Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

27 de agosto de 2017

Sampleagem indébita

Na última semana meu parceiro Pablo Castro encontrou o que denominou de "plágio fofo", que efetivamente era um sample de parte da gravação de Tudo que você podia ser, canção de Lô e Márcio Borges, na versão que figura no LP A Via Láctea. Eis o dito cujo e a fonte do sample:






Esse exemplar desencadeou um longo debate, cuja inteireza seria dificílimo reproduzir aqui. Neste caso optei por deixar o link para a postagem dele no facebook [aqui]. Incentivo fortemente os leitores que se interessem pelo tema que confiram lá para ter uma visão mais completa de como o debate correu. Aqui farei apenas um extrato combinando considerações que ele fez numa postagem posterior com algumas colocações pinçadas da primeira, e eventuais pitacos de minha parte ao final, uma vez que isso é um texto com autoria, assinado, e adianto que em um ou outro ponto não temos posições coincidentes por completo.

Por Pablo Castro:
"Breves considerações pessoais sobre o incrível caso das apropriações musicais indébitas expostas no post anterior, particularmente de gravações originais de Lô Borges e Milton Nascimento:

Em primeiro lugar , é extremamente irônico que essa música frequentemente descrita como "anacrônica" , "difícil " , "elitista" e alcunhas afins esteja sendo utilizada como base de faixas produzidas no âmago da matriz industrial norte-americana. Nada mal para uma mera relíquia do passado, não é ?

Em segundo lugar, me parece que a assim chamada "cultura do sampler " não passa de um mero pretexto infame e abjeto dessa indústria fonográfica colonial no sentido de super-explorar o talento de compositores de "outras eras " e de "lugares distantes " como o Brasil , cujas canções podem ser roubadas a torto e a direito porque ninguém nunca vai notar . Vejam bem , nem estou falando dos direitos fonográficos em si , uma vez que eles já estão em sua esmagadora maioria nas mãos das "majors" , mas da absoluta falta de conhecimento prévio dos autores ( não falo apenas nos compositores , mas também dos instrumentistas cujas idéias de arranjo se imbricam nas faixas originais), autorização expressa e crédito devido . Uma verdadeira festa , blindada pela impressão de que o rap é " dos excluídos" portanto qualquer questionamento seria uma espécie de demonstração de avareza e egoísmo daqueles que estão na prática sendo lesados . Independente de ser remunerado ( a quem ?) o uso das gravações originais , o fato é que o Lô Borges nunca soube , autorizou ou foi sequer consultado a respeito dessas apropriações que se tornaram ponto de partida das faixas dos rappeiros . Eu não considero nada lisonjeiro isso com um artista que tem uma obra de quase meio século . Se aconteceu de algum outro artista ter autorizado , ter sido remunerado e ter voltado a "acontecer" no cenário musical , que bom pra ele . Contudo , nos exemplos compartilhados nesse post , nenhum deles sequer cita o artista original nas páginas do youtube . Acho isso incrivelmente desrespeitoso , sem sequer entrar no mérito contratual. [inserido do post anterior] [Nota do editor: nesse ponto acho pertinente inserir o link que nos enviou nossa amigo comum Greg Caz, experiente Dj da noite novaiorquina e profundo conhecedor de música, inclusive brasileira. O site WhoSampled mapeia as ocorrências de sampleagem da obra de um determinado artista. Aqui as do Lô Borges. Também localizei o verso do CD do Joe Bada$$ e como se pode ver no verso, TODOS os PRODUTORES estão creditados e NENHUM dos autores. 

Terceiro ponto: quase todos as faixas que escutamos poderiam facilmente ser regravadas com as ideias apropriadas dos originais , bastando para isso tirar de ouvido tais elementos e regravá-los com timbres diferentes . Não sei se a insistência em usar os samplers foi por corte de custos ou pura preguiça. O que acaba ficando tácito é que pagar pelo uso do fonograma original fica mais barato do que pagar um arranjador, um transcritor, um músico ou umas horinhas a mais no estúdio.

É bom lembrar que não estamos falando de meras citações ou trechos curtos , mas da própria base de harmonia , levada rítmica , e sonoridade que perpassa desde o começo os novos fonogramas. São os pontos de partida das gravações, não meros adornos eventuais.
Pra mim isso é plágio mesmo , uma vez que certas cadências harmônicas são tão específicas , elementos de arranjo se tornam centrais na nova faixa , e às vezes mesmo um longo trecho da voz original ocorre na apropriação. Uma coisa muito capciosa do ponto de vista ético .[inserido do post anterior]

Pra finalizar , por que tais rappers não se dedicam a CRIAR as próprias músicas ? Ou no mínimo contratam alguém pra isso ? Acredito que parte da resposta passe pelo fato de que NÃO É FÁCIL criar novas ideias sintéticas em música popular , não falo nem das canções em si , mas de pequenos elementos originais."

Notas posteriores do editor Luiz H. Garcia:


Há relatos consistentes de que se pratica também a devida creditação e remuneração de direitos. Com o tempo parece que o procedimento foi sendo regulamentado, afinal as grandes gravadoras são as donas dos fonogramas e o sample é extraído do fonograma.  Mas isso até onde pude constatar surgiu como reação a práticas indébitas. Se desde o começo todos os sampleadores creditassem e remunerassem, não haveria necessidade dessa mudança.  Eu acho que além da questão monetária e jurídica tem que ser levada em conta a questão artística mesmo. Ou seja, se alguém algum dia inserir ipsis litteris o que eu escrevi em seu próprio trabalho, sem meu consentimento, repito, sem o meu consentimento, acredito que é uma violação. Me reservarei o direito de não gostar, no mínimo.  Não consigo entender essa desculpa esfarrapada de homenagem. Não excluo a possibilidade do sampleador de fato admirar o trabalho de quem está sampleando e nem de que tal processo ajuda a difundir a criação original e até conquistar ouvintes para a mesma. Mas, se há reverência e respeito por quem se quer homenagear, nada mais coerente do que, no mínimo, lhe dar o crédito, ou melhor ainda, consultá-lo sobre a cessão da obra, integral, parcial, como for. Apresentar a quem desconhece um trecho de uma obra sem qq referência de onde procede esse trecho pode perfeitamente induzir o ouvinte a referenciar-se apenas naquele som - e pode levá-lo a achar que o sampleador é autor. Se quem sampleia sabe perfeitamente qual a fonte, não cita porque? Qual o mistério? Qual a dificuldade? Isso não cola, não. Só fechando, se me pedissem, se eu gostasse da proposta, e me sentisse respeitado como artista, no que dependesse só de mim eu poderia aprovar. Não é nada apriorístico contra o procedimento nem contra o Rap. Melhor do que pregar o respeito, é praticá-lo. 

P.S. Reconhecendo que os nossos posicionamentos, no que concordamos no todo ou em parte, não esgotam nem de longe a questão, após uma justa provocação compilei algumas das muitas colocações do nosso amigo Greg Caz, por cuja opinião na matéria tenho enorme respeito. Agradeço muito a ele a gentileza da cessão do texto e os esclarecimentos prestados. Vale também ressaltar que todo o debate iniciou-se num caso particular e sabemos os riscos das generalizações. No presente eu não tenho nenhuma pesquisa quantitativa sobre o percentual de apropriações indébitas e não creditadas e o oposto. Nesse sentido se trata de criticar o que não é feito devidamente sem qualquer intenção de demonizar esse ou aquele gênero ou artista. 

Por Greg Caz:
No caso dos artistas de hip-hop americanos, a prática tradicional sempre foi o "digging," garimpar os discos mais obscuros possíveis para tirar trechos para produzir faixas que deixam os fãs e principalmente a concorrência boquiabertos. Geralmente colocam os créditos nos encartes mas nem sempre, se se fizeram de uma maneira que nem o artista original pudesse reconhecer seu próprio trabalho se ouvisse.
Os discos da mineirada, dentre vários outros brasileiros, sempre aparecem nos lugares onde os caras vão procurar discos para samplear. Você vê discos de jazz, de soul, de funk, de rock, de reggae e aí surgem cópias de "A Vía-Láctea," "Terra Dos Pássaros," "Minas," algum disco do Flávio Venturini, sei lá...aí o pessoal pega, escuta nos fones da loja e levam pra casa ou o estúdio...e eis o resultado. [Titulo da música] contains samples from 'Ponta De Areia' written by Milton Nascimento and Fernando Brant and performed by Milton Nascimento." Essa é a frase mais comum que se vê nos créditos dos discos de hip-hop.
Eu diria que em 80-90% dos casos dão os créditos. Sendo eu alguém que sempre lê os créditos e compra discos de rap desde os anos 80.
O processo de "clearing samples" com as editoras originais já chegou a causar uma demora no lançamento dos discos. Antigamente dava pra lançar um disco cheio de samples de tudo lugar mas hoje em dia isso se tornou mais raro porque agora cobram MUITO nos samples. Só os Jay-Z e Kanye West e poucos outros podem ostentar samples caríssimos em seus discos pois isso agora é coisa de rico.
Hoje em dia a maioria do que se chama de hip-hop nem tem mais samples, é tudo um som eletrônico chato sem alma e sem suingue, porque (primeiro) os mais novos não se interessam mais em se dar ao trabalho de pesquisar músicas antigas e (segundo) custa muito samplear hoje em dia. Mas antes disso acontecer havia gente em cada gravadora cuja carga era segurar as autorizações de cada sample usado, era um sistema todo. É muito dinheiro envolvido e ninguém quer processo, melhor pagar mesmo. Essa dos artistas velhos voltar a ter renda por causa do rap é a mais pura verdade.
Outra coisa: fora a questão de ser pago pelos samples ou não, os artistas originais reconhecem que as carreiras deles agora têm novo impulso por causa disso. Muitos são muito mais reconhecidos e famosos hoje do que foram na época em que lançaram seus discos originalmente, por causa do sampling. Por minha parte, e sei que falo para muitos quando digo isso, uma ENORME parte do meu conhecimento e da minha vasta coleção de discos é por causa de coisas descobertas através de samples. Muita coisa que faz parte da minha vida que eu talvez nunca iria conhecer não fosse um trecho que ouvi em algum lugar que me levou a procurar o disco original...que me trouxe até outro...e outro...e mais um monte de outros discos antigos...só pela pesquisa.

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