Mais uma partida das que inevitavelmente serão colecionadas e sentidas. Em 1991, quando foi lançado o Oratório de Liverpool, os meios para ter acesso a este tipo de lançamento fonográfico aqui eram escassos e caros. Provavelmente o maior ato de contrição e disciplina religiosa que cometi naquele ano foi ficar pacientemente em posição para gravar em fitas k7 a transmissão dessa bela obra, realizada pelos diligentes apresentadores do saudoso Alvorada Beatles Club. Depois me lembro de ouvir até gastar, deslumbrado, esse registro precário que para os meus ouvidos ainda pouco versados no cardápio de ousadias que músicos desafiadores de fronteiras - inclusive brasileiros como Jocy de Oliveira, Gismonti, Hermeto Pascoal, entre outros - já haviam realizado àquela altura do campeonato, soavam como ouro garimpado no fundo da mina.
Espaço que visa divulgar e disponibilizar trabalhos de criação e crítica referentes à MPB e música popular, não apenas para promover o intercâmbio de gostos e opiniões, mas fundamentalmente catapultar o debate sobre o tema.
Cerejas
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
6 de agosto de 2023
Adeus a Carl Davis, transcriador do Oratório de Liverpool
20 de dezembro de 2020
McCartney fez a trinca
O lançamento de um disco novo de estúdio de Paul McCartney por si motivaria uma postagem. Não preciso chover no molhado celebrando o talento de um dos maiores cantautores do mundo em atividade. Provavelmente não há paralelo no universo da música popular veiculada pela indústria fonográfica para seu holismo, plenamente registrado neste McCartney III. Como nas duas outras obras dessa agora trilogia, Paul compôs música e letra, cantou (com a exceção de alguns vocalizes de Linda, então sua esposa, no primeiro), arranjou, tocou todos os instrumentos, produziu e fez todo trabalho de engenharia de som (neste contou com alguns auxílios como se vê na ficha técnica), praticamente tudo sozinho. Hoje isso não é particularmente raro ou difícil em si, mas certamente ele é um pioneiro da prática e a excelência com que realizou tal empreitada, agora pela terceira vez, é digna de assombro. E o faz quase aos 80 anos de vida, nesse duro contexto de isolamento motivado pela atual pandemia, com um fôlego impressionante. Sua jovialidade às vezes passa do ponto e o leva a empreitadas tolas - como disse meu parceiro Raul Mariano, a quarentena nos poupou de um provável single com Miley Cyrus ou Taylor Swift. Por outro lado ela ecoa a inesgotável criatividade de quem, entre outras peripécias, junto com os demais Beatles, rompeu a barreira da sala de controle e revolucionou a arte da gravação. Mais notável é que ela se alia a uma maturidade assumida em cabelos brancos (ostentados na contracapa) e experiência de sobra, sinergia que o clima do disco traduz em contrastes que assinalam que inteireza não precisa ser o mesmo que homogeneidade.
Como já foi ressaltado nas primeiras críticas que saíram, os discos que compõem a trinca comungam, além do modo de sua fatura, a demarcação cronológica de lançamento em anos redondos (1970, 1980, 2020) e momentos difíceis: McCartney na separação dos Beatles, McCartney II no fim de sua banda Wings, e este agora, num contexto de apreensão global, ainda que pessoalmente ele esteja tirando de letra, cercado de familiares e trabalhando confortavelmente em seu próprio estúdio em Sussex, numa temporada que divertidamente ele nomeia com o trocadilho 'rockdown'. É preciso dizer que nesse conforto todo ele encontrou um refúgio seguro, mas fez disso impulso para criar sem a interferência de turnês, ensaios com banda, viagens, atividades de divulgação e outras agendas. Claro que seria plenamente possível ter outros músicos tocando, até mesmo à distância, com a tecnologia disponível hoje em dia, mas claramente ele fez dessa solidão sua própria terapia. Uma felicidade que ele tenha compartilhado com todos nós o resultado. Um tremendo workaholic, Paul teve tempo para esculpir lenta e pacientemente cada gravação, pintar camada após camada, trabalhando como um artífice experimentado que inclusive se permite deixar arestas, rudezas, fazendo desse contraste entre o áspero e o delicado um conceito estético que também aproxima os três álbuns mas neste se afirma soberano, expresso inclusive na capa do disco. O dado com a face no três, em que a leitosa superfície branca contrasta com as negras cavidades em trio, o claro e o escuro, o evidente e o misterioso, o polido e o rude, é a tradução visual de sua sonoridade. Também remete ao piano, à combinação de ébano e marfim que mereceu de Paul uma bela canção. Aliás pode ser em um lustrado tampo de um piano que o dado, em impossível equilíbrio, é refletido. Imagem simples, sintética e eficaz.
Passemos ao som, o que mais importa. Numa discografia vasta e variada como a de McCartney, é ainda mais inevitável situar um disco novo lançado. Para além da trilogia em si, portanto. Só neste milênio Paul lançou, com este, 7 álbuns de estúdio, apenas um deles - um fato único em sua obra - exclusivamente como intérprete, o ótimo Kisses on the bottom (2012). Entre os demais reluz Chaos and creation in the backyard (2005) que está certamente entre os melhores de toda sua carreira após os Beatles. O resto é cheio de altos e baixos, normal para um artista que seguiu preferindo ser prolífico. Mais recentemente, depois do pouco notável New (2013) ele lançou Egypt Station (2018), um dos pontos mais baixos de toda sua discografia, com canções de uma pobreza terrível para os padrões que ele já atingiu, muita auto indulgência e um comercialismo raso de quem inverte as prioridades e coloca a música a serviço da atração de plateias novas e das execuções em turnês em estádios lotados. Em McCartney III Paul se sentiu totalmente livre dessa fórmula, ainda que ao mesmo tempo construa o disco como um exercício de recapitulação a partir de esboços pinçados dos arquivos de seu celular, ou numa excursão praticamente arqueológica que fez no início do processo ao retomar When winter cames, singelo tema folk com jeito de fábula gravado no início dos anos 1990s que consta ter sido mostrado a George Martin, e acabou sendo a última faixa. Assim como a memória opera mesmo, retomando e atualizando os materiais que recupera, quando Paul quer ele filtra muito bem o que está rolando e assimila ao repertório vastíssimo que tem na cabeça. Livre das colaborações infelizes com os ídolos pop de ocasião, ele contribui consigo mesmo, como se estivesse tocando lado a lado com o Paul dos Beatles, o dos Wings, o de diferentes décadas de sua longa carreira solo - Find my way é o exemplar concentrado de como temperar a levada de hit radiofônico com cravo e camadas de guitarras reiteradas (com pios do riff dobrado de And your bird can sing). E aí ele aplica sua burilada capacidade de mesclar cantigas rústicas em que as cordas de aço do violão parecem cortar sutilmente o ar (a instrumental Long tailed winterbird, que volta como vinheta antes da última faixa) com riffs diretos e furiosos em rocks animados e despretensiosos (Slidin', Lavatory Lil, cruzamento retrô abbeyroadiano do humor negro de Maxwell's Silver Hammer com a pegada sacana de Polythene Pam), concentrados românticos dedilhados assobiáveis (The kiss of Venus, Pretty Boys - cujo traço ciclístico e crítico ao consumismo me remeteu a Biker like an icon e Junk), canções de alma camerística (a beatlelesca Seize the day, decalcando o consagrado mote carpe diem e citando levemente o arranjo de cordas de For no one) excursões mântricas experimentais (Deep deep feeling), mergulhos embalados em soul emborrachado (Deep down), ou reflexivas e confessionais baladas ao piano (Women and wives). Um breve "faixa a faixa" do próprio Paul foi publicado aqui.
As letras merecem destaque, muito melhores do que no disco anterior. Se há alguns costumeiros deslizes pueris, típicos dele, há apreciações maduras sobre ansiedades e montanhas-russas emocionais de nossa época, bem como um apelo à consequência e ao cuidado. Os títulos haviam me chamado a atenção antes de sair o disco e amarram bem o conceito central de contrapor o cenário de apreensão e dificuldade, simbolizado pelo inverno, ao desejo de superá-lo, metaforizado pelo pássaro e representações associadas a voo e deslocamento. Cigarra e formiga, Paul McCartney canta o necessário abrigo para tempos difíceis já intercalado com o assovio que anuncia que dias melhores virão. Suas canções fazem parte dessa trilha.
* Deixo um agradecimento especial ao meu amigo Guilherme Lentz, com quem tive o prazer de partilhar uma primeira apreciação e trocar ideias pessoalmente sobre o disco, e ao parceiro Thiakov, pela audição comentada compartilhada numa conversa via whatsapp que anulou a distância transatlântica.
** Paul respondeu muitas questões de fãs - inclusive sobre o disco - na rede social Reddit, aqui.
*** Faixas bônus
Bonus Japan Women And Wives ( Studio Outtake )
Lavatory Lil ( Studio Outtake)
The Kiss Of Venus ( Phone Demo )
Slid in’ ( Düsseldorf Jam )
****Um bom artigo que complementa [aqui]
30 de junho de 2020
Requentando a torta flamejante


19 de outubro de 2017
Valeu, sô: Paul em Beagá, mais uma vez, e a lista das que ele não toca!
Dessa vez resolvi que ficaria no fundo do estádio, mas de frente, só pra variar mesmo - acho que valeu a tentativa. Conformado já estava que dali a gente acaba olhando mais o telão mesmo. O show começou, como de se esperar, em alta voltagem, com "A Hard day's night" e aquele cartão de visita - sim, esse cara aí é um Beatle e isso atualmente é o mais próximo que vc pode ter de assistir um show deles. A fórmula infalível que garante a 'satisfaction guaranteed' é a inevitável mescla de altas doses do repertório consagrado dos 4 cavaleiros do após-calipso, alguns hits de sua carreira com Wings e solo, uma ou outra canção mais recente (nesse show para mim o ponto 'fraco', já que sinceramente coisas como Save us, Queenie Eye e esse caça-níquel com Kayne West são totalmente dispensáveis) e uma ou outra surpresa. Infalível, porque na hora em que solta uma ou outra inusitada ou relativamente desconhecida (para o delírio de quem conhece melhor a obra sempre tem algum agradinho, como "1985", ou "Here today" bela homenagem ao John lamentavelmente desconhecida do grande público, na sequência já tira da cartola uma "Maybe I'm amazed', uma "Can't buy me, love", e o pique não cai. Realmente, como já apontou o Vladimir M. A. Souza o som estava meio estranho no início, a voz do Paul às vezes encoberta pela banda. E claro que com 75 anos ele não pode cantar todas aquelas notas dos discos e tal, mas sabe como poucos o que faz e segura a peteca, inclusive no bis lá pras 3 horas de show mandando "Helter Skelter". A banda é muito boa, por sinal, bem competente, e talvez o destaque mesmo seja o Abe Laboriel Jr., batera vigoroso e carismático. Faz a falta a banda ter um guitarrista como o Robbie McIntosh, com assinatura. Mas os caras dão conta do recado. Em matéria de arranjos é uma pena não ter quarteto de cordas, naipe de sopros, instrumentação para dar outra qualidade a várias das escolhas de repertório. Quem já viu um vídeo das turnês Wings Over alguma coisa sabe o que eu estou falando. Das surpresas eu curti muito "In spite of all the danger", achei grande sacada ele mandar essa 'antiguidade', é como um vestígio arqueológico de McCartney, Já mostra o alto teor pop das melodias, e a manha de inserir pequenos trechos cantarolados que viram uma marca inconfundível de certas canções. E o arranjo pra "You won't see me"? Pra mim a parte acústica - outra marca registrada dos shows de McCartney - foi sensacional, e com certeza nenhum outro show de rock de estádio no mundo pode propiciar isso. Nota especial para 'Blackbird', precedida de uma dedicatória aos Direitos Humanos - para além de sua enfadonha correção política, nessa realmente Paul foi ao âmago do que uma canção pode significar politicamente, sin perder la ternura. Matou de raiva os coxinha na plateia, deu pra sentir. Falando em público, emoções muitas pela noite, claro, como coros incríveis em "Something" e "Eleanor Rigby" (quem mais no mundo pode ter 50 mil ou mais cantando uma canção desse naipe?) e lógico, as "Let it Be" e "Hey Jude" da vida, que não podem faltar. O medley final de Abbey Road fecha o bis com chave de ouro, ainda que eu não tenha achado os solos de guitarra particularmente interessantes dessa vez. Enfim, falar que foi um show inesquecível é chover no molhado (que bom que não choveu literalmente). Finalmente, foi uma alegria a parte ter a sorte de compartilhar os momentos com os queridos Fabiano Buchholz de Barros e Michele (que formam uma das famílias mais lindas que eu conheço). Esbarrei com o Pedro Morais ao final mas infelizmente encontrei menos amigos e amigas do que eu gostaria. Sobretudo, a felicidade maior foi viver essa noite ao lado da filhota Marilu, companhia mais especial para dividir cada minuto. Tínhamos uma brincadeirinha nossa, de eu tentar adivinhar qual seria cada próxima - claro que eu já tinha dado uma sacada no repertório dos últimos shows, mas juro que não colei rsrsrs. Ela é simplesmente uma pessoa adorável, daquelas que mereceria ser personagem numa canção do Paul. E que venha o próximo!
20 de julho de 2016
Canções irmãs, compositores irmãos
Paul fez Yesterday e depois Tomorrow, Blackbird e depois Bluebird. Caetano fez Você é Linda e depois Você é Minha. Gil foi além : Refazenda, Refavela, Rebento, Realce, e também Extra e Raça Humana. São canções irmanadas. São como côncavos e convexos. "
Lô Borges, Márcio Borges e Wanderson Eller em intervalo de show de Lô no Circo Voador. Rio de Janeiro, RJ - 1986. [Acervo Museu Clube da Esquina]
Acabei fazendo uma playlist com a maioria das citadas para acompanhar a leitura.
1 de fevereiro de 2014
O outro lado do Grammy
Eu, o baterista Edu Ribeiro e o baixista Paulo Paulelli fazemos música instrumental brasileira, tocando basicamente os grandes autores do choro, do samba e da bossa, como Jobim, Pixinguinha e Baden, e também nossas próprias composições. Escrevo sob o impacto do prêmio por nós recebido no dia 26 de janeiro, o Grammy de melhor álbum de jazz latino, pelo CD “Song for Maura”. Esse trabalho foi fruto de uma parceria entre o Trio Corrente e o saxofonista cubano radicado nos EUA, Paquito D’Rivera. Muita gente me disse: “Eu assisti a cerimônia do Grammy na TV e não vi vocês lá”. É bom esclarecer que além dessa premiação televisionada que reúne as grandes estrelas do Pop, num teatro menor ao lado do imenso Staples Center é realizada uma outra cerimônia que entrega 72 Grammys para as mais diversas categorias como jazz, gospel, música clássica e outras.Pois bem, é aí que estão incríveis grupos de música de câmara, compositores e intérpretes de música erudita, bem como alguns dos jazzistas mais conceituados dos EUA e do mundo. Vimos alguns de nossos ídolos ganhando ou perdendo seus prêmios na nossa frente. E, esperamos 40 categorias – mais ou menos 2 horas – até chegar nossa vez. Apenas um brasileiro havia faturado essa categoria até hoje, nosso maestro Tom Jobim em 1996.Eu fiz de tudo pra fugir do espírito de competição, exorcizar o terrível “winners and losers” dos americanos. Mas o fato é que foram duas horas da mais terrível angústia. E o instante em que anunciaram nosso nome foi algo indescritível. Sim, é um pouco piegas, mas foi exatamente isso. Uma mistura de alívio com extrema felicidade. Pensei também na enorme e artificial distância que nos separava dos outros indicados preteridos. Após nos tornarmos “Grammy Winners” nos tiraram da platéia e nos levaram pra sessões de fotos e entrevistas enquanto os outros eram como que abandonados à própria sorte.Logo depois fomos ao Staples Center assistir a premiação das estrelas do pop, rock, country, rap etc. Eu estava acompanhado de minha filha e entramos pelo tapete vermelho junto com dois caras com roupas de robô. Também havia muitas luzes e burburinho mas sou completamente ignorante em matérias de ícones pop. Minha filha acha que no centro de uma rodinha muito agitada pela qual passamos estava a Madonna…mas podia ser a…Taylor Swift??Vimos de pertinho o Paul e o Ringo, o Stevie Wonder e uma negra muito, muito linda que, há pouco descobri, se chama Beyoncé. Claro que, para ouvidos de músico experiente, foi fácil identificar muitos artistas sem nenhuma substância musical, alguns inclusive sendo consagrados e que serão vítimas da efemeridade inclemente. Assim como foi fácil perceber o porquê de alguns veteranos fazerem sucesso durante tanto tempo, tal a verdade de sua arte.Toda essa experiência inusual me fez pensar muito sobre a música, o sucesso. Pensei na distância que separava a nossa música da música daquelas estrelas. Pensei na estrutura imensa, paquidérmica, que move essa fábrica de celebridades e no quanto, cada vez mais, essa estrutura será ameaçada pela multiplicidade de vozes que a internet traz.Muitas pessoas se queixaram da ausência do Trio Corrente na televisão brasileira, na noite da premiação. Achavam que deveria ser destacado o fato de artistas brasileiros serem premiados. Estarei sendo sincero em confessar que isso não diminui nem sequer uma ínfima fração de meu contentamento. Não tenho televisão em casa e tive a sorte de conhecer uma moça que também não tinha e me casar com ela.
Trio Corrente & Paquito D' Rivera
Festival Internacional de Jazz de Punta del Este - Uruguay
Janeiro de 2011
Paquito D'Rivera -clarinete
Fabio Torres - piano
Paulo Paulelli - contrabaixo
Edu Ribeiro - bateria
15 de outubro de 2013
McCartney ressurge (?!) or, the first septuagenary on the disco
"McCartney bem diferente do que lançou “Kisses on the bottom” — uma coleção de clássicos americanos, em 2012. No novo trabalho, Macca está muito mais “moderno”, embora tenha preferido usar apenas instrumentos vintage na gravação das canções, num clima que lembra bastante o seu projeto “The fireman”, que rendeu o ótimo “Electric arguments” (2008)." (Fernando de Oliveira/O Globo).
R. Senra:
sobre o Chaos and Creation, acho ele muito bem produzido, mas eu particularmente senti falta de um "algo mais" no disco. Deixo claro que é gosto pessoal mesmo. Nunca prestei atenção nas letras dele, exceto as faixas que Paul tocou naquele video "Chaos and Creation at Abbey Road", como English Tea, e outras que lembro ter gostado. Concordo com o que vc diz sobre Paul, e, no mais, achei que o New herda um pouco da produção modernizada do Electronic Arguments (que diziam ser um projeto eletrônico, mas q achei bem orgânico), com a diferença de que Paul parece retomar um suposto formato tradicional da canção popular em diversas faixas. O saldo pra mim (sempre lembrando que, no calor do momento, as opiniões saem meio enviesadas) é um disco uniforme na qualidade, ainda que sem pontos consideravelmente altos.
L. Garcia:
Acho que o "New" mostra sem dúvida um McCartney que jamais se acomoda, mas que por outro lado às vezes se ressente da falta de uma voz dissonante e discordante na composição. Acho sintomático que o disco proponha algum diálogo na figura específica dos produtores, e não de outros músicos. Assim a aventura da coisa parece estar mais nas timbragens e em alguma medida nos arranjos de modo geral, mas aí, posso até estar enganado, mas não escuto novidade no plano geral, ainda que seja interessante a ideia de um cara na faixa dos 70 procurar uma expressão com um vocabulário sonoro da geração que tem 20,30. E enfim, como letrista, nada me chamou muito a atenção, tirando um ou outro achado aqui e ali. Mas tem mesmo que esperar o "pouso" da audição, como o Lentz disse.
P. Castro, entrando com a costumeira contundência:
Achei fraco. Ouvi até a metade. Claro que Paul continua com seu profissionalismo composicional, mas muito em círculos. Não é na produção fonográfica que se renova a composição de canções. O som pode até ser contemporâneo, mas as idéias musicais continuam muito antigas. Thiakov provoca: Reclama não Pablo Castro! Presentaço do vovô Macca. P. Castro, na sequência: Mas pra que essa condescendência toda ? Ele não é meu avô, mas parece ter problemas em envelhecer, como, aliás, seu contemporâneo caetano, igualmente incapaz de atingir o nível de seu auge, igualmente tentando oxigenar suas composições com tendências da moda. Pelo menos Caetano ousa mais, ainda que a custo de seu antigo apuro melódico e formal. Paul, aqui, realmente parece , mais do que velho, cansado, recorrendo às velhas formas. Do ponto de vista da composição, esse disco poderia muito bem ser da década de 80, há 30 anos. Claro que há momentos interessantes, mas os automatismos de melodia e harmonia perduram sem tocar no sublime que lhe era tão frequente nas décadas de 60 e mesmo 70. Do ponto de vista das letras, parece ter alguns achados, mas nada realmente muito surpreendente. A grande pergunta é: por que continuar gravando um disco por ano, se ele não acrescenta realmente nada à sua obra. Achei bem mais interessante a ideia do disco de standards do ano passado. Acho que ele poderia redescobrir algumas pérolas dele, que ficaram escondidas em tão extenso cancioneiro. Seria bem mais consequente do que se obrigar a fazer 13 músicas por ano aos setenta, além de turnê mundial , etc. (...) Falo assim , de ele ter respeito com a própria obra. É importante uma certa autocrítica, sei lá. L. Garcia: Concordo em relação à autocrítica. Paul é muito prolixo como compositor e simplesmente não se preocupa com essa de obra, até por já ter feito o que já fez, provavelmente. Claro que poderia usar essa ideia das releituras.
R. Senra: Isso que o Pablo disse é algo que sempre me inquietou. Tudo bem que o Paul exiba uma excelente forma, e faça shows antológicos de 3h de duração até hoje, mas ele passou as ultimas décadas repetindo um setlist composto pelos clássicos dos Beatles (eventualmente até resgatando algumas pérolas da banda, como Benefit of Mr.Kite), e alguns dos seus hits solo. Mas ele tem MUITA coisa boa talvez nunca tocada ao vivo. O próprio Paul disse numa entrevista recente que a ideia de fazer shows na linha "classic albuns" não o agradava muito (o repórter sugeriu que ele tocasse o Band on the Run ou o Ram inteiro ao vivo). Seria realmente revigorante vê-lo sair desse repertório que, ainda que impecável, tornou-se meio que lugar comum (ainda que, convenhamos, é um lugar comum fantástico, rs). L.Garcia: acho que por mais maluco que pareça, o Paul se comporta muito como se ainda fosse preciso dar o show, agradar as grandes audiências, ele respira através disso e provavelmente não sabe viver sem isso.
Encerro com o segundo título, pretensa síntese em uma frase do que seria uma apreciação bem rigorosa do álbum, inspirada pela audição da faixa bônus "Struggle":
McCartney, the first septuagenary on the disco
25 de maio de 2013
Grandes encontros da música popular: desencontros
Grandes também são os desencontros na história da música popular, e de alguma forma testemunha o quão humana ela é. Além de McCartney estar em férias quando o telegrama chegou, os conflitos internos dos Beatles, questões financeiras e de agenda que afetavam Miles e em seguida o falecimento de Hendrix tonaram esse encontro irrealizável. Mas a mente de qualquer amante da música vai girar num verdadeiro carrossel sonoro só de imaginar o que poderia ter acontecido caso ele ocorresse.
Convido quem mais tiver devaneado encontros como esse a relatar aqui no blog.
9 de maio de 2013
As 20 mais geniais lados B de Paul McCartney - Parte IV
De novo vemos Paul em sua veia doce, discorrendo sobre as virtudes do amor e as vicissitudes da guerra, por meio de metáforas musicais; assim como em Tug of War, que solicitava a batida de outros tambores que não os militares, aqui ele fala nas músicas de alegria, nas flautas da paz*, na igualdade das pessoas, que "um e um é tudo que buscamos ser ". Dessa maneira, é um segundo eco de Imagine que Paul sentiu ser seu dever como compositor refletir. Enquanto é verdade que Paul não chegue às raias da subversão como " Imagine no religions, no possessions, no greed, no hunger" o fato é que tanto Tug of War quanto Pipes Of Peace indicam a mesma direção, e é bom ver McCartney cantando algo maior do que uma pequena narrativa de personagens imaginários, uma música mais universal.
Sobre a anatomia musical dessa canção, Paul usa um gambito muito interessante tanto na forma quanto na harmonia. Uma introdução muito melodiosa que pouquíssimos compositores deixariam de usar como base das estrofes da música, em Mi Maior, dá lugar, subitamente, a Dó Maior, que revela ser o tom principal da música, para as estrofes seguintes. Nessa passagem, há uma modulação rítimica interessante: o que era o tempo de semínimas na introdução de repente se torna, em batidas mais stacatto e em estilo reggae, o contratempo da próxima sessão da música. A quadratura se compõe de clássicos 16 compassos por estrofe, enquanto num intermezzo instrumental, baseado numa estilização da estrofe, temos 6 compassos. Melodia, como de costume, extremamente expressiva e consequente, entre saltos precisos e graus conjuntos, revestida de um arranjo pop, com detalhismo de timbres, conduzidos pelo piano de Paul, e que a certa altura inclue uma tabla indiana, além dos indefectíveis backing vocals. No epílogo, temos a volta do prólogo inspirado, e o recado está muito bem dado.
Pipes of Peace
I light a candle to our love
In love our problems disappear
But all in all we soon discover
That one and one is all we long to hear
All 'round the world
Little children being born to the world
Got to give them all we can ‘til the war is won
Then will the work be done
Help them to learn songs of joy instead of
Burn baby burn, let us show them how to play
The pipes of peace, play the pipes of peace
Help me to learn songs of joy instead of
Burn baby burn, won't you show me how to play
The pipes of peace, play the pipes of peace
What do you say? Will the human race
be run in a day? Or will someone save
This planet we're playing on?
Is it the only one? (What are we going to do?)
Help them to see that the people here
Are like you and me, let us show them how to play
The pipes of peace, the pipes of peace
I light a candle to our love
In love our problems disappear
But all in all we soon discover
That one and one is all we long to hear
Há ótimas canções dessa parceria no disco como o hit beatley My Brave Face, You Want Her Too ( que parece tirada do próprio disco Help, com Costello cantando os contrapontos como se fosse John), mas a mais inusitada é essa canção cujo enredo me lembra muito "Não Sonho Mais " , de Chico Buarque. O narrador sonha que algo ruim pode ter acontecido à sua amada enquanto a espera em casa, e vai descrevendo as possíveis terríveis consequências de sua breve separação. Depois dessas ameaças imaginárias, ela volta pra casa, e o narrador culpa a mente da sua amada como responsável por todos esses horrendos devaneios.
A estrofe , em Ré Maior, cadencia para seu segundo grau, Mi Menor, em melodia primorosa, para depois passar pelo acorde surpreendente Dó Sustenido Menor ( ausente do campo de Ré Maior) para o refrão , descendo a Dó com Sétima Maior , Si Menor ( já de volta ao campo de Ré), e desembocando em Fá Sustenido Menor, terceiro grau de Ré. Muito interessante essa passagem, que é também a base para o B, em que Paul canta de voz mais plena, em contraposição às estrofes em quase falsete .
O arranjo, enquanto muito bem sucedido no acompanhamento puramente vocal na introdução, peca por diluir o sentimento da canção em teclados de propaganda de sabonete e bateria cool ; muito despropositada essa solução para um tema tão ardente.
Achei, aliás, uma versão demo de Paul e Elvis cantando que acho bem mais expressiva. Mas a canção, em si, é extraordinária !
Burn the midnight lamp
Down until the dawn,
I'll keep watch until I'm sure your coming home.
Shadows play and flicker on the bedroom wall
They turn into a bad dream overnight,
Something could be terribly wrong.
Don't be careless love,
Don't be careless love,
Don't be, don't be careless.
In my dream you're running nowhere
Every step you've taken turns to glue.
Walking down a spiral staircase
Falling through, falling through,
Don't be careless love,
Be careless love.
The lamp burns down and out
I'm getting pretty tired of this,
I feel so bad something might be going amiss,
I won't be there so look out for yourself
You're getting in deep whatever you do,
Don't let me go back to sleep,
Don't be careless love,
Don't be careless love,
Don't be, don't be careless.
Saw your face in the morning paper,
Saw your body rolled up in a rug
Chopped up into two little pieces
By some thug,
Don't be careless love,
Be careless love.
But in the morning light
When I wake up again
You're by my side and that's the way it's always been,
But in the dark your mind plays funny tricks on you,
Your mind plays funny tricks on you,
Your mind plays funny tricks on you,
Don't be careless love.
A primeira música, Treat Her Gently, no mesmo nível de simplicidade e compaixão , é em 4/4 , em Lá Maior, mas logo transpondo-se para Ré Maior, em cujo tom Lonely Old People ( mais longa) gravita, em sua lenta sequência de baixos descendentes , de Ré , passando por Si menor, e estabilizando em Sol, seu subdominante. Depois temos a cadência também clássica : G7M / Gm6 / F#m / Bm / G / % / D / % , seguida pela ainda mais clássica inclinação ao relativo Si Menor : A / A#o / Bm / E7 , o que nos permite falar : Paul tira leite de pedra ! Quero dizer, depois de Sgt Pepper´s, Paul não mais evoluiu seu vocabulário harmônico , por assim dizer, para além do que tinha feito até ali. É até uma pena que ele não tenha conhecido ou atentado para a Música Brasileira, com seu léxico harmônico muito mais expandido. Mas tal era sua habilidade, que conseguiu ainda surpreender muitos ouvintes com esse limitado leque de acordes, mas conduzidos muito habilmente, sempre usando modulações inusitadas para renovar o interesse.
Treat her gently
Treat her kind
She doesn't even know her own mind
Treat her simply
Take it slow
Make it easy
and let her know
You'll never find another way
Here we sit
Two lonely old people
Eaking our lives away
Bit by bit
Two lonely old people
Keeping the time of day
Here we sit
Out of breath
And nobody asked us to play
- Old People's Home for the day -
Nobody asked us to play
Treat her gently
Treat her kind
She doesn't even know her own mind
Treat her simply
Make it slow
Take it easy
and let her know
You'll never find another way
Here we sit
Two lonely old people etc., etc…..
…….Nobody asked us to play.
A próxima (19a.) da lista do Paul é a enebriante Long Haired Lady, do disco Ram ( o mais Beatle de Paul solo), de 1971, dedicada a e composta com Linda, que , mais uma vez, mostra a sutileza de seu compositor para com a forma, nessa canção que é um misto de influências e momentos diferentes, quase como outro medley. O início da música é um dos mais marcantes, de melodia verticalmente ascendente, com as relutâncias repetidas de "well, well, well, well, well ... " , referência inequívoca à faixa Well, Well, Well de John Lennon. A resposta de garota colegial americana é um barato, que Linda canta com a cobrança virgem de moça que quer casar :" Do You love me like you know you ought to do ?" " Or is this the only thing you want me for ? ", seguida de uma explicação reconfortante do nosso herói : "Well I´ve been meaning to talk to you about it for some time ... sweet little lass you know, my long haired lady " .
Segue-se uma segunda parte mais ritmada e sincopada, em Si Bemol, relativo de Sol Menor, enquanto a primeira parte, embora comece em Mi Menor, é indubitavelmente em seu relativo Sol Maior. Essa parte é também leve, até jocosa, mas é seguida de uma misteriosa melodia para a ponte: Long Haired .... Lady , cuja harmonia flutua da sexta menor Mi Bemol com Sétima Maior , de volta a Sol.
A terceira parte lembra ninguém menos que George Harrison, com seu envolvente e longo chorus em baixo pedal de Sol ( Isn´t it a Pity), com a enigmática frase: love is long. Depois de um pequeno retorno ao marcante inícios, voltamos a flutuar eternamente nesse mantra final, que , supostamente, reflete a consumação mágica dessa amor hipnótico pela moça de cabelos longos.
Uma das músicas mais inventivas de McCartney, com extraordinário arranjo, que contém delicadas passagens de guitarras, metais em abundância, mais uma indefectível linha de baixo e um violão muito bem tocado por Paul.
Well well well well well
Do you love me like you know you ought to do?
Well well well well well
Or is this the only thing you want me for?
Well, I've been meaning to talk to you about it for sometime,
Sweet little lass you know, my long haired lady.
Who's the lady that makes that brief occasional laughter?
She's the lady who wears those flashing eyes.
Who'll be taking her home when all the dancing is over?
I'm the lucky man she will hypnotize.
Long haired lady.
Bees are buzzing about my sweet delectable lady,
Birds are humming about their big surprise.
Who's your favourite person, dear phenomenal lady?
I belong to the girl with the flashing eyes.
Long haired lady.
My love is long, love is long, my love is long
I'll sing your song, love is long, my love is long
And when you're young, love is long, your love is long
When your lips lead into song, love is long, your love is long.