Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

13 de abril de 2020

Começar e acabar chorare por Moraes


Começamos a semana com a triste notícia da partida de Moraes Moreira, passarinho da MPB que agora baterá asas nas nossas lembranças. Seu último gorjeio, como informa essa matéria no G1 da Bahia, foi um cordel sobre a atual pandemia do novo coronavírus. Haverá certamente muitos textos que celebrem a carreira, a obra e a energia criativa dele, com os Novos Baianos e no brilho próprio como artista solo. Tinha um violão brasileiro cheio de suingue, melodias contagiantes, letras lúdicas e vivas. Estarão perdidas as contas do tanto de corpos e sorrisos que embalou anos a fio em agitos elétricos e acústicos, e continuará a embalar. Para mim pensar agora em Moraes Moreira começa por um obrigatório exercício de rememoração da infância. Para quem tiver, como eu, nascido em meados da década de 1970, provavelmente terá sido nos carnavais e brincadeiras de criança que chegou a seus ouvidos deliciosas canções como "Pombo correio" ou sua inconfundível interpretação de "As abelhas" do musical Arca de Noé. Depois a grande explosão de amor nas trincheiras da alegria, "Festa no interior", sucesso multiplicado na voz de Gal Costa. Ver o Moraes diante da massa é impressionante.





Depois viria a associação da música com a pessoa, um fenômeno que, como vivi a infância em que o som era de fita cassete e rádio, mas sem vinis, dependia muito da mediação do aparelho de TV, num tempo em que os canais estavam abertos à música popular mais esmerada feita entre nós. E lá estava ele, sempre uma figura que transpirava energia e tomava a tela, especialmente com aquele cabelo grande, que troféu maravilhoso de mestiçagem - aquela de que só bem mais velho fui perceber a sutil negação na constância com que me levavam pra cortar bem rentes os meus virtuais caracóis. Depois de um tempo em que meus ouvidos foram carregados, no início da adolescência, para as terras frias e enevoadas porém excitantes da beatlemania, na redescoberta do Brasil, ainda que não imediatamente, lá estava o Moraes, junto a sua tribo musical, verdadeiro escrete dessa terra miscigenada, Os Novos Baianos. Fascinante mesmo foi entender que esses Baianos eram mesmo outros, que sua receita era pra ser saboreada de outro jeito daquela dos primeiros baianos, os que haviam vindo pretensamente quebrar as estruturas. Sob as bênçãos de João, esses verdadeiros filhos dele mudaram o disco, botaram pandeiro, cavaquinho, bandolim, refizeram a receita de Brasil e mostraram seu valor [uma postagem anterior do blog aborda o tema, Cantando a nação]. Que inundação foi Acabou chorare, sobretudo. Novamente a infância terá que ser lembrada aqui, inspiradora de tantos motes nesse disco, coautora do singelo balbucio da canção que lhe dá título. Não é casual meu filho e filha terem sido apaixonados por esse disco de pequenos, e eu diria que ele tem sido um guia certo para gerações jovens encontrarem ou reencontrarem o berço e o balanço musical brasileiros depois de escutar o alhures. Recentemente, quando assisti a Filhos de João, ótimo documentário sobre a trupe, me surpreendi com o relato dele sobre o delicado momento em que passou a questionar o arranjo coletivo que vigorava naquela grande família musical, Novos Baianos Futebol Clube [disco, aqui e documentário, aqui]. Um mundo e um amor lhe chamaram, enquanto corria a barca. Ele foi e afirmou-se de pleno direito, como grande cantautor que sempre foi, sabendo cantar o lado solar do Brasil sem desconsiderar seus desafios, mas espantando pra longe qualquer sentimento vira-lata, pois sempre foi um grande propagador de brasilidade. Avoa, Moraes Moreira, que essa brincadeira não acaba, e logo a gente vai começar chorare só de alegria com tudo que você deixou plantado na terra. 




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