Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

5 de novembro de 2020

A crítica musical e as tentativas de enquadramento estético

 

Importantíssimo desde sempre o trabalho da Marcus Pereira para o patrimônio musical brasileiro. Acabei me deleitando também com a matéria do Walter Silva sobre Milton, cuja obra é objeto de estudo pra mim há muitos anos. Silva, conhecido como "Pica-Pau", tem longa história como disque-jóquei e radialista [para saber mais, aqui]. 
Sua crítica virulenta me parece uma tentativa tardia e fracassada de enquadrar esteticamente Milton Nascimento, reprisando a eterna ladainha conservadora que prefere o passado a priori e uma idealização rústica, artisticamente limitadora e essencialista, perdendo totalmente de vista os traços subsequentes de originalidade e ousadia que Milton revelou e explorou exponencialmente em sua carreira discográfica na década de 1970. Felizmente esse tipo de "saudosismo" fabricante de estereótipos não o vitimou em nada, e houve críticos em bom número para contrapor uma percepção mais acurada do que ele e seus parceiros de Clube da Esquina estavam fazendo, muito longe de ser postiço e artificial. O artigo denota sobretudo a dificuldade de seu autor em realizar uma audição compreensiva e abrangente sobre a criação de um artista, preferindo apegar-se a um tipo de "fotografia" narcísica baseada no momento em que lhe conheceu e aprovou. Como tem crítico que faz isso, até hoje. Agora, como documento que se presta à análise historiográfica, é uma pequena joia, instantâneo que revela algo sobre a prática da crítica musical na grande imprensa brasileira em meados dos anos 1970, e também sobre a recepção da obra de Milton, ali em vias de alcançar tanto a sua consolidação estética quanto um público bem mais amplo, no momento em que era considerado "o maior talento dos dias de hoje", como Walter Silva repercute, ainda que com tom lamentoso. Pena que ele não estava ouvindo direito. 

Um comentário:

  1. Mas nós também temos um saudosismo em relação ao Milton entre 1968 e 1978, não temos? O meu saudosismo inclui compositor e intérprete. Não acho o Milton um intérprete que sobreviveu à passagem da década de 70 para a de 80.

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