Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

20 de janeiro de 2020

AREMBEPE

Tenho a felicidade de ser premiado com melodias maravilhosas por parceiros que, cada qual com seu estilo, seu traço, conseguem aliar inspiração e esmero, tornando a minha vida relativamente fácil na hora de escrever a letra.
O Artur é do Ceará - ainda que, como mineiro adotivo que se tornou deve compreender bastante bem o que nós dessa terra de montanhas sentimos diante das imensidões azuis - e a sugestão na levada, no sabor da melodia, na delicada cama harmônica na qual nossos ouvidos deitam como se numa rede, tudo me sugeriu um tema praieiro, caymmiano, e eu lembrei de uma viagem em família à terra onde nasceu a Clarita Gonzaga (que bateu essa foto minha com nossos filhos), e de algumas histórias que ela já me contara sobre esse point da hippice brasileira e internacional: Arembepe. À medida em que as palavras óbvias que deveriam atender à necessidade de descrição de um cenário, remetendo a tudo que a imaginação e a própria estadia em terras baianas me gravara à memória, foi inevitável sugerir o título e dele extrair uma visualidade que remete reverentemente a um repertório imenso que povoou a música popular brasileira com exemplares de rara beleza, e não hesito em dizer, um recurso que nada tem de original, que é emular o deslocamento ondulante da música através de imagens que remetem a movimento ou repouso, o vento sopra, o coração para, a linha fisga, e finalmente os olhos do ouvinte devem, de algum modo, acompanhar os do "eu lírico" da canção enquanto eles observam a paisagem - no fundo, enquanto ele rememora aquilo que viu. Acabou ficando assim, só sugerido, meio enterrado na areia, um elemento cinemático, que nas primeiras versões era explicitado por uma referência pontual ao sobrenome de um cineasta que eu fora levado a acreditar que passara por Arembepe, que seria Bernardo Bertolucci, mas algumas reticências me levaram a descobrir que havia sido Roman Polanski. Desafortunadamente, a sílaba a menos e a ineficiência de outras soluções acabou derrubando essa pitoresca nota, substituída por sugestão do parceiro por "tua presença" - resta aí uma citação do baiano Caetano. 
Normalmente eu não costumo ser explícito e direto quanto a situações pessoais que inevitavelmente fazem parte dos ingredientes dentro do caldeirão no qual se cozinha uma letra de canção. Não sou de falar de mim nesses termos, digamos assim. Mas sei que certamente, mesmo naquelas canções em que aparentemente impera toda uma objetividade, uma opção por narrativa descritiva e tremendamente distanciada de minha própria existência e experiência individual, haverá traços inescapáveis - de repente, inconscientes - dessa particularidade, mesmo que eu intente escondê-los. Com certeza muitas das canções mais marcantes nos repertórios que guardamos conosco são essas em que o "eu lírico" se confunde ao intérprete, e ainda mais amalgamadamente ao cantautor, quando este está literalmente expondo suas vísceras em público. No instituto da parceria sobra ainda a possibilidade, da qual já provei, de ter que temperar as palavras de modo a capturar em seu sabor essa organicidade sem ter vivido nada daquilo, se conseguimos por forte entrosamento e empatia escrever aquilo que o parceiro queria dizer por si.
Dessa vez, portanto, não tive escapatória e minha vida pessoal escorreu para dentro da letra. Fiquei com um retrato registrado em canção de um momento muito feliz em família, uma viagem que planejáramos fazer por muitos anos, e finalmente realizada numa oportunidade propícia. O tempo - ah, esse brinquedo que os dedos do historiador que sou não largam - encarrega-se agora de emoldurar a fotografia daqueles dias inesquecíveis, enquanto a passagem de 2019 marcou também o encerramento do ciclo de um longo relacionamento, com serenidade e cuidado pelo que de mais bonito fizemos, representado sobretudo nos nossos rebentos que estão crescidos e prontos para dar seus próprios passos nas areias da vida.




Arembepe (Artur Araújo/Luiz Henrique Garcia)

O vento sopra de leve
Entre as palmeiras descreve
o meu coração
para
suspenso ali
para
realça
a linha que
fisga dentro do meu peito

sigo a embarcação
sempre
rebentação
tempo

tempo
leve pr’Arembepe meu bem
guarde na lembrança esse céu
onde o sonho foi
silêncio e sol
luz que tua presença captou

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