Espaço que visa divulgar e disponibilizar trabalhos de criação e crítica referentes à MPB e música popular, não apenas para promover o intercâmbio de gostos e opiniões, mas fundamentalmente catapultar o debate sobre o tema.
Cerejas
Silêncio
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...] Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida." Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
Como sempre faço, vou escrever sobre a feitura de uma canção que bateu asas e voou para fora do ninho da criação. Pensei muito antes de iniciar o relato sobre essa, procurando encontrar o melhor caminho para contar como nasceu esse pássaro, de uma forma especialmente idiossincrática. É que Fora do Eixo foi inicialmente motivada por um episódio grave, ocorrido em 2013, quando se expôs publicamente todo tipo de práticas nefastas e criminosas adotadas pelo coletivo de mesmo nome. Para quem quiser tomar conhecimento, lembrar ou se aprofundar, deixo o link da postagem que fiz aqui no blog à época. Em suma era a perversão mais dolorosa de um modelo de financiamento à cultura que sempre critiquei e ainda o faço, até porque sintomaticamente mesmo com esse e outros casos escandalosos nada foi feito para mudar essa concepção que no fundo dá a empresas privadas (o que no fundo era o Fora do Eixo) a gerência sobre recursos públicos recolhidos por impostos e assim o Estado acaba por bancar gratuitamente a promoção de sua marca, produtos, isso sem falar em várias burlas e desvios. O mais chocante era ali a maneira vil com que se explorava o trabalho dos artistas, num esquema que lembrava o de seitas religiosas, o que indignou muita gente, incluindo aí desde a primeira hora meu parceiro Pablo Castro, cuja crítica contundente neste caso compartilhei imediatamente. Decidi colocar em forma de letra todo meu protesto, ainda no calor do momento. Relembro aqui um trecho do original, recuperado em arquivo txt, que demonstra toda a intensidade do sentimento de raiva do "eu lírico" bravo, especialmente no refrão.
Fora do eixo
Me deixe fora fora do eixo deixa que eu deixo tô rolando meu seixo tô rachando freixo pra fender, pra estratocar
(ref.) Madeixas do meu cabelo deixa que eu sei cuidar eu derrubo tronco eu pego no tranco atiro de Parabelo zelo pelo meu lugar
Dei a letra para o Pablo em seguida, naqueles dias mesmo. Ocorre que o processo de compor música a partir da letra é geralmente mais difícil e moroso, mais ainda em parceria. Essa versão nunca ganhou a luz do dia, e muito tempo se passou até que ele me mostrasse alguma coisa que era outra, totalmente retrabalhada, ainda que trazendo ecos do que eu tinha escrito. Vinha numa levada incrível e muito brasileira, incutindo uma malemolência sincopada que se desdobrava na letra da estrofe inicial que ele tinha feito, adentrando uma linha tradicional do nosso cancioneiro popular dançante que é carregada do uso de duplos sentidos e conotações sexuais, quiçá reciclada numa chave boscoblancesca. Ao mesmo tempo trazia uma intenção de atualidade tremenda, que depois ficou perfeitamente traduzida no arranjo que remete ao maracatu eletrizado do Mangue Beat. Além de um esboço do refrão, não havia muito mais e minha tarefa era levar a cabo a letra daquele petardo. Pablo sugeriu o uso do dicionário de rimas, método que os melhores não hesitam em adotar, vide relato de gente do calibre de Chico Buarque. Pra mim era inédito, o que me empolgou, e ainda guardo vários rascunhos feitos naquela tarde/noite, que trazem desde o vocabulário pouco usual que empreguei em alguns trechos, como "usufruto" e "apetrecho", mas também muitas rimas que não entraram, incluindo aí o explícito "sexo" (rsrs).
Nos esmeramos nas rimas internas, ricas e nas sonoridades recorrentes, como chiados e anasalados. Observem por exemplo o paralelismo entre versos de estrofes diferentes, como "um charuto, aguardente, um despacho"; "usufruto, contente, esse cacho"; "e lhe incuto premente apetrecho". Modéstia às favas, é coisa de gente grande. Trabalhamos de forma entrosada e num processo dinâmico de ir revisando conjuntamente, trocando pitacos e risadas inevitáveis, afinal tinha algo jocoso naquela virilidade ostensiva como que temperando o rancor que vinha da reação ao fato que fora o estopim daquilo tudo. O próprio processo, cheio de idas e vindas, era muito lúdico e o condão da arte tem disso, permitindo fundir emoção e razão num resultado surpreendente que pode transcender o contexto e até mesmo os criadores, ganhando vida própria. Eu, que ironicamente estou longe de ser um pé de valsa, sentia como se estivesse dançando com a letra, num festejo popular que ganhou contornos mais níticos na gravação, especialmente com a presença da sanfona que reforça alusões a Luiz Gonzaga e seus conterrâneos musicais. Um verdadeiro rebu, uma orgia com as palavras e sons, mestiço e sacana. Não fosse pelo título, o tiro de parabelo no plexo solar do Fora do Eixo seria críptico em demasia, mas taí, nem precisa mexer a rapa do tacho.
Este ano de 2024, com o lançamento completo do álbum "O riso e o juízo", do meu parceiro Pablo Castro, finalmente tenho a oportunidade de tratar dessa canção, composta há vários anos. Trata-se de uma balada de separação, ainda que seu andamento seja um pouco mais célere, o que cria um certo impulso que previne o resultado final de ser propriamente triste ou melancólico, ainda que não deixe de ser doído. Quando a ouvi a primeira vez, ao violão, a batida ecoava aquela que Caetano usou em "Você é linda", embora aqui o tom apaixonado convicto, em que a amada é celebrada através de sua associação a elementos e objetos percebidos pela beleza, seja substituído por outro em que o "eu lírico" se dirige a ela entre inquisitivo e perplexo, sondando os sentimentos próprios e alheios diante de seu mútuo afastamento.
Outro detalhe digno de nota é que a letra já ia bastante avançada, e o convite era para que eu a complementasse, o que basicamente consistia em fazer mais um par de estrofes e dar talvez um ou outro pitaco. Ainda que a música tenha me cativado de cara, por outro eu julguei tremendamente difícil entrar numa conversa cujo tom pessoal era evidente. Mesmo considerando os muitos anos de convivência e o nosso introsamento como compositores, seria preciso encontrar um caminho para entrar naquela história que não era minha sem parecer intruso. Só restava tentar entrar me ajustando à estética e ao teor da narrativa propostas. Tinha de um lado a forma ABABCC', de outro um texto com um repertório que remetia à MPB de voos líricos, metáforas surpreendentes e sonoridades bem marcantes, com rimas em "em", "ã", "é", "is". O anasalado era uma recorrência significativa, e apelei dos vocábulos dos mais óbvios como "maçã" aos mais improváveis, como "Irã". O eco djavanístico era irresistível, magnético como a peculiar prosódia em "ímã". Assim procurei me inspirar no estilo por vezes enigmático (porém não incompreensível ou sem sentido como querem os apressados) e inconfundível deste grande cantautor alagoano, sintetisando o inconformismo do emissor com o verso "um velho profeta réu no Irã". Num paradoxo muito humano, essa disposição revoltosa representa força e fraqueza do sujeito, diante da separação, que, por mais adiada, é inevitável.
O que faz falta (Pablo Castro/Luiz Henrique Garcia)
O que me faz falta fica pra além depois de amanhã O amor vai e volta é como um ímã
O que não se espera pode aparecer e a ferida se abrir
Momento de culpa, colo de mãe demora a manhã um tempo poeta nu no divã
Vai me perguntar e contar pra você onde foi que eu perdi
Não sei se lhe importa que eu olhe pra trás ou tente entender o que lhe conduz
Você já não volta talvez por um triz se o que lhe faz falta você nunca diz se o que lhe faz falta é quem você não quis
O que me faz falta pra ficar bem depois do café amargo a revolta e como a maçã
A mochila pronta pode parecer preparada pra ir
Momento de raiva, golpe na fé adeus num afã um velho profeta réu no Irã
Vai me desvendar e contar pra você o que me fez sentir
Não sei se lhe importa que eu pire de vez ou tente encontrar de onde vem a luz
Você já não volta talvez por um triz se o que lhe faz falta você nunca diz o que me faz falta é ver você feliz
Fazer canções é um ato de alegria desmedida. Ainda mais, pra mim, quando o caráter lúdico envolvido não implica numa redução à banalidade. No último final de semana estive com o parceiro Pablo Castro e compusemos como nos velhos tempos, duas canções. Uma delas, da qual falarei noutra ocasião, foi praticamente "em tempo real", ele ao violão tocando o mote inicial, eu no papel e caneta mesmo. A segunda era um sambinha que já tinha a música pronta e um primeiro verso, sugestivo, "coisas que ficaram muito tempo por dizer". Esta evidente citação, vale lembrar, está também no título da minha dissertação de mestrado sobre o Clube da Esquina. Quando a gente já está a tantos anos nesse negócio, às vezes é preciso inventar uma moda diferente pra variar. Propus então levar adiante o lance da citação, e fazer a letra inteira assim. Considerando o tamanho do desafio auto-proposto, gravei e levei pra casa. Na tarde de domingo, tomado pelo impulso, muito por conta de ter feito a outra num jorro só de menos de uma hora, sentei diante do computador e espalhei um bocado de encartes de CDs na mesa. Para tornar a coisa mais interessante, eu decidi que iria "picotar" e justapor os pedaços de versos citados. E para tornar o jogo ainda mais divertido, era preciso que essa bricolagem adquirisse um sentido discursivo e político, o que simultaneamente tira a sensação de mera sucessão de referências. Eu que não sou formalista de plantão, evito metanarrativas e excessos intertextuais, nessa foi inevitável. Fiquei me sentindo um verdadeiro cruzamento de Dr. Victor Frankenstein com Stanislaw Ponte Preta. Fiz muitos versos bárbaros rsrss, não é auto-elogio, é que segundo a classificação de métricas, versos com 13 ou mais sílabas são "bárbaros".
Para terminar, tive que evitar o "efeito bye-bye Brasil", ou seja, a tendência a tornar a letra kilométrica simplesmente porque depois que a gente pega o embalo é difícil acabar com a curtição. Aliás, é legal que o próprio ouvinte pode entrar na brincadeira, tentando identificar as canções de onde os trechos foram tirados e baralhados. Fica aí o convite!
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Música: Pablo Castro Letra: Luiz H. Garcia
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Falo sem saudade falo quase sem querer
Chega de miséria em qualquer canto ou lugar
Se o mundo é um moinho, gente é feita pra brilhar
Flor do Lácio, minha língua,
Bossa, Rosa, João
A lição que aprendemos de cór
Tão boas palavras de cantar ao coração
Pra quê filosofar em alemão?
Tá lá um corpo atrapalhando estendido no chão
A mão que faz a guerra também toca violão
A gente não quer só comida, bica no quintal
Sede de viver tudo é um grande carnaval
Da barriga dos mistérios
Morro dois irmãos
Um mais um é sempre mais que dois
Diz a voz do povo que amanhecerá mamão
É melhor fazer uma canção
Bem se quis depois de tudo ainda ser feliz
No viaduto a equilibrista bisa por um triz
Com sol e chuva o sonho ainda pinta por aí
Quero mais saúde tutti frutti açaí
Flor do Lácio, minha língua,
Bossa, Rosa, João
A lição que aprendemos de cór
Tão boas palavras de cantar ao coração
Pra quê filosofar em alemão?
*P.S. reparem que há permutações possíveis na execução rsrs.
Mais uma para essa coleção de relatos sobre a feitura das letras de canção que tenho feito pela vida. Essa é relativamente recente, composta salvo engano em 2018. Meu parceiro Pablo Castro me deu essa bela valsa e apenas um verso sugerido, "haverá um não lugar". Se o pano de fundo emocional era o amor perdido, a sugestão temática remetia ao universo das utopias. Era literalmente uma encomenda. Aconteceu de por volta dos dias em que recebi a gravação fui assistir a um show (não tenho certeza absoluta mas acho que foi de Luisa Lacerda e Giovanni Iasi, que aliás foi fino) na simpática Idea Casa de Cultura, teatrinho intimista numa casa tombada em que funciona na entrada uma pequena livraria. Pois ali me peguei a folhear, um pouco antes do espetáculo, História das terras e lugares lendários, erudita compilação do grande Umberto Eco, com textos comentados combinados a mapas e ilustrações belíssimas desse campo particular da invenção humana. Passeando entre Atlândida, Lemúria, Shangri-lá e o País da Cocanha, encontrei o mapa da mina, por assim dizer. Para mim funciona muito assim e depois que encontro o rumo já sei mais ou menos os caminhos a trilhar. Rapidamente fui listando os lugares utópicos ou fantásticos e decidindo como encaixá-los na melodia, imaginando um "eu lírico" como um arqueólogo ou desbravador daquelas grandes obras do romance de aventura do XIX que marcaram minha formação de leitor, como o professor Lidenbrock de Verne, o Challenger de Arthur Conan Doyle ou Alan Quatermain de Haggard. Ótima oportunidade também de brincar um pouco com o "academês", trazendo um vocabulário pouco afeito ao repertório típico do que seria suposto para uma canção de amor, mas totalmente aplicável neste caso. Aproveitei pra revezar sons abertos e fechados, acentos agudos e circunflexos, dando uma enriquecida nas rimas. Joguei também um pouco com os suportes, as diferentes fontes de informação - alfarrábios, códices, iluminuras, manuscritos - que esse investigador poderia consultar em busca de resolver o mistério, de achar o lugar perfeito para viver com sua fugidia amada. Me lembrei da atmosfera de Futuros amantes, do Chico - só que ali é só debaixo d'água, e eu imaginei mais uma viagem pelo globo, até chegar à Amazônia, para dar uma tonalidade brasileira e colocar ali o uirapuru - esses nomes indígenas tremendamente musicais são irresistíveis - combinando com a melodia sinuosa e esvoaçante dessa terceira parte. E finalmente cheguei ao bordão final, preparado com uma pequena variação, em que aproveitei para ser, digamos, mais óbvio, usando explicitamente Utopia e Ilha - que não poderiam ficar de fora - deixando o eco da busca inconclusa como som síntese da esperança utópica de reencontrar o amor perdido. Considero essa uma das melhores letras que fiz nos últimos anos e ela veio num período em que eu estava precisando acertar a mão, por assim dizer. Se for pra fazer uma valsa romântica, de preferência que seja uma letra cheia de lugares incomuns.
Valsa do não lugar
(Pablo Castro/Luiz Henrique Garcia)
Consultei os alfarrábios, doutos manuscritos, contos em chinês
Os recônditos tratados de proscritos sábios parcos rodapés
Shangri-lá seria aos pés do Himalaia Xanadu perdida atrás de uma montanha As minas do rei Salomão cidade ao sol
Na Amazônia o uirapuru me guiaria Rumo a terras que você não sonharia longe dessa ilusão civilizada
Sigo em busca de utopias Pra gente morar Haverá um não lugar Haverá um não lugar
Procurei nos pergaminhos Nas iluminuras cultos dos nagôs
As menções mais obscuras Códices antigos leis de faraós
A Lemúria desapareceu no tempo Lilipute não passou de outro delírio Atlântida submergiu Mistério mór
Na Amazônia...
Sigo em busca de uma ilha Pra gente se amar Haverá um não lugar Haverá um não lugar
Comemorei ontem a formatura em Economia do meu filho mais velho, e também o nascimento de mais esse rebento, minha nova marchinha em parceria com Pablo Castro, já devidamente inscrita para o nosso adorado concurso "Mestre Jonas". É obviamente "inspirada" por tudo isso daí, mas seu paraninfo, por dizer assim, é Machado de Assis, e o professor homenageado é Chico Buarque. Eu fiz a letra no início de janeiro, em meio à primeira enxurrada de absurdices do atual governo e a antevisão do que seria a sucessão de experiências cotidianos do que chamo de empirismo trágico - que talvez eu pudesse batizar com um nome mais pegajoso e chamativo, como "síndrome de São Tomé". Não sou mais que um "marchista" ocasional, mas considero a tarefa divertida e desopilante, de modos que nesse período do ano, nem sempre a tempo e contento da inscrição para o concurso, me ponho a rabiscar alguma coisa.
Ocorre que eu estava lendo Quincas Borba, de Machado, e ao pensar na consagrada frase usada por seu personagem título, "ao vencedor, as batatas", espécie de máxima que compõe sua sátira do darwinismo social, me ocorreu a adaptação à cor em voga no atual noticiário brasileiro. Ao mesmo tempo andava rondando meus ouvidos desde o final do ano passado a trilha de Calabar, e enquanto eu tateava as rimas para laranja eu sentia subentendida alguma melodia sincopada que me lembrava vagamente "Boi voador não pode" [aqui para quem quiser saber mais do assunto que motiva essa pequena joia do Chico]. Dele mesmo ainda surrupiei, com todo respeito e reverência, o larápio rastaquera de "A foto da capa", e o título de um de seus livros, por sua vez emprestado de uma consagrada expressão da sabedoria popular. Em busca de uma atmosfera propositadamente antiquada, empreguei muitos vocábulos e fraseados em desuso que, se funcionam para criar a sensação retrógrada que remete ironicamente ao reacionarismo corrente, deixam a letra meio inacessível, com jeito pedante, o que paradoxalmente dificulta sua popularização, anseio próprio do espírito das marchinhas. Mas não me deixei apoquentar por esse dilema, fui em frente contando que as situações aludidas na letra, tragicômicas e notórias, compensem essa eventual dificuldade.
O Pablo então assumiu a tarefa de fazer a música, geralmente mais trabalhosa do que a de se letrar uma melodia pronta. Para complicar, à medida que vai acumulando as marchinhas que faz (que já dão para um disco, certamente) lhe aperta a necessidade de não se repetir. Como já é de costume e pelo nosso entrosamento, enquanto ainda tateava acordes e notas ele me demandou umas mexidas na letra e um pouco mais de texto. Nesse caso, a despeito de uma pequena hesitação inicial, saíram rápido as soluções e eu modifiquei o refrão inserindo o tema da faca, o que me fez deslocar outras ideias que acabaram integrando a estrofe nova "do boi" em que consegui espremer muita coisa que ajudou a tornar o inventário de crimes e sandices que nos assolam mais abrangente. No labor de dar às palavras o som, meu parceiro fez algumas sugestões, em geral reiterando rimas internas que eu já tinha bolado - entrando aí o "artista", o "canalha", o "usado" - ajustando a letra à melodia que desenvolveu. Gostei, porque eu já tinha eleito a rima interna como uma prioridade formal e isso ficou reforçado. Finalmente, não me moveu qualquer expectativa quando a êxito no concurso, apenas o prazer de compor. Mas já que entramos, vamos botar na roda, e peço às leitoras e leitores uma colaboração para espalhar a marchinha por aí.
Ao vencedor, as laranjas (Luiz Henrique Garcia/ Pablo Castro)
Ao vencedor as laranjas ,
já estás a ver o que arranjas , manjas
Passa na faca o que queiras,
profere tuas mentiras (x2)
Eis a história de um larápio rastaquera
Quem me dera fosse mera anedota
Uma nota na conta do motorista,
olha a lorota, haja lorota desse mito vigarista
A ministra viu Jesus na goiabeira,
eu me pergunto era o Gabeira quando ainda era artista?
Um presidente que já foi paraquedista
caiu no colo do conluio de golpistas
Ao vencedor...
O tal direito que era meu o boi bebeu
A Terra é plana desde que Ol-la-vou eu
Ó céus, na República mais do que velha
Um pastor canalha amealha um milhão de ovelhas
Bolsa de merda e farda cheirando a mofo,
Falta tino, falta estofo pra essa gente tão servil
Não se lamente pelo leite derramado
Dê um pinico usado pro milico ao lado
Faz tempo que não escrevo para esta seção e hoje me veio direto num flash esse raio partido diretamente do início da década de 1990. Então um estudante secundarista começando a pôr o pé na rua para participar de passeata, campanha política, disputando grêmio estudantil, vivendo com bastante intensidade alguns momentos de inauguração. E foi ali também que um indisciplinado aprendiz de violão inaugurava também uma nova trilha na vida, tateando acordes mas riscando, com um pouco mais de convicção, as pautas das páginas que sempre sobravam nos enormes cadernos de 10 matérias, populares naquela época de ensino médio. Mal sabia eu então o grande espaço que a música popular viria ocupar em meu futuro, mas já estava de algum modo fisgado pela ideia de ser mais que meramente um ouvinte. E com algum tempo de convivência no pátio do colégio, tinha feito amizade com um sujeito de longos cabelos, atitude rebelde, e, sobretudo, muito inteligente e talentoso. Enquanto eu era ali um iniciante, Pablo Castro já tinha anos de palco, banda, canções de sua própria lavra. A banda em questão, baseada em Juiz de Fora, se chamava Delirium Tremmens, era formada por ele, seu primo Aluísio Ribeiro (esquematicamente eles se dividiam entre as guitarras solo e base, mas tocavam outros instrumentos também), Messias Lott no baixo e Luciano Baptista na bateria. Fui conhecendo e curtindo o som da banda - ousado e singular - e em algumas poucas oportunidades também pude acompanhar ensaios e shows. Eu era, para todos os efeitos, ainda meio preso, pouco móvel, e na verdade descobria de fato alguma independência naquela época. E era, para todos os efeitos, muito careta. Talvez fosse através dos escritos, incipientes arroubos juvenis, que possivelmente eu me visse escapando um pouco de um cotidiano previsível. Tudo era incipiente, mas ali eu vislumbrava a chance de fazer algo de criativo.
Em meio a muitos acontecimentos que inflariam demais esse texto, o negócio é que a banda venceu um concorrido concurso promovido pelo Jornal do Brasil, em 1993, cujo prêmio era gravar uma demo no Rio de Janeiro. Nesse ínterim, o Pablo estava compondo um rock danado - bem acima da média, cá entre nós - com um riff bem elaborado, uma forma interessante, uma levada empolgante e energética, como os leitores poderão comprovar ouvindo e assistindo a performance do Delirium Tremmens. Num dia em que eu estava na casa dele, já depois de anunciado o prêmio, num dado momento em que o Pablo estava ocupado com outro assunto eu me vi diante de papel, lápis e oportunidade, de modo que me arvorei, sem combinação alguma, a fazer a letra da canção, tirando inspiração justamente da eminência da ida da banda ao Rio. A letra foi feita numa sentada, e traz algumas sacadas pouco usuais para um rock jovial, como rimas internas e brincadeiras metalinguísticas sobre gênero musicais: o blues, obviamente reforçado no refrão, inclusive na inusitada referência ao vidro de remédio (alvo de vários trocadilhos internos), que me veio à cabeça porque eu andava brincando de usar um para tocar slide, sem proficiência alguma; a bossa nova, à qual eu remeti pelo vocabulário que usava para falar de um Rio mais estereotipado impossível, e o próprio rock and roll. Mas sobretudo minha ideia foi fazer uma espécie de carta de intenções firmadas a partir da ida da banda à Cidade Maravilhosa.
Logo que mostrei, diante da surpresa, felizmente sucedida de convicta aprovação, nasceu nossa parceria, que portanto já acumula mais de um quarto de século de atividade. Foi também, muito apropriadamente, a minha primeira letra de canção a ser gravada em estúdio, no Sonhos e Sons do Marcus Vianna, em 1994.
O equilíbrio entre o ensaio de ocasião e o estudo de fundo é precário. Escrever neste blog tem sido para mim uma forma de exercitá-lo, desde sempre. Sem dúvida ainda não alcancei o ponto que idealizo, mas tem havido um trânsito interessante, com textos que nascem aqui amadurecendo e se tornando parte de reflexões mais delongadas, que tenho apresentado em eventos ou mesmo aproveitado na feitura de artigos, como no que recentemente publiquei em parceria com o amigo crítico musical, blogueiro de mão cheia e profundo conhecedor da música popular brasileira, Túlio Ceci Villaça, tratando do disco Todo mundo é bom (2016), do Coletivo Chama [aqui].
Neste último sábado tivemos, em horários praticamente simultâneos, dois lançamentos de artistas da mais alta estirpe do cenário musical dessas Minas, o que obviamente é dito sem desconsiderar a dimensão nacional e universal de seus trabalhos. Falo de "Titane canta Elomar na estrada das areias de ouro" no Palácio das Artes e "O anjo na varanda", de Tavinho Moura, no no Bar do Clube da Esquina, ambos em Belo Horizonte. Num daqueles dias em que a gente gostaria de se dividir em dois, compareci ao belíssimo show de Titane e não pude estar no de Tavinho, um lançamento de grande importância. O que já saquei do disco achei de alto gabarito, aliás falar isso do trabalho de Tavinho Moura é chover no molhado.
Aliás, para não ficar redundante, cito as resenhas feitas por meus parceiros Makely Ka para o disco de Titane e Pablo Castro para o show e disco de Tavinho, ambas disponíveis na página de Facebook deste mesmo blog. Obviamente, sugiro que aproveitem o ensejo para conhecer o trabalho de ambos, cuja qualidade os leitores que ainda não conhecem facilmente constatarão. Vamos a elas:
"A proposta de gravar um álbum com a obra do compositor preenche uma lacuna no nosso cancioneiro e se justifica pelo ineditismo do registro de um conjunto de suas canções com forte herança ibérica numa voz feminina de tradição popular. Na linhagem trovadoresca que remete aos provençais e galego-portugueses, Titane estabelece um arco atemporal atualizando a força ancestral dessa obra contemporânea no universo cancional brasileiro. A obra de Elomar é um portal entre dois universos, dois mundos distintos, uma fenda no espaço-tempo para penetrar em um imaginário mítico-poético atemporal. A localização geográfica habitada por seus personagens pode ser visualizada facilmente nos mapas, na divisa entre o norte de Minas e o sudeste da Bahia, mas através do prisma elomariano tudo parece transmudado e se desvela um outro universo.
Titane por sua vez sempre pautou sua carreira pelas escolhas rigorosas, do repertório aos arranjos, tudo sempre foi feito de forma a desafiar os limites de sua interpretação, sustentada por uma voz afiada como lâmina. Seu caminho até aqui é único e seus passos sempre foram firmes a ponto de transformá-la numa das mais importantes intérpretes brasileiras. Ela agora se embrenha nas estradas das areias de ouro, no sertão profundo, provavelmente um de seus maiores desafios, trazendo de sua viagem ecos de outrora, visagens do futuro, regalos do presente.
Titane, em trinta anos de carreira ainda não havia se dedicado a um único compositor. Da mesma forma não há registro fonográfico de outra cantora que tenha realizado um trabalho a partir de um conjunto de canções selecionadas da obra de Elomar. É um encontro especial que celebra outros encontros.
Entre eles, o encontro de Titane e Hudson Lacerda, violonista de grande precisão técnica, compositor erudito impregnado pela música popular brasileira, Hudson é um dos responsáveis pela transcrição de partituras do rigoroso Cancioneiro de Elomar Figueira Mello, obra fundamental de registro com um recorte específico e imprescindível da produção elomariana.
Celebra ainda o encontro do erudito com o popular em uma perspectiva subliminar ao optar por um formato acústico que remete tanto à sofisticação das formações camerísticas quanto à simplicidade de um recital de música popular, destacando a arquitetura dos arranjos já intrínsecos às composições e valorizando a imponência da voz em estado bruto.
Cruzando referências dos negros trazidos para trabalhar no garimpo do ouro e do diamante no Sudeste com a herança hibérica disseminada pelos europeus no Nordeste brasileiro, o encontro da cantora mineira da cidade de Oliveira e do compositor baiano de Vitória da Conquista promove uma aproximação de universos diferentes mas complementares, do ancestral com o contemporâneo, do sertão com o cerrado." Por Makely Ka
Sobre o show em si, acrescento que a performance segura de Titane, sempre em contato direto com a terra e encantando o público com a presença cênica e a força de sua voz, completou-se com a poderosa inserção de trecho do Dom Quixote de Cervantes tratando da condição feminina, como a própria cantora explica nessa boa matéria do Estado de Minas. O desempenho dos músicos que lha ladearam no palco foi impecável, e ela gentilmente reservou a cada um uma apresentação especial, mais que devida. Foram eles meu Hudson Lacerda (violão)e André Siqueira(bouzouki), meu querido parceiro Kristoff Silva (diretor musical do álbum, que cantou lindamente e percutiu delicadamente marimba), Aloízio Horta (contrabaixo acústico) e Toninho Ferragutti (acordeom). Nesta apresentação no Programa Sr Brasil é possível ter uma pequena provinha:
O mestre Tavinho Moura lançou mais um disco ontem, O Anjo na Varanda, modestamente e discretamente no Bar do Clube da Esquina. Sua obra parece marcenaria musical. Ele faz canções com um frescor, aparentemente sem nenhuma ideia pré-concebida sobre o que deveria ser uma canção, que tipo de letra e forma e mesmo harmonia deve ter uma canção. Ele faz canções como objetos sensíveis, como móveis, quadros, cadeiras, mas nada funcionais , apenas objetos nutridos de uma integridade de uma originalidade acachapantes.
O seu canto é rigorosamente atado à melhor prosódia possível, um cuidado metódico. É sempre notável como, em comparação com versões de suas canções na voz de Beto Guedes, um cantor mais animado e emocionado, Tavinho imprime uma sobriedade, um certo comedimento, como para que evitar que a música se superponha à palavra.
Acompanhado pelo insubstituível Beto Lopes , com participações vocais especialíssimas de Mariana Brant, Bárbara Barcellos e Amaranto, Tavinho Moura fez um show bonito, mas o que interessa em sua apresentações é a sua obra, antes de mais nada : trata-se de um criador talhado, mas com temperamento de artesão , com uma profundidade e uma convicção que não dá espaço para qualquer tipo de exagero ou afetação.
Eu aconselho vocês ouvirem esse disco recém-lançado, mas também toda a obra desse compositor extremamente original que temos. Tavinho é gênio. Por Pablo Castro
Para além dos evidentes laços geográficos, que demonstram a incontestável pujança da música popular feita em nosso estado, no contexto nacional e internacional - e deixo a provocação: vejamos a frequência com que ambos os discos serão lembrados naquelas famigeradas listas de melhores ao final deste 2018 - o que quero ressaltar é essa qualidade compartilhada em ambos e afirmada em tantas obras que integram a história de nossa música popular: o esmero, o apuro, o rebuscamento, a elaboração que perpassa esse grande oceano de canções, arranjos, gravações, interpretações e apresentações. Dentre os grandes fenômenos da história da cultura no século XX certamente poderemos posicionar a explosão das distinções apriorísticas entre as hierarquias socialmente construídas para criar, reproduzir, circular e ouvir música. Não resta dúvida de que o desafio às fronteiras previamente estabelecidas, valor estético consagrado na modernidade, teve nos músicos populares alguns de seus melhores protagonistas (aqui não resisto a uma ponte com a trajetória de Piazzolla, cuja biografia foi alvo de uma recente postagem, mas remeto-me ainda à resenha que escrevi do livro O triunfo da música, de Tim Blanning). Mas se o liquidificador energizado pela indústria fonográfica tritura ingredientes e põe no balcão tantos milkshakes cuja variação de sabor mal esconde sua semelhança, não a livra, definitivamente, das contradições que são necessárias admitir para que uma certa magia ponha em movimento o câmbio dos gostos. Seu sabor de mercadoria não pode descartar a insistência de outros códigos concomitantes, de outras ordens que não lhe são completamente coincidentes, como as que regem o campo das artes (ver Artistas da fome e o valor da bolacha) ou o do trabalho do artesão, com seus modos de fazer, estética e esmero. É um lugar comum dizer que a música popular historicamente foi definitivamente imbricada à fonografia. Mas como historiador tenho o cuidado de notar que a primeira antecede à segunda, e de que na receita que a compõe há traços de fazeres musicais anteriores e contrastantes à própria modernidade, ao capitalismo e seus valores. Há gente que esquece disso. E o esquecimento é um dos grandes males de nosso tempo. Aparece, por exemplo, quando se constitui uma percepção binária sobre o objeto música, através de associações mecânicas entre os sujeitos em seus lugares sociais de origem e a lógica de sua produção e consumo. Criou-se uma espécie de fronteira artificial, felizmente desconhecida pela maioria dos músicos, mas obviamente muito conveniente para a vida dos críticos e também dos tais "influenciadores de rede social", cujas opiniões são tão estereotipadas quanto a do um fantasioso bunker de defensores do bom gosto que pretendem explodir, ignorando que tal já foi feito ao longo do próprio século XX. Uma boa mostra disso se encontra nesta postagem recente, crítica de uma crítica ao último single da cantora Marina Lima. A revolta extemporânea contra o elitismo que pauta tais críticos e de modo geral nuns tantos autointitulados ativistas da cultura, ao desconhecer as rupturas e aproximações materializadas claramente na obra de um Elomar, de um Tavinho, e de resto um sem número de criadores que povoam a grande galáxia de nossa música popular, aparenta ser inclusiva e tolerante, mas é finalmente conformista, paternalista e excludente, pois sua consequência é subestimar as possibilidades de fruição e elaboração daqueles que supõe defender, além de manter canais fechados onde deveria querer abri-los, como eu já havia considerado nessa postagem em comentário a um texto do Hermano Vianna. Este é um esforço em andamento para superar generalizações e relativizações, e nesse sentido as apreciações dos trabalhos de Titane e Tavinho Moura me pareceram ótimos catalizadores de um raciocínio que ainda preciso burilar, mas que essencialmente trata de reconhecer que o esmero não tem classe, o que não equivale nem de longe a desconsiderar a importância da classe como categoria para pensar sobre estética e criação - o mesmo para qualquer outra categoria chave como gênero, etnia, espaço, campo, tempo, etc. - mas sim entender que a limite para sua influência, como apontei anteriormente em A origem de classe na música popular não é o seu ponto final. Na verdade, me parece estratégico para a compreensão da vitalidade das culturas populares reconhecer que o esmero não é um elemento estranho a elas, incorporado num enxerto de erudição, de valores elitistas. É mais lógico reconhecer que ela tem suas próprias maestrias e sofisticações, através das quais muitas pontes foram construídas como podemos constatar através de estudos tão diversos como os de Ariano Suassuna ou de Peter Burke. Eventualmente imperceptíveis ao ouvido academicista de anteontem, mas que paradoxalmente hoje estão inaudíveis para a crítica pós-modernosa. Se queremos entender as hibridações e trânsitos que de fato foram responsáveis pela demolição de barreiras culturais e consequente polinização mútua de tantas expressões que nos movem, é preciso superar essa audição folclorista invertida, que na prática expropria todo o oceano de variedade e qualidades de ouvintes que são convencidos que a poça d'água que lhes é oferecida lhes basta porque é sua, quando na verdade é deles tanto o mar quanto o sertão.
Faz tempo que não posto aqui uma novidade da produção cancional. Para matar a saudade, eis que pintou um vídeo de uma parceria nova, saindo do forno, que fizemos por esse dias eu e o Pablo Castro. As inspirações iniciais são óbvias, o violãozinho gilbertiano filiado em Refavela e a letra, iniciada pelo Pablo - como de resto tem sido várias de nossas últimas parcerias - começou, nas palavras dele, "(...) querendo escapar desse cárcere tenebroso do presente histórico, tentando entender as grandes linhas da história. Em vez da terra prometida, comecei a aspirar pelo povo prometido". Tenho sempre em mente que ser historiador claramente me afeta enquanto compositor também. Mas poucas vezes isso fica tão evidente no que eu faço como nessa. O mote estava ali e eu não poderia deixar de segui-lo. Era uma canção já redondinha, no formato A-A-B, repetido 3 vezes. Partindo de uma arguta apropriação do mote bíblico da terra prometida, a letra propunha uma visada de longo alcance sobre a História, partindo das cruzadas e caminhando rumo à colonização - ia até o "idílio dos tupinambás" - e sugeria uma leitura crítica que desembocaria numa outra promessa. Meu trabalho portanto era conduzir adiante esse esforço de síntese - o que é a canção senão síntese? Nesse sentido o historiador teve que se permitir muitas licenças poéticas, caso contrário iria ter que escrever um livro e não uma letra de música. Consegui fazer o foco ir se deslocando entre a História do Brasil e contextos mais amplos, ainda que definitivamente pesando mais pra cá. É certamente uma interpretação muito crua e altamente politizada, provavelmente panfletária, que apela sem constrangimento para a saída da revolução popular e lança mão de um sem número de imagens recorrentes na tradição das canções de protesto e do engajamento político na arte. Sem culpa nenhuma, diga-se de passagem. É meio uma mistura de discurso de Antônio Conselheiro em filme de Gláuber Rocha com trechos de Caio Prado Jr. discutidos na cantina da Fafich. Lembrei de muita coisa que li sobre movimentos milenaristas, revoltas populares e afins. Inclusive o livro do historiador britânico Christopher Hill, de onde eu saquei a expressão "O mundo de ponta-a-cabeça", que ele mesmo explica ser um clichê de movimentos populares diversos, chamado por inversão da ordem como na conhecida frase atribuída ao Conselheiro, "O sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão". É impressionante a radicalidade desses movimentos. Nenhuma revolução prescinde dessa ideia de inversão dos termos, de reordenação do mundo. É possível reconhecer um eco de canções brasileiras dos anos 1960, e eu certamente me lembrei de várias delas enquanto bolava os últimos versos. Deixei por outro lado um distanciamento irônico - se é com deus ou sem - mas aquela certeza redentora, o povo prometido chega e canta. Provavelmente poderão chamar tudo isso de panfletário, idealista, ingênuo, populista. Nem sempre isso será um demérito, mas quando for eu creio que é o caso de assumir a decisão de dizer algo com um pouco mais de convicção num tempo abarrotado de incerteza e de discursos ambíguos e enviesados, quando não desonestos. Nesse sentido, para o melhor e o pior, isso é uma canção popular e não uma tese de doutorado.
Sobre aspectos mais formais, não tem tanto o que dizer. Algumas brincadeiras aqui e ali, rimas internas, citações, e um detalhe que vale a pena mencionar que é a inserção marota de todas as peças do tabuleiro de xadrez - jogo pelo qual nós dois nutrimos grande apreço há bastante tempo. Claro que não se trata só de um lance formal, já que o xadrez é ele próprio uma representação da sociedade e uma encenação de uma batalha.
O povo prometido
(Pablo Castro/Luiz Henrique Garcia)
As narrativas que a História traça
da terra prometida pra ninguém
montanhas removidas, vãs batalhas
pelo domínio de Jerusalém
Em nome da rainha os seus piratas
garantiam sempre o chá das seis
e os alemães, franceses e batavos
cavalos a serviço de outros reis
Aqui a América era um mundo longe
um estranho idílio dos tupinambás
fincaram a cruz no coração da terra
a sugar
As feitorias, chagas pela costa
a escravidão verteram pelo mar
um oceano negro então se espalha
dos desterrados filhos de Oxalá
Por ordem da Coroa a Companhia
lavrou a gente, a planta e o animal
os galeões no porto abarrotados
da conversão de sangue em vil metal
Aqui o Império feito uma aquarela
pros pretos, pardos, pobres n'aguarrás
a fé, café, moinho, latifúndio
açúcar
Entre monarcas e usurpadores
Sebastiões que nunca voltarão
muitos peões pedindo aos pés das torres
numa revolta o céu assaltarão
Sem coronéis nem gringos conspirados
os desprovidos podem prosperar
botar o mundo de ponta-a-cabeça
meter as mãos na prata do jantar
Aqui os canibais devoram bispos
Macunaímas sorvem guaranás