Mais uma reedição caça-níquel. Mas como tá na área, resolvi dar uma escutada nova em Flaming Pie, álbum que Paul McCartney lançou em 1997, no rescaldo das atividades do projeto "Antologia". Dali ele carregou a nostalgia e o versátil Jeff Lynne, chapa de Harrison, membro dos Traveling Wilburys e da ELO, para tocar e coproduzir uma parte das faixas. Em algumas outras reeditou a dupla campeã com George Martin. O resultado é um disco caseiro, familiar, rústico e informal. Paul mesmo anuncia: "alguma diversão sem suar muito (...) é só um álbum (...) Então chamei uma penca de amigos e familiares e só pegamos e fizemos". Seu filho, guitarrista mediano, está no disco para confirmar.
O acabamento retrô aplicado às faixas, com direito a piano Wurlitzer, mellotron e outras preferências sessentistas e setentistas, foi perfeitamente incorporado ao projeto gráfico do encarte/livreto, aliás diga-se de passagem é um ponto alto, raramente veremos o formato CD tão bem apresentado. E um dos destaques é a possibilidade de explorar as transcrições de relatos, nas quais o próprio Paul dá um caldo a mais nas já certeiras notas de Mark Lewinsohn e Geoff Baker que circunstanciam a composição e produção de cada canção. É o tipo de coisa que a gente gostaria de ver sempre, no próprio disco.
A referência culinária e simultaneamente beatlelógica capta muito bem seu conceito geral, uma torta remete ao ambiente doméstico e acolhedor, mas "a" torta em chamas da canção título é a remissão calculada à espirituosa brincadeira de Lennon tirando onda em cima da sacada de substituir um "e" por "a" criando o nome Beatles, jogando simultaneamente com as palavras "beetle" (besouro) e "beat" (batida) - simples e genial como ele e uns poucos poderiam ser. Nostalgia e familiaridade bem servidas para o fã, mas também um sabor diferente para o "não iniciado", seguindo a receita certeira do rock+pop que Paul foi consolidando disco após disco, mesmo sem cravar aí nenhuma canção inesquecível. Na verdade tem uma trinca bem descartável, "If you wanna", "Used to be bad" (essas duas do reencontro com o guitarrista Steve Miller, com Paul tocando bateria) e a jam "Really love you" (com Lynne e Ringo), atestados de que a onda era só "fazer um som com os amigos", mesmo. Mas coloque, daí pra diante, a esperteza radiofônica de uma "The world tonight", o refrão de hit instantâneo de "Young boy", a suave canção de amor feita pra ser ouvida num domingo à tarde diante do mar "Heaven on a sunday", o tempero folk norwegian wood de "The songs we were singing", "Calico skies", "Little willow" e "Great day" (trilha do café da manhã que é só um gostinho de quero mais depois que o disco já acabou), a vibe Motown soul de "Souvenir", a íntima e reflexiva balada longa na voz e violão "Somedays" que ganha "gravidade" com mais um arranjo orquestral magistral de George Martin, e para fechar "Beautiful Night", uma balada romântica ao piano pra matar de vez a saudade dos velhos tempos junto com o Ringo. Claro que vai ter mais uma orquestração de George Martin no gran finale. Contaremos nos dedos quantos cancionistas populares poderão soltar, sem grande esforço, um conjunto assim palatável, com apelo massivo sem sacrificar um certo apuro musical, compondo e cantando todo o repertório, tocando vários instrumentos, produzindo, e depois de tudo isso poder dizer sem falsa modéstia que é "só mais um álbum" , e conseguir realmente fazer ainda melhor que isso.
No frigir dos ovos, o disco envelheceu até bem. E está servida a especialidade da casa do chef Macca, e todos nós vamos acabar pedindo mais um pedaço.