Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

3 de abril de 2020

Já que o trem tá russo


Uma querida  amiga e colega me marcou agorinha nesse compartilhamento no mínimo inusitado. Em meados dos anos 1980, quando a redemocratização no Brasil coincidiu com a adoção da Perestroika e da Glasnost, políticas de abertura econômica e política na antiga URSS, o então presidente José Sarney articulou, segundo consta com patrocínio de uma fábrica de tintas (cuja logomarca constaria da contracapa), a gravação de um LP (traduzindo no Google o título fica: Brasil - País de Todas as Cores, com produção do saudoso Zé Rodrix), como forma de presente sua viagem diplomática àquele país, em que nomes consagrados no cenário da música popular brasileira, incluindo gente como Alceu Valença, Moraes Moreira, João Bosco, Belchior, Leila Pinheiro, Wagner Tiso e Jards Macalé gravaram canções feitas a partir das traduções de poemas de grandes nomes da poesia russa, como Maiakóvski, Serguei Iessiênin e Velimir Khlébnikov. Ocorre que, segundo informa quem postou o "vídeo de áudio" , quem traduziu (não sei se um ou vários tradutores) processou (quem? O governo federal?) por falta de autorização e imagino que igualmente dos devidos créditos. Difícil apurar mais do que isso. Além de tudo, dada minha completa ignorância do russo, o pouco que pude fazer fica na dependência total do tradutor do Google. Fica a curiosidade da página do site Discogs, em que o disco se encontra elencado, e a gente se diverte com a grafia em alfabeto cirílico de nossos mestres, como esses dois aqui que são fáceis de adivinhar Жоао Боско e Жоелью-Де-Порко. Ali também não há crédito de tradução, mas dá pra saber a autoria original do poema que foi musicado por cada um dos brasileiros. 
Dessas coisas que só acontecem no Brasil, e se não alivia em nada a biografia política profusa em conchavos e outras obscuridades de José Sarney, serve hoje para nos lembrar de um tempo em que um contingente maior de políticos brasileiros, inclusive seu presidente, mantinha, nem que fosse por aparências, uma relação de apreço pela cultura brasileira e seus melhores artífices, bem como uma atividade diplomática responsável. Vale muito a audição, dada a excelência dos poemas e da grande maioria dos músicos que se ocuparam em torná-los canções, verdadeiras transcriações que azeitam com jeitinho brasileiro a densidade poética dos russos.  Pra não pesar selecionei só algumas, mas é possível ouvir a reprodução do disco todo.








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