Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

28 de julho de 2018

Na estante - A batalha pela alma dos Beatles

Ainda que com altos e baixos, alguns lapsos e até erros inaceitáveis num projeto editorial que parece ter consumido muitos anos e trabalho, A batalha pela alma dos Beatles termina sendo uma leitura razoavelmente boa e compreensiva que dá acesso ao lado sórdido, obscuro, e indissociável, de tudo que os cercou como fenômeno histórico e cultural. Ele se mostra particularmente cuidadoso na exumação desses cadáveres escondidos nos cemitérios do sucesso pop. Eis uma passagem muito elegante que mostra como chamar um senhor e Sir de mercenário sem ser desagradável. Narrando a elaboração de Anthology, Doggett informa que George Martin, após apreciar as gravações selecionadas, reagiu negativamente: "Eu escutei todas as fitas (...) há uma ou duas variantes interessantes, mas com exceção disso é tudo inutilizável. Não seria possível lançar nada!". Em seguida ele nos conta que "o potencial financeiro de uma série de lançamentos de arquivo foi explicado a Martin e aos Beatles. E poucos meses depois, Martin concordou em lançar uma caixa de três CDs duplos (...) os depósitos inutilizáveis magicamente se transformaram em arcas do tesouro"(p.390).
Se a um conhecedor ao menos razoável deles não representa nada enquanto pretenso destruidor de mitologias, ele conclui de acordo com o que era o desfecho anunciado, assegurando que "a alma dos Beatles não reside na sala de reuniões da Apple Corps, nem nas contas bancárias de quatro multimilionários, mas na graça instintiva e natural de suas canções". Nessa redação estranha ou bem fica subentendido que as contas de John e George sobreviveram a eles, ou que a propriedade dos direitos por parte das viúvas deles representa a propriedade das canções. Não é bem isso que Doggett quis escrever, certamente. Ele só quis afirmar no final o que passou o livro inteiro procurando nos deixar em dúvida, ou seja, que o gênio coletivo dos Beatles "criou algo que nem mesmo o dinheiro poderia destruir".


Nenhum comentário:

Postar um comentário