital, mas também, o que é muito interessante, o tempo por excelência da transformação. Porém, uma sutileza que chama bastante atenção é que esta urgência de “novidade” (muito bem simbolizada na figura da telefonista) vem entremeada por referências ao passado e a textos tradicionais, como o Hino Nacional, o Pai Nosso e o mito da caverna. Se a “feira” é “moderna” e o “convite” é “sensual”, este também é “sempre igual”, o que significa que o mercado pode ser percebido como algo que integra um conjunto de sistemas normativos que em algum momento da história estiveram restringindo a ação humana. Esta tensão entre a urgência do novo, própria do capitalismo, e a idéia de que o novo é uma reedição diferente da ancestral luta pela liberdade humana transparece em todo arranjo na versão do Som Imaginário, um desobediente rock selvagem com órgão elétrico e vocal gritado de Zé Rodrix. As quatro canções revelam, portanto, como compositores e intérpretes representativos do cenário de gestação da MPB expressaram posicionamentos atentos – ainda que diversos – sobre o impacto da indústria cultural sobre a sociedade brasileira e sobre seu fazer artístico naquele momento.
Por várias oportunidades tratei em minhas pesquisas e aqui no blog dos meios massivos e de seu papel decisivo na constituição da música popular registrada através da fonografia. Uma das linhas de argumentação tem sido mostrar, via de regra com material de época, que a programação dos referidos meios já comportou, em destaque, o que representava então o sumo da produção autoral em matéria de música popular brasileira. Isso não significa um posicionamento num dos pólos da percepção dualista em que se oponha, para emprestar os termos de Umberto Eco, os apocalípticos e os integrados. Para reconhecer os meios e sua complexidade no contexto da modernidade e do capitalismo, há que se dar conta de suas contradições e de sua historicidade. E ao fazermos isso, abandonarmos a percepção desses "meios" como entidades fechadas em si, para percebê-los envolvidos em mediações protagonizadas por diferentes atores da sociedade, na linha do que propõe Jésus Martin-Barbero em Dos meios às mediações.
Aqui não quero me alongar numa exposição teórica, pois escrevo mais para alinhavar ideias que ocorreram a partir do apelo/crítica que meu parceiro Pablo Castro (cuja essência procurei capturar na citação abaixo) lançou hoje via facebook e durante o dia foi debatido por vários participantes da cena musical belorizontina.
"Há algum tempo eu queria fazer essa crítica e esse apelo à nossa Rádio Inconfidência: toquemos nossos artistas, não como iniciantes ou decadentes, mas como se fossem os mais importantes do país e do mundo , não apenas por serem eles daqui, mas acima de tudo porque a música que se faz aqui não está atrás da música do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Pernambuco, ou da Bahia, ou de Nova Iorque ou de Londres, em qualquer quesito importante, mas está à frente em pelo menos uma coisa : o ineditismo, por essa música autoral local hoje ser um tesouro submerso e francamente desperdiçado, como rios que nunca desaguam no mar, deixando de cumprir sua função social: se associar à vida das pessoas ser compartilhada e dar identidade ao que somos, onde estamos e no tempo em que vivemos! (...) infelizmente a programação esmagadoramente predominante da Inconfidência consiste de um repertório das décadas de 70 e 80, ou versões pops dos mesmos velhos clássicos, e acaba por não formar público para artistas mineiros e fora da indústria ou de segmentos muito específicos do eixo Rio-São Paulo.Melhor do que tocar um disco inteiro na íntegra, talvez fosse escolher 2 ou 3 músicas mais radiofônicas de cada artista, e tocá-las com a frequência com que se tocam sucessos de 30 anos atrás, que muita gente conhece, mas que são anacrônicos. Não me parece razoável que uma rádio pública de uma cidade onde se produz tanta música de qualidade tenha uma programação tão desvinculada dessa produção. O que é contemporâneo na programação da inconfidência, parece vir de um filtro pop ( no lato sensus, o samba hoje é super pop ) muito orientado pela produção pop\samba carioca, particularmente, e fica patente que , salvo alguns nomes mineiros, mais altos na pirâmide hierárquica simbólica da MPB mineira, como Milton e o Clube da Esquina, Skank, Pato Fu, Vander Lee, todo o resto dos artistas não conseguem se "infiltrar" nessa companhia ilustre. Inverter essa equação, priorizando a produção musical local e contemporânea, formando público que não terá outra alternativa pra ouvir esses artistas, que hoje, de forma marginal e independente, tentam criativamente revigorar a cansada linguagem da canção e de outras formas de música popular, faria muita diferença nas nossas carreiras e consequentemente nas nossas vidas. O ouvinte imagino que também gostaria de conhecer essa produção. Se a Inconfidência fizesse uma pesquisa de repertório de alto nível dos últimos 10 anos da produção mineira, com certeza não faltariam canções popularizáveis e acessíveis ao público ouvinte no horário nobre, não num programa específico que vai tocar uma vez e quase nunca mais. Os programas específicos é que deveriam se ater a relíquias do passado." (link para acompanhar)
Imagino que a avaliação feita sobre a programação da Inconfidência, rádio estatal mineira, possa de alguma forma ser estendida a outros veículos de perfil semelhante. Da mesma forma que reconhecemos a música, em geral, ou qualquer uma de suas vertentes específicas, como a canção popular, como fenômenos que se dão no tempo, e que portanto se transformam pela ação dos homens, assim também devemos olhar os meios, incluindo aí o rádio, que não TEM que ser assim ou assado, mas se TORNA, entre outras coisas condicionado pelo lugar que ocupa no contexto da sociedade. E aqui tratamos de uma rádio pública, sobre a gestão da qual TODOS NÓS, como CIDADÃOS, temos o direito de opinar e interferir. Não podemos nos projetar para fora do Estado numa democracia. Do mesmo modo, aquilo que podemos, por convenção chamar MPB autoral, nem sempre esteve posicionada em certos "nichos" ou "faixas" da programação, e seu lugar em nossa história e cultura nos permite desejar e batalhar por reposicioná-la. Me incomoda demais o lugar-comum que se criou em torno do que se denomina, vagamente, de música independente, que na verdade se torna, sob um certo prisma, dependente de políticas públicas de financiamento cujas falhas temos debatido com insistência. Quase que automaticamente, imputa-se nesta "rubrica" o alheamento em relação a um público mais amplo e aos canais de circulação que não sejam "alternativos", reproduzindo por tabela uma divisão social do gosto cuja superação parece ser justamente (pelo menos para mim) um dos motores estéticos, políticos e sociais de nossa produção em música popular.
A ideia de uma carta-manifesto direcionada à Rádio Inconfidência (sugerida por nosso amigo Guilherme Lentz e progressivamente encampada por vários participantes da discussão), além de efetiva, me parece que tem alta carga histórica e simbólica. Desde já me prontifico a contribuir com sua redação. Sugiro, ainda, que seu lançamento se dê num evento público, que seja marcante e mobilize o melhor possível não só quem se envolve neste debate, mas a própria cidade. Não posso deixar de notar que o nome da rádio é Inconfidência, e o que esse nome evoca, numa leitura histórica que não seja laudatória, é a capacidade humana de se rebelar contra o "estabelecido". A critica/apelo, da forma que está posta, é justa e construtiva, e respalda uma Conjuração por uma rádio melhor.
P.S. 2019 Quase não toquei na Inconfidência e se continuar no rumo que vai, de quase passarei a nada kkkkk. Brincadeiras a parte, acabei relendo essa postagem antiga do meu blog em face desse perrengue recente. Ele é do tempo do domínio tucano, em 2012, e qualquer fantasia de que a rádio poderia reencontrar-se com o caminho de sua grandiosa História e até reinventar-se, parecia então distante utopia, o que não tirou o brio de tantos que se envolveram, esses anos todos que passaram, nessa luta mais que digna. Definitivamente, terá sido o único feito que o mandato de Pimentel deixou digno de lembrança. Agora novamente vemos a rádio Inconfidência ameaçada de sucateamento pelo governo Zema, velho lobo em pele de cordeiro novo. Esse pequeno feixe aceso num tempo difícil, ainda que - pasmem - não tão sombrio quanto o atual, que foi catapultado por um daqueles incisivos libelos do meu grande parceiro Pablo Castro, calhou de voltar às minhas vistas hoje só pra lembrar que se cairmos, vamos nos erguer novamente. E seremos Gigantes do Ar.
Tomo a liberdade de compartilhar também o depoimento contundente, coberto de razão, dignidade e serviços prestados, do radialista Ricardo Parreiras: