Acabei de assistir ao show Caravanas, do Chico Buarque, baseado em seu último álbum de estúdio, de mesmo título. Falar dos show do Chico nas últimas décadas corre o risco de chover muito no molhado. Ele encontrou um formato bem sucedido, para plateias elitizadas, economica e culturalmente falando. Tudo de muito bom gosto, acompanhado de músicos tarimbados sob a batuta do inseparável Luiz Cláudio Ramos. O repertório, obviamente, é impecável, dado o manancial de onde jorra. Há uma boa combinação das obras-primas que atravessam décadas com as novidades do disco que dá nome ao show, com boas concatenações na sequência combinada, como quando casa Desaforos (de Caravanas) com Injuriado (uma das minhas preferidas, de As cidades), A volta do malandro e Homenagem ao malandro, Todo sentimento e Tua cantiga, ambas parcerias com Cristóvão Bastos e a que mais repercutiu do trabalho mais recente. O som é isso, é infalível, é candidato à unanimidade, mas às vezes falta uma aresta, uma sujeirinha que seja, algo fora do roteiro. O visual talvez denote mais ainda esse problema, a iluminação exagera em focar só o Chico o show praticamente todo, e às vezes os músicos não são mostrados no vídeo nem quando solam. No final o Chico apresenta a banda, como manda o figurino, mas fica essa sensação de que ficou tudo profissional demais. Confesso que gosto mais do Chico menos gourmet, menos arrumado, mais suburbano dos anos 1970. O público também não surge de frente em momento nenhum, no máximo algumas cantaroladas numa ou outra mais conhecida e uma vaga de braços que acenam, e que o Chico, numa corridinha demonstrativa de seus cuidados providencias com a saúde, cumprimenta como aqueles jogadores de basquete da NBA fazem. Tudo isso me recorda uma passagem do André Midani, então diretor da Phillips, se queixando que o Chico não era profissional como o Gil. A Terra, afinal, é redonda sim, e dá voltas.
Aproveitando o ensejo, recupero um texto que ficou no rascunho, que era baseado em alguns debates levados no facebook, e que de certa forma "morreu" porque a oportunidade de publicá-lo passou. Em véspera de páscoa, acho que vale tentar essa ressurreição.No período de lançamento do disco, reagindo a uma provocação sobre a acomodação do artista, ponderava o seguinte: levemos em conta que o sujeito em questão passou dos 70. Uma certa dose de autocomplacência é aceitável. Claro que ele encontrou uma fórmula que lhe agrada e fica relativamente aferrado a ela, com os mesmos músicos, mesmo arranjador. Nesse ponto da carreira ele pode se permitir esse conforto. Ainda assim, o esmero dele, em especial nas letras, me faz pensar que não há isso, apenas uma decantação mais demorada de se constatar. Se a minha vida inteira eu conseguir uma vez atingir algo próximo a "Tua cantiga", "As caravanas", ou "Jogo de bola", morro feliz. Os arranjos do Luis Cláudio Ramos são muito bem cuidados, só não são propriamente ousados. Escrever isso dá trabalho. Chico é um excelente cantor, pode-se perguntar a qualquer um que entende de música. A voz dele é emblemática, da forma como encampa o que canta. Essa personalidade tem a ver inclusive com o timbre. O disco todo é embebido na temática contemporânea das construções de representação de identidade, especialmente nas redes sociais - daí inclusive a nova versão de Dueto, cantado com sua neta (e como tantos de sua geração ele dá uma forcinha pra descendência, botando letra e gravando uma parceria com o neto, Chico que nem ele). Há um questionamento de certo modus operandi raso do "identitarismo", provocações contra as patrulhas. Quem der uma chance vai acabar achando que é político demais. No calor da fervura do lançamento, duas canções capturaram a atenção e foram alvo de intensa discussão, "Tua cantiga" e "As caravanas", justamente por pisarem nesse campo minado. Da primeira já tratei em outra postagem. Aqui então passo a tratar da segunda, começando por rebater a acusação - montada em cima da apreciação do vídeo oficial da canção. Considero, antes de mais nada, que o Chico não é racista (creio que não preciso enumerar as razões suficientes para esta constatação), mas ao mesmo tempo é um grande "radiologista" do racismo no Brasil. Basta ler algumas páginas do romance Leite derramado, fora tantas das suas canções. Talvez se alguém arregimentasse músicos negros para compor a orquestra,outro poderia dizer que isso foi feito num ato politicamente correto... o próprio Rafael Mike foi surpreendido pelo convite, dá pra ver um pequeno depoimento dele em algum lugar, no vídeo ou numa matéria de jornal. Aí podemos pensar nos diálogos que são propostos na música também, desde a referência a Caravan de Duke Ellington. Estamos também muito condicionados pelo 'oculocentrismo' do nosso tempo, emprestamos ao que vemos mais importância do que ao que ouvimos. Certamente se pode pensar pelo ângulo sociológico, uma vez que a maioria dos músicos que aparecem são de uma orquestra, onde essa ausência é bem visível. Não temos também como saber se alguns, sendo brancos ou mestiços - e em se tratando de Brasil, em boa medida somos mais é mestiços que qualquer outra coisa - nasceram numa favela. Por outro lado, percebo que os elementos do funk que entraram estão domesticados. Isso me pareceu estar em confronto com o que a canção propõe, ou seja, que ninguém para a caravana, gostando ou não dela.
Já escrevi um pouco antes e ainda não consegui amadurecer a reflexão, mas acho reducionismo ficar colocando tudo na sacola do pós-colonial. É lógico que nossa colonização nos marca. Como Brasil, como América do Sul, Latina. E até como Americanos que raramente recordamos que somos. Mas é uma experiência totalmente distinta em vários aspectos daquelas do período do imperialismo em África e Ásia, que depois do processo de descolonização deram origem a esse pensamento pós-colonial. Além de ser necessário lembrar que muito disso passou a ser cozido no coração anglo-saxão do imperialismo, na Grã-Bretanha e nos EUA. Tudo isso tem implicações que não se pode desconsiderar. Agora mesmo eu li uma crítica da exposição da Tarsila no MoMA que supunha haver uma linha muito tênue (!) entre a antropofagia e a apropriação cultural. Nada mais distinto. A academia, longe de ser um reino de cristal em que o conhecimento circula livre leve e solto, é um lugar cheio de embates. Há uma tentativa, ainda que sutil, de transformar várias das conquistas culturais e intelectuais latino-americanas, que inauguraram tradições e transformaram essas sociedades, além de prefigurar soluções de vários de seus dilemas mais profundos, em espécies de ensaios incompletos e versões inacabadas de concepções mais elaboradas e concatenadas que estão patenteadas ao Norte. Em bom português, os bispos estão tentando nos comer. Certamente passarão, e Chico Sabiá Passaredo.
Finalmente, como quase sempre tem sido ultimamente quando se lançam as críticas esquemáticas, sem estofo nem ponderação dos praticantes do "identitarismo", o mexido entre preconcepção e falta de interpretação de texto sempre impede que o reclamante enxergue muito mais que um palmo à frente do nariz, de modo que ele nunca se dá conta que existe um "eu lírico", que o compositor possa estar na pele do "Outro", que isso é uma faculdade da criação artística tanto quanto é um exercício antropológico. Assim, no automático, acusaram Chico de reproduzir preconceitos, quando ele traz mais essa exposição da fala preconceituosa, mas malandramente a critica pelo exagero evidente das expressões que emula saindo das bocas das elites tupiniquins. É justamente pra colocar esse preconceito em pauta mesmo, e talvez isso possa ser mais coerente com o percurso dele, e ser mais crível do que simplesmente uma imitação barata de uma estética da favela atual, por exemplo. Eu vejo que às vezes ele chega pela língua, e acho essa a aproximação mais orgânica, digamos assim, quando ele incorpora coisas como "chapa quente", "quebrada", "é o bicho"... quer dizer, o cancionista brasileiro produz aí, no meio dessa língua tão mutante, incansavelmente criada e recriada. É o bicho, é o Chico, e ele nos devora.
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