Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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2 de novembro de 2023

Agora e depois: os Beatles e a perenidade do efêmero

Acabei neste instante de ouvir Now and Then, canção que acabou de ser lançada e anunciada como a "última canção dos Beatles". O novo single consiste em mais uma das canções de Lennon que Yoko deu aos remanescentes da banda na década de 1990 para o projeto Anthology e acabou não sendo completada à época. Dificuldades tecnológicas para isolar a voz de John Lennon foram superadas a partir dos recursos de "demixagem" que a equipe do cineasta Peter Jackson desenvolveu para o recente documentário Get Back. Mas até a própria existência desse extenso material torna um estelionato a campanha publicitária que envolve este compacto (que é também testemunha da obsessão retrô ao ter mesmo uma versão limitada em fita k7), quando alega que se trata de uma "última canção". Isso não será verdade hoje, nem amanhã, nem mesmo depois que o último deles deixar este planeta. Uma quantidade de material oficialmente inédito gravado incomparável permanecerá à mão e será com certeza retrabalhado, embalado e comercializado quando a ocasião for propícia. E aí certamente uma campanha publicitária igualmente infame e desonesta irá anunciar que "uma nova canção dos Beatles" surgiu das cinzas. Claro que é possível todo tipo de contrargumentação, como amigos me apresentaram em conversas recentes (em especial Vlad Magalhães), uma vez que as contribuições de Ringo Starr e Paul McCartney ao resultado final da gravação foram produzidas "agora", e não "antes", mas a própria lógica da fonografia, desde seus primórdios, desafia constantemente essa distinção. O que estamos ouvindo em 2023 é o arremate de uma demo criada nos fins dos anos 1970s, parcialmente retomada na década de 1990 e finalizada no presente ano - mais de 40 anos em registros de som estão acumulados, como num palimpsesto, em Now and Then.

Minha implicância com a estratégia comercial não me impede de reconhecer que os herdeiros, a empresa Apple e quaisquer outras que detém direitos e interesses econômicos associados à obra dos Fab Four deverão seguir contrariando as previsões dominantes no tempo em que se desenrolou a carreira dos quatro, em que os próprios diziam por vezes que seria muito ela durar uns bons 5 anos. Também não me furto a comentar que relançar as coletâneas azul e vermelha, ato oportunista e caça-níquel evidente, vai na mesma direção. O êxito previsível de tal manobra se somará a outros fatos contemporâneos, como o grande sucesso que está alcançando o novo disco de inéditas dos Rolling Stones, para que constatemos que o rock morreu pero no mucho, já que a fusão aparentemente paradoxal das mais avançadas das mais avançadas tecnologias com a sintomática nostalgia de um tempo "homogêneo e vazio" (para citar o filosofo W. Benjamin) não apenas afaga os ouvidos que embalou por décadas mas conquista improvável novas audiências para os octagenários ainda sentados no alto de seu Olimpo discográfico, ou eventualmente presentes etereamente por meio de suas almas esquizofonicamente manifestadas. 

Eu que sou ateu não acredito em fantasmas, mas há poucos dias estive em Nova York e preferi passar meio de lado pelo edifício Dakota, indo logo prestar meus respeitos à memória de Lennon no mosaico tributo ao autor de Imagine e outras tantas pérolas no Central Park. Now and Then não alcança a mesma inteireza de suas irmãs de berço gravadas no mesmo logradouro - especialmente Free as a bird, que o tempo tratou de dar brilho e destaque na estante porque de fato foi burilada de um modo que evocou melhor a energia da banda, com acréscimos notáveis dos três -  o que atribuo sobretudo à exigência de Harrison para que Jeff Lynne, seu amigo pessoal e colega de Traveling Wilburys, fosse o produtor, assegurando espaço para seu protagonismo ante eventuais mandonismos de Paul. Esta agora claro que é uma canção que traz no germe o finíssimo gênio de Lennon, capaz de descobrir o grandioso no banal como poucos, mas as novas camadas que lhe foram sobrepostas não a alçaram tão alto quanto as anteriores. De repente McCartney conscientemente se conteve, deixando reverentemente que a voz marcante do parceiro fulgurasse com mais força, tocando um baixo protocolar e mandando um solinho de slide mais discreto - sutil e justa homenagem a George (como destacou Rafael Senra), que de algum modo compensa que sua contribuição desta feita tenha sido restrita a partes de guitarra esboçadas nos tempos do Anthology e vocais de fundo extraídos de gravações originais remixados à moda do projeto Love. Seu arranjo de cordas, em dupla com Giles, herdeiro do chamado 5º beatle, não compromete mas também não decola como nos grandes voos do saudoso Sir George Martin. E de certa forma ele pagou pra ver como autor ao retirar cirurgicamente o antigo 'b' da demo, que eu particularmente achava lindo e que o parceiro Pablo Castro apontou como "escapada harmônica". Além de ressaltar as virtudes de John como compositor, o trecho propiciaria oportunidade para alguma surpresa. Ringo Starr, sem surpresa, mais relaxado, segue mantendo seu toque de Midas como baterista que veste a canção da forma mais adequada, sempre sabendo a hora de ficar ao fundo ou de preencher os espaços com viradas certeiras e timbres adequados, criando um arranjo sem pirotecnia que é como a rota de navegação que leva o barco de qualquer gravação até seu porto seguro. 

Now and then, ecoando o passado, soando no presente e simultaneamente se projetando no futuro, sintetiza de algum modo a empreitada de garantir perenidade ao efêmero, à qual os próprios Beatles se lançaram como artistas desde o ponto em que sua inventividade e carisma desafiaram os padrões da indústria fonográfica de seu tempo. A despeito de qualquer publicidade duvidosa, ainda iremos ouvir muito falar sobre e ouvir tocar as músicas dos Beatles na jukebox do patrimônio musical da humanidade.

A demo orginal: 


A versão recém-lançada em single: 





27 de setembro de 2020

10 das minhas versões preferidas de canções dos Beatles


Só pra comemorar a diminuição parcial - parcial, vejam bem - do servicinho burô, vou mandar uma série com as 10 versões dos Beatles que eu mais gosto. Só a preferência mesmo. 

1- Sarah Vaughan, The fool on the hill.

 

Segunda da série de versões de canções dos Beatles, na que pra mim é insuperável, quiçá uma das maiores versões de todos os tempos, uma transcriação como poucas já se ouviu.

2 - Norwegian Wood - Milton Nascimento e Beto Guedes.

   

Continuando a série de versões maravilhosas de canções dos Beatles, com trocadilho. 

3 - We can work it out, Stevie Wonder:

 

Quarta da série, um versão de um dos mestres do ofício, daqueles que emite seu reflexo capturado na canção alheia. Neste caso ainda mais marcante pelo fato de ter sido mais literal ao seguir a intenção da letra que seu próprio autor, Lennon, que acabou embalando seu angustiado pedido de socorro na capa da beatlemania.

4 - Help! Caetano Veloso.



A quinta da série de versões de canções dos Beatles, totalmente inesperada e inusitada. Um deslocamento tremendo que beira a invenção de outra canção, atravessando o Atlântico rumo ao Caribe e a um sentimento de solidão com cores bem diferentes da original. Guardo meu sentimento de surpresa da primeira audição.

5 - Eleanor Rigby - Cássia Eller.


A sexta da série de versões preciosas de canções dos Beatles é de chorar. Nina Simone, alta sacerdotisa do soul, que eles adoravam, embala nossos ouvidos em sua interpretação dessa pérola solar de George Harrison. É certamente uma das glórias maiores de um compositor ser gravado por uma artista de quem ele próprio é admirador desde sua própria formação.

6 - Here comes the sun, Nina Simone


Sétima versão brilhante de canções dos Beatles, essa também traduzindo a letra para o português. Baile de Joyce Moreno ao conseguir tanto verter por completo o papo da letra quanto lançar umas pitadas brasileiras (Inamps, por exemplo) que lançam luz ao original sem tampar seu brilho.

7- When I'm Sixty-four / Velhos no Ano 2000 Joyce Moreno


Oitava da série. Ella não poderia faltar, uma das maiores damas do jazz, puxando pro seu universo a canção pop romântica com um pequeno tempero de luta de classe.

8 - Can't buy me love, Ella Fitzgerald



A nona da série, singeleza a toda prova, muitas lembranças e inspiração.

9 - Across the universe, Toninho Horta.


E eis a última da série de 10 versões preferidas de canções dos Beatles. Essa escolhi junto com uma lembrança cara, de ter visto literalmente a última apresentação do Uakti, com a família, em praça pública. Inesquecível. Queria por o disco todo mas escolho essa do Harrison, que Sinatra classificou como a maior canção de amor de todos os tempos mas pensou que era de Lennon e McCartney. Sinto muito, Frank... aqui é Uakti.



P.S. Vou acrescentar essa bela apresentação de ontem do Trio Amaranto, composto pela querida contemporânea de Fafich/UFMG Flávia Ferraz e suas irmãs Lúcia e Marina. São versões lindas e cheias de personalidade, com citações lúdicas e bem propostas de outras canções, entremeando também algumas autorais que beberam das águas do rio Mersey. 




30 de junho de 2020

Requentando a torta flamejante

Mais uma reedição caça-níquel. Mas como tá na área, resolvi dar uma escutada nova em Flaming Pie, álbum que Paul McCartney lançou em 1997, no rescaldo das atividades do projeto "Antologia". Dali ele carregou a nostalgia e o versátil Jeff Lynne, chapa de Harrison, membro dos Traveling Wilburys e da ELO, para tocar e coproduzir uma parte das faixas. Em algumas outras reeditou a dupla campeã com George Martin. O resultado é um disco caseiro, familiar, rústico e informal. Paul mesmo anuncia: "alguma diversão sem suar muito (...) é só um álbum (...) Então chamei uma penca de amigos e familiares e só pegamos e fizemos". Seu filho, guitarrista mediano, está no disco para confirmar.
O acabamento retrô aplicado às faixas, com direito a piano Wurlitzer, mellotron e outras preferências sessentistas e setentistas, foi perfeitamente incorporado ao projeto gráfico do encarte/livreto, aliás diga-se de passagem é um ponto alto, raramente veremos o formato CD tão bem apresentado. E um dos destaques é a possibilidade de explorar as transcrições de relatos, nas quais o próprio Paul dá um caldo a mais nas já certeiras notas de Mark Lewinsohn e Geoff Baker que circunstanciam a composição e produção de cada canção. É o tipo de coisa que a gente gostaria de ver sempre, no próprio disco.
A referência culinária e simultaneamente beatlelógica capta muito bem seu conceito geral, uma torta remete ao ambiente doméstico e acolhedor, mas "a" torta em chamas da canção título é a remissão calculada à espirituosa brincadeira de Lennon tirando onda em cima da sacada de substituir um "e" por "a" criando o nome Beatles, jogando simultaneamente com as palavras "beetle" (besouro) e "beat" (batida) - simples e genial como ele e uns poucos poderiam ser. Nostalgia e familiaridade bem servidas para o fã, mas também um sabor diferente para o "não iniciado", seguindo a receita certeira do rock+pop que Paul foi consolidando disco após disco, mesmo sem cravar aí nenhuma canção inesquecível. Na verdade tem uma trinca bem descartável, "If you wanna", "Used to be bad" (essas duas do reencontro com o guitarrista Steve Miller, com Paul tocando bateria) e a jam "Really love you" (com Lynne e Ringo), atestados de que a onda era só "fazer um som com os amigos", mesmo. Mas coloque, daí pra diante, a esperteza radiofônica de uma "The world tonight", o refrão de hit instantâneo de "Young boy", a suave canção de amor feita pra ser ouvida num domingo à tarde diante do mar "Heaven on a sunday", o tempero folk norwegian wood de "The songs we were singing", "Calico skies", "Little willow" e "Great day" (trilha do café da manhã que é só um gostinho de quero mais depois que o disco já acabou), a vibe Motown soul de "Souvenir", a íntima e reflexiva balada longa na voz e violão "Somedays" que ganha "gravidade" com mais um arranjo orquestral magistral de George Martin, e para fechar "Beautiful Night", uma balada romântica ao piano pra matar de vez a saudade dos velhos tempos junto com o Ringo. Claro que vai ter mais uma orquestração de George Martin no gran finale. Contaremos nos dedos quantos cancionistas populares poderão soltar, sem grande esforço, um conjunto assim palatável, com apelo massivo sem sacrificar um certo apuro musical, compondo e cantando todo o repertório, tocando vários instrumentos, produzindo, e depois de tudo isso poder dizer sem falsa modéstia que é "só mais um álbum" , e conseguir realmente fazer ainda melhor que isso.
No frigir dos ovos, o disco envelheceu até bem. E está servida a especialidade da casa do chef Macca, e todos nós vamos acabar pedindo mais um pedaço.

22 de abril de 2020

Ouvindo um museu - um registro de campo no The Beatles Story, em Liverpool

Em 2015 estive na Inglaterra para apresentar uma comunicação num evento internacional e realizar  diversos trabalhos em campo, em Londres e Liverpool. Com apoio do CNPq, aliás. Isso era parte do investimento em pesquisas sobre as relações entre patrimônio cultural e música popular, veio que continuo explorando. 
Atualmente tenho pesquisado também o papel do som de maneira mais ampla, tanto enquanto acervo que exige cuidados específicos quanto como recurso expográfico que também traz demandas e desafios para seu emprego nos museus. Estava aqui lendo um artigo de Nathalia Lavigne na Folha [aqui] falando em overdose de lives e experiências sensoriais visuais em tempos de quarentena, e me lembrei do  registro em áudio do que fiz percorrendo os diversos módulos da exposição permanente do museu The Beatles Story, em Liverpool, Inglaterra, em 21/06/2015, de 17:20 às 18:20. Alguns trechos são comentados. Foi feito também um registro fotográfico a ser disponibilizado em conjunto com esta gravação.



Para quem quiser acompanhar com mais detalhe, pode ler o trabalho completo que apresentei naquele mesmo ano no 2º Seminário Brasileiro de Museologia (Sebramus) e/ou ver uma apresentação mais simples em slides de uma comunicação que realizei em outra ocasião na UFMG. 

24 de março de 2020

Meu pequeno momento Raymond Williams com George Harrison


Meu caríssimo amigo Guilherme Lentz, um homem de Letras, e de Beatles, postou agorinha essa canção da fase solo de Harrison, Cockamamie Business. A letra é ótima. Deu na telha de tentar entender essa gíria. 



Diz o "sr. google" que veio de decalcomanie, portanto um empréstimo do francês. Sigo em frente para sacar que o negócio tem a ver com o uso do decalque como técnica pelos surrealistas. Procede. O mais provável é que do francês para o inglês, especialmente o das camadas populares, a palavra decalcomanie se modificou.E ainda tem um detalhe estatístico (o google deve estar usando os textos escritos digitalizados como base pra isso, imagino): o auge do emprego de "decalcomania" é nos anos 1950s (gráfico 1), e a curva ascendente do uso de "cockamamie" (com o sentido de implausível, ou como nós usamos às vezes "surreal") começa justo nos anos 1950 (gráfico 2).




Aproveito para recomendar esse útil e inspirador - como todos - livro de Williams, Palavras-chave. Devia ser 1998, pois já havia iniciado o mestrado e tinha ido à Unicamp entre outras coisas procurar para copiar alguns livros que não havia na biblioteca da Fafich da UFMG, um deles era o Keywords do Raymond Williams, e acabei encontrando também a edição inglesa do Costumes in common do Thompson, que não estava nos planos mas acabei xerocando um capítulo. O Palavras-chave é basicamente um dicionário de ciências humanas e sociais, recortando no léxico aquilo que seu autor, estudioso marxista da história da literatura e da cultura britânicas, chamava de vocabulário em "cultura e sociedade".

2 de dezembro de 2019

Todos os malucos no mesmo galho

Quando a gente acha que já ouviu todo tipo de maluquice ser pronunciada por representantes do atual governo brasileiro, eis que o recém empossado presidente da Funarte, Dante Mantovani, revelou-se um contumaz distribuidor de asneiras e delírios através de um canal no You Tube [aqui a matéria da Folha sobre o assunto]. Não faz muito tempo, o ruminante da Virgínia, Orvalho de Cavalo [sic], andou espalhando o capim estragado que mastiga , afirmando que o filósofo (esse sim, ele não) Theodor Adorno teria escrito músicas dos Beatles. Mantovani tenta se igualar no besteirol, afirmando que
  
Não é que o Adorno tenha falado assim para os Beatles, ‘faça isso, faça aquilo, faça a liberação das drogas’. O teórico desenvolve a teoria e o agente vai lá e age”, diz. “Na esfera da música popular, vieram os Beatles, para combater o capitalismo e implantar a maravilhosa sociedade comunista.

Ecoou imediatamente para mim a paranoia do macartismo nos EUA ou da Ditadura Militar made in Brazil. Lembrou-me ainda do achaque de fanáticos religiosos aos Beatles nos anos 1960, especialmente intensos depois de Lennon ter declarado marotamente que eles eram "mais famosos que Jesus". As besteiras de então, como as que um certo reverendo Nobel distribuiu no livro Communism, Hypnotism and The Beatles (1965) são o tipo de lixo eternamente reciclável.

Esse ataque, que em outras circunstâncias seria até divertido, é testemunho da degradação intelectual e de caráter que tomou conta do governo federal e se manifesta progressivamente em todas as suas instâncias. A censura, a truculência, o aparelhamento e o enviesamento de políticas de incentivo agora são a regra nos órgãos de cultura. Essa sabotagem sistemática reflete uma escalada reacionária que compreende o campo da Cultura na esfera do Estado como alvo de disputa ideológica, plataforma do conservadorismo político, balcão de negócios sem qualquer critério de bem público e, simultaneamente, jamais tratá-lo como espaço público e de direito. Converte-a em uma espécie de arma política apropriada ilegitimamente para fustigar adversários, introduzir diversionismo e promover revisionismos de toda ordem. Enfim, há método nesse disparate, e é a partir disso que precisamos combatê-lo.

29 de outubro de 2019

No estúdio com Thiakov - Hey Jude


Produzindo os Beatles- Hey Jude (Lennon/McCartney)


Depois de tanto terem explorado diversos campos harmônicos, cadências exóticas, ritmos de outras culturas, melodias que desafiam os ouvidos acostumados com a tranquilidade da meia-idade musical dos Beatles (entre 64 e 66), o conjunto retornaria aos signos tonais mais reconhecidos pela humanidade pós-J.S Bach e seu Cravo bem Temperado, uma escolha estética que priorizaria a emoção da interpretação em detrimento do cerebralismo celebrado por eles, em certa dose, e principalmente pelos seus contemporâneos do emergente rock-progressivo. Desde a temática da letra  até a finalização da gravação, toda a canção está imbuída de sentimentos fortes, porém observados de um ponto de vista simplista e assim executados de maneira estoica.


Hey Jude veio a tornar-se a maior música pop a tocar nas rádios, desde então, e chegar ao primeiro lugar nas paradas (19 semanas no total e 9 no topo). Com seus mais de 7 minutos divididos em: 3 minutos de canção e mais de 4 de nanana (um mantra pós-viagem indiana, um capítulo à parte que mudou radicalmente a cabeça e o penteado dos garotos de Liverpool), a música inicialmente sofreu tentativas de corte de tempo pelas rádios, porém sucedeu tornar-se hit e ser enfiada goela abaixo dos DJs que insistiam em querer ficar somente com a primeira parte. O assunto era delicado e assim foi tratado por Paul. Era sobre a recente separação de John e Cynthia Lennon e dos sentimentos do protagonista, o filho do casal, Julian – o Jude. Foi um jeito encontrado pelo “tio” Macca para consolar o garoto frustrado com o divórcio dos pais. Olha Jude, não leve a mal, pegue uma canção e a faça melhor, se alguma hora você sentir a dor, olha Jude, desacelere, não carregue o mundo nos ombros. Enquanto escreviam a letra Paul conta que Lennon ficou por diversas vezes emocionado e nem se importou com a repetição da palavra “ombros” na música, coisa que evitavam.


É incrível o casamento da harmonia com as palavras. A primeira parte da canção é uma aula de harmonia para principiantes, enquanto o nanana já é para intermediários, com uma introdução ao modalismo. Na teoria básica de harmonia tonal temos fundamentalmente três sensações possíveis, que são as três funções principais: repouso (tônica), afastamento (sub-dominante) e tensão (dominante), e toda expansão harmônica se dá a partir desses três acordes. São o I, IV e V, sendo que, se estamos em Dó Maior, são: I-Dó, IV-Fá e V-Sol, mas como Hey Jude é em Fá Maior, transpomos as mesmas relações e temos: I-Fá, IV-Si bemol e V-Dó. Analisando a letra em conjunto com essas sensações tonais, chegamos em um assombroso esqueleto estético de arrepiar qualquer cancioneiro. Começa somente com o chamado de Paul com um “Hey” e já vem o acorde de repouso, a tônica em “Jude”, don´t make it “bad” – tensão com o V grau, take a sad song – ainda tensão, and make it “better” – repouso no I, “remember” – afastamento com o IV, to let her into your “heart” – repouso, then you can “start” – tensão, to make it “better” – repouso, “Hey Jude” – repouso, don´t be “afraid” – tensão, you are made go out and “get her” – repouso, the “minute” – afastamento, you let her under your “skin” – repouso, then you can “begin” – tensão, to make it “better” – repouso. No intermezzo, Paul expande a letra e a harmonia mas sem sair do campo tonal. O único momento onde a cor dos acordes muda é no final, o nanana, onde com apenas um acorde a mais – o Mi bemol, a música passa a ser modal, um mixolídio emocionante depois de minutos perfeitamente tonais, e sobretudo turbinada pelo naipe de metais que aparece só pra dar mais força a esse imenso CODA (um final diferente de todo o resto). 
 
Destaque: [áudio da CBC radio com pessoas que participaram do coro no vídeo promocional]


Após tamanhas loucuras composicionais experimentalistas, os Beatles estavam de volta num campo onde, aí sim, eram especialistas: a emoção bruta, gutural, simples e radical. Foi assim que ganharam o mundo em hits orgânicos numa roupagem que ainda não se tinha visto anteriormente. O piano é quase infantil, um jeito de tocar que tornou-se assinatura do quarteto e também da posterior carreira solo de cada um, que é tocar na mão direita o tempo forte respondido com o contratempo na mão esquerda ´- vide I am the walrus, Golden Slumbers, Imagine, Maybe I´m amazed, etc., mas é esse piano infantil que faz um truque que virou outra assinatura deles: na ponte que vai para a parte B, Paul canta “then you can start to make it better” e o piano faz uma caída melódica com a 8ª-7ª maior-7ª menor (que gera tensão) e isso foi ouvido por diversas vezes em gravações posteriores – vide Balada do louco dos Mutantes, que reconhece todas essas assinaturas e as homenageia com maestria e criatividade. Lennon toca um violão simples com os acordes básicos e uma batida desdobrada em colcheias, mas com uma pegada bem forte, priorizando o contratempo na subida da palheta, fazendo o violão ficar estridente e rascante. Num dos vídeos da gravação em estúdio observei que o violão fora microfonado com um mic dinâmico mirado na boca do instrumento a curta distância e passei a utilizar-me dessa técnica não muito comum. George Harrison, além de dividir o coro com John, toca o baixo, na verdade uma guitarra barítono, apenas com as notas fundamentais dos acordes ou raramente umas inversões e faz um ligeiro overdub de guitarra elétrica dobrando ou imitando o nananana nas entradas e saídas da parte B. E, finalmente, Ringo toca uma bateria aparentemente super humilde porém com detalhes ocultos a um observador menos atento. A caixa e os tontons da bateria estão cobertas com um pano grosso que deixa o som abafado e seco, mais ou menos como bater com a baqueta numa almofada, e o prato de condução é tocado na cúpula, parecendo um sino, e o mais interessante é que o baterista inverte a tradicional batida que os ouvidos já tanto se acostumaram: ao invés de tocar o bumbo nos tempos 1-3-e(do 3), ele toca 1-e(do 1)-3, fazendo parecer estar ao contrário do esperado.


No último verso, Lennon parece novamente não se conter e faz a segunda voz da estrofe, costurando a melodia líder de Paul, ora tecendo os graves, ora atravessando para os agudos. Tudo vai ao mesmo tempo calmo como uma balada, mas também tenso devido à temática da letra em si e ao espírito da época, quando a relação pessoal entre os membros do grupo não ia muito bem. Por esses motivos eles parecem tocar todos os instrumentos com muita força e energia, coisa que se repetiria em uma próxima balada, Don´t let me down. O gran finale se dá com um apogeu redundante da palavra “better” que vai crescendo do grave para o agudo sempre com um semitom abaixo das notas do arpejo maior da tríade de Fá maior, sendo Mi-Fá, Sol#-Lá, Si-Dó, se repetindo por duas oitavas, culminando num Fá, um super-Fá, introduzindo o mantra mixolídio que diz nananana, Hey Jude, transformando seu nome em totem, em símbolo de força e resiliência e nanana é uma maneira de dizer nananão, deixa disso Jude, vai tudo ficar melhor, melhor, melhor....


OBS 1: É impressionante os gritos desesperados e rockes que McCartney dá durante o final, entrecortando o mantra com urros. Vale a pena se atentar a cada um.


OBS2:  Aos 5´36” rola o famoso chamado de Lennon que no Brasil se popularizou como “Pega o cavaquinho” mas na verdade era “’pain won´t come back Jude”.


OBS3:  Uma escolha estética da época fazia com que os pandeiros e pandeirolas aparecessem muitas vezes, nas mixagens, com o volume mais alto do que o da bateria. Este é um caso de pandeiro solista.


OBS4: Já ouvi e li por diversas vezes que Ringo não era um bom baterista, do que discordo veementemente. Nessa canção ele espera por um bom tempo, até a parte B para entrar com a bateria. Essa simples escolha já o torna um esteta do instrumento e o fato de ele distinguir tão bem o momento para entrar e tocar já o coloca no panteão das baquetas do rock, pois simplicidade não é sinônimo de inocência ou despreparo, muito ao contrário. Sua paciência em sentar-se na bateria e tocar um pandeiro na primeira parte acentua a sensação de quebra da primeira para a segunda. O mesmo se dá com os outros instrumentos que vão chegando de um a um, se aproximando lentamente do interlocutor e também do personagem protagonista, num gradual abraço até um cafuné carinhoso e coletivo, motivando-o a sair desse estado de tristeza e gerando nele força e alegria de viver. 


OBS5: Reforço o refinamento estético do drummer enfatizando um momento que dura menos de um segundo mas que para mim é absolutamente contundente: no fim do apogeu do better better, no momento em que toda a banda para de tocar e ouve-se o grito de Paul ahhhhhh, imediatamente antes do nananana, Ringo toca um chimbal, apenas um, criando uma tensão incomensurável. Outros bateristas provavelmente fariam uma virada nos tontons e caixa e ele escolhe a simplicidade de uma nota para introduzir uma atmosfera iminente. E na minha opinião ele é o melhor nas viradas de rock. Ele é o Bach dos “drum fill”, fazendo as melhores melodias possíveis nos tambores – vide A day in the life, Strawberry Fields Forever e muitas outras. Vale pontuar o fato de ele ser canhoto e acentuar numa bateria para destros, com a mão esquerda.


OBS6: O nanana parece-me claramente uma influência advinda do Gospel e se fosse nananana, oh lord, estaria ainda sim muito bem contextualizada esteticamente. Essa sim é a igreja do rock e se os quatro cabeludos forem futuramente canonizados a mim não será nenhuma surpresa.


25 de maio de 2019

No estúdio com Thiakov - A day in the life

Produzindo os Beatles - A day in the life

Quase que Lennon ficou de fora como compositor do disco Sgt Peppers. Andava dreamy, divagando em sua própria mente, experimentando viagens aprofundadas. Não fosse pela insistência da equipe e sua inspiração potencial, acabaria por deixar o álbum nas mãos do emergente líder McCartney. Talvez por isso mesmo buscou idéias em coisas mundanas e fugazes como jornais, anúncios de tevê, cartazes e desenhos infantis de seu filho. Sagaz como de costume conseguiu arrancar leite dessas pedras brutas que nos bombardeiam todos os dias e passam desapercebidas mas não para um criador.
"Espalhe o microfone em cima do piano, meio baixo, mantendo-o dentro, as maracas, saca? Fada de ameixa, fada de ameixa". Com estas palavras John introduz o que se tornaria a balada mais intensa desse novo álbum. "Dá pra por aquele eco do Elvis?". Emerick, o jovem engenheiro de gravação, afogou Lennon nesse delay de fita.
O primeiro take foi simples, com o quarteto em uma formação bem inusitada: George nos bongôs, Richard nas maracas, John no violão de aço e Paul no piano. Tocaram a incompleta música até o fim que havia, deixando uma longa parte sem vocais, com o roadie Mal Evans contando os compassos em voz alta e com um despertador na mão (que acabaram por vazar nos mics e são ouvidos na versão final).
Dias se passaram até voltarem à gravação, o que era comum depois de Strawberry Fields, e logo que escolheram os melhores takes de voz foram pra sessão de overdub. Sem as peles de resposta dos tambores e com microfones posicionados dentro dos toms, com extrema compressão (aparelho que reduz a dinâmica), Ringo experimentou como nunca e assim, numa evolução da supracitada Strawberry, fez uma construção de bateria baseada em viradas e ataques de prato. A parte que restava incompleta carecia de algo forte e intenso. John sugeriu que fosse um som que começasse pequeno e fosse crescendo até uma explosão. Paul embarcou na onda e evoluiu a ideia para uma orquestra em crescendo. O produtor olhou para o quarteto e disse: miguxos, jamais receberão aprovação da EMI pra alugarem uma full orchestra pra gravar alguns compassos de doideira em uma música. Ringo, como bom enxadrista, deu xeque-mate: alugamos meia orquestra e gravamos duas vezes.
A tumultuada sessão de gravação da orquestra, ou melhor, o happening começou já dando sinais da loucura que viria pela frente. Entram pela porta principal do estúdio 2 do Abbey Road, em seus psychedelic suits, Mick Jagger, Keith Richards, Marianne Faithful e muitos outros convidados para uma suposta festa. Os músicos da orquestra já bem incomodados por terem que usar nariz de palhaço, aguentar o som de balões explodindo (também audíveis no disco) e o cheiro de erva no ar simplesmente não entendiam as instruções do paciente Martin a convencê-los de que não era nada demais...apenas tocar da nota mais grave de seu instrumento até a mais aguda, finalizando em um Mi. Alguns achavam que era realmente uma piada e uns ofendidos acabaram por deixar o estúdio. Depois de muita conversa para acalmá-los, alguns rabiscos na partitura e no take final regidos por um dançante McCartney, contrariados, fizeram um take. Como o orçamento era curto, o produtor mentiu que não ficou bom para que eles tocassem a segunda vez. Bingo. O efeito devastador foi atingido.
A segunda parte veio de uma esquecida canção do Paul que encaixou-se lindamente à primeira parte de John.
Tudo parecia perfeito mas ainda faltava o gran finale, o fim dessa saga. Pra essa sessão foram utilizados os quatro pianos presentes nessa sala mais um harmonium executado por George Martin, todos eles tocando o mesmo e único acorde. No melhor take ouve-se, carregado por um olhar matador de Macca, uma ligeira mexida na cadeira do Ringo, e com um par de fones aprecia-se o famoso "nhec" que encerra esta canção que fecha o álbum mais conceitual dos Beatles até então.
Eis "A day in the life". I'd love to turn you on.

obs 1: sim, quando o Paul canta "found my way upstairs and had a smoke and went into a dream", está falando de maconha

obs 2: sim, "I'd love to turn you on" é sobre maconha

obs 3: sim, "well I just had to laugh", é risada de maconha


Por Thiakov






 A day in the life (Lennon/McCartney)

I read the news today oh boy
About a lucky man who made the grade
And though the news was rather sad
Well I just had to laugh
I saw the photograph.

He blew his mind out in a car
He didn’t notice that the lights had changed
A crowd of people stood and stared
They’d seen his face before
Nobody was really sure
If he was from the House of Lords.

I saw a film today oh boy
The English army had just won the war
A crowd of people turned away
But I just had to look
Having read the book
I’d love to turn you on.

Woke up, fell out of bed,
Dragged a comb across my head
Found my way downstairs and drank a cup,
And looking up I noticed I was late.
Found my coat and grabbed my hat
Made the bus in seconds flat
Found my way upstairs and had a smoke,
Somebody spoke and I went into a dream.

I read the news today oh boy
Four thousand holes in Blackburn, Lancashire
And though the holes were rather small
They had to count them all
Now they know how many holes it takes to fill the Albert Hall.
I’d love to turn you on
 

13 de maio de 2019

No estúdio com Thiakov - Strawberry fields forever




Produzindo os Beatles - Strawberry fields forever

"Eu tenho uma", disse Lennon ao ouvir o afável produtor George Martin evocar o questionamento tradicional ao início das sessões. Paul ainda balbuciou algo como "eu também" mas o zerinho na fila já tinha se autoproclamado. "É uma balada, fala sobre minha adolescência".

O refrão vinha na ordem natural, depois da estrofe como mandava o figurino, pois ainda não tinha sido alterado pelo produtor para introduzir a letra da canção. Como eu, ele deve ter gostado muito dessa música e querido ouvir de prontidão as palavras-chave daquela que se chamava "Strawberry fields forever".

Falava sobre o antigo orfanato nas imediações do bairro da tia do Lennon, onde ele ia vez ou outra desfrutar um fim de tarde quiçá em companhia de alguém. Falava de um jeito desconexo eu acho que eu sei quero dizer um sim desconcordo nada tão mal sempre sei algumas vezes penso que sou eu deixa eu te levar que eu estou indo aos campos de morango nada é real. Fala de um jeito doidão mas com muito amor pela saudade, uma especialidade do compositor em questão.


O primeiro acorde não é a tônica, o tom, mas o mais distante que é a dominante, o irresoluto e problemático acorde, seguido pelo sexto grau, irmão do tom, o quarto grau (agora sim trazendo de vez a cara azul do lá maior) and then...and then vem o refrão. Gigantemente enigmático, sem falar das baboseiras sentimentalóides dos ié-ié-iés, chamando você, ouvinte, a passear sem volta pelas ondas lisérgicas dessa paisagem desconhecida. O primeiro take era realmente de uma balada pouco diferente das do Revolver e anteriores mas algo dizia que ela não se resolveria aí. Um sampleador bizarro, conhecido por mellotron - que era composto de fitas k7 com instrumentos gravados em loopings - forjou as notas introdutórias. E assim, com uma guitarra desconstuída em arpejos, uma bateria certeiramente vacilante, sem usar o chimbal pra marcar os tempos, fazendo quase que somente viradas e um baixo cabeção só com as notas fundamentais dos acordes, começa "strawberry fields" - que viria a se tornar uma das canções mais arrojadas jamais feitas pelo mundo pop até então.


Ao fim de algumas tentativas John decide que está insatisfeito e como sempre, sem saber como dizer isso, recorre a imagens e figuras mentais pra comunicar ao produtor que desejava mais ação, mais energia, mais massa sonora, mais tudo! George deve ter se deparado com um ou dois cigarros antes de chamar para a próxima sessão um naipe de metais, cellos, e regravar num tom acima do primeiro, mais rápido que a primeira tocada e cheio de sons energizantes de metais. Todos tocaram euforicamente e um final apocalíptico se deu. I buried Paul. Paul estava morto, mas isso não atrapalhou a nova canção e não vem ao caso. John Lennon, já bem sem jeito, retorna ao seu estado introspectivo e prenuncia um novo atestado de falência. "Sorry Martin, mas ainda não estou satisfeito com a segunda versão. Na verdade gostei do início da primeira e a segunda parte desta mais rápida. Dá pra utilizar as duas?". E assim se encerrou mais um dia de trabalho. Os campos de morango pareciam ser verdadeiramente para sempre. Nenhuma música antes havia tomado tanto tempo no estúdio.


Armado com gilletes e fitas adesivas, como um cirurgião cardíaco, George Martin cortou e picotou e colou e descolou num passe de mestre, daqueles do Ronaldinho Gaúcho nos tempos do galo, e juntou na fita as duas versões usando para as passagens uma harpa indiana. Nem se percebe a mudança de uma tomada para a outra, ou somente ouvidos treinados conseguem percebê-la.

Voilá!

Nada melhor que o primeiro fracasso dos beatles no número um das paradas há anos. Com vocês, "Strawberry fields forever":




obs 1: let me take you down cause i'm going... neste momento o pitch do mellotron, junto com a guitarra slide fazem um escorregador pra baixo, taking you down

obs 2: let me take you down cause i'm going... vai do acorde de Lá maior pra Mi menor, cadência advinda do modo mixolídio, com uma cor muito peculiar de empréstimo modal, uma vez q a tônica não tem a sétima menor e assim boiamos rapidamente em dois modos, sem falar no terceiro acorde que é distante apesar de ser somente o dominante do segundo grau. Ou seja, uma boiada atrás da outra. Quando ele se alterna com o quarto grau, Lennon deixa claro que não deseja um chão tonal pra se brincar.

obs 3: fica fácil perceber a mudança de take (do lento pro rápido) pois apenas no primeiro há o baixo do Paul. E são dois, um de cada lado(fucking stereo). Imagino q o macca tenha deixado pra fazer o baixo da segunda depois, como de costume à altura e gostado sem grave ou tido preguiça pra fazer depois do corte final. Não há mais guitarra também, nem mellotron. O que toca o barco são uns bumbos graves tocados com a mão, maracas e pandeiro.

obs 4:
no meio da música ouve-se um chimbal ao contrário com umas peças de bateria ao fundo.

Por Thiakov



Notas do editor:

1. Publiquei em 2011 o artigo "Em meus olhos e ouvidos: música popular, deslocamento no espaço urbano e produção de sentidos em lugares dos Beatles" na revista Estudos Históricos da FGV, tratando basicamente desta canção e sua "irmã gêmea" de single Penny Lane. O resumo, acompanhado de um trecho do trabalho, está nessa postagem anterior [aqui]. Destaquei, em outra ocasião, mais um trecho do artigo, tratando das capas do compacto e também do álbum Sgt Pepper's, mas acabei descobrindo que a análise estava mesclada com outros temas igualmente relevantes, relacionando o estudo iconográfico à transgressão musical dos Beatles naquele momento de suas carreiras. O que é mais interessante no artigo, do ponto de vista metodológico, é que utilizei muitos registros de estúdio anteriores à versão final, que conhecia do tempo em que a circulação desse material ocorria através dos chamados "discos piratas", mas quando da escrita já estava amplamente disponível na internet.

2. Em outra atividade de pesquisa, estudei as apropriações in loco e via internet de lugares de Liverpool associados aos Beatles. Parte deste trabalho, já publicada em eventos, pode ser encontrada na minha página do portal Academia [aqui]. Estive em Liverpool em 2015 - vale dizer, com apoio do CNPq num momento em que ainda havia valorização da pesquisa acadêmica no Brasil, mas já iniciando a fase de cortes - e por dois dias cumpri uma agenda apertada que envolveu visitas a museus e trabalhos de campo, como os que ficaram registrados na página de facebook dedicada ao projeto [aqui] , que posteriormente sincronizei como página deste mesmo blog.