Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

21 de dezembro de 2019

1a c/ a 7a - Estou me guardando para quando o carnaval chegar

Assisti hoje, dentro da excelente mostra de cinema nacional recente realizada no Cine Humberto Mauro, ao documentário "Estou me guardando para quando o carnaval chegar", dirigido por Marcelo Gomes [entrevista], certamente mais reconhecido por Cinema, aspirinas e urubus. A narrativa crua - mas não nua, exatamente - de Toritama, cidade de 40 mil habitantes no agreste pernambucano responsável por 20% da produção nacional de jeans, emanando da boca de seus protagonistas, ainda que pontuada por uma narração em off que vai descrevendo um retrato contrastante dessa 'china com um carnaval no meio' com aquela cidade pacata de interior de que o cineasta se lembra de ter visitado com o pai. O título, pinçado da canção de Chico que por sua vez foi trilha original para o filme de Cacá Diegues,Quando o carnaval chegar, de 1972 [aqui para ver o filme e aqui para o trecho com a canção]. O diretor também lança mão de outras citações e procedimento metanarrativos, como por exemplo interromper o fluxo da narrativa e dirigir-se ao espectador para discutir a sua própria construção, demonstrando como a alteração do som (quase todo o tempo um uso brilhante da banda sonora tomada pelo recorrente e ensurdecedor barulho de máquinas de costura e outros aparelhos usados nas facções, fabriquetas de fundo de quintal que dominam a paisagem urbana de Toritama - uma das traduções do tupi poderia ser "terra da felicidade"), ou do ângulo da filmagem. Não tenho um domínio do repertório de documentários brasileiros sobre a questão do trabalho, mas claro que foi inevitável uma lembrança de Ilha das flores, porém me parece que "Estou me guardando" teve o cuidado de ser menos didático, jornalístico ou panfletário, nos deixando cada vez mais atônitos ante a convicção empreendedorista da grande maioria dos moradores que narram diferentes versões do "toritaman way of life", que é sobretudo marcado pelo imediatismo total - daí o lance provocativo com o título e a canção - totalmente afinado com uma perspectiva ultraliberal. Tal realismo, sem tutela da fala dos trabalhadores autônomos que se tornaram escravos de sua própria versão agreste de meritocracia, pontuado aqui e ali com as tiradas e criatividade de um povo que faz do improviso seu modo de viver e expressar, torna "Estou me guardando" um retrato ainda mais acurado do Brasil de hoje que Bacurau. E muito menos palatável.



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