Mais uma das minhas parcerias com Daniel Guimarães. Essa foi a que mereceu mais revisões e reinvenções na letra. Quem se lança na tarefa de botar palavras na música que outra pessoa compôs tem que estar disposto à tarefa, que pode ser tanto um passeio de pedalinho quanto uma circunavegação do Cabo das Tormentas. No geral não será nem tão ameno nem tão dramático. Enquanto escrevo este texto vou recapitulando as conversas que fui tendo com o Daniel via mensagem no facebook - já devo ter dito em algum dos relatos anteriores que a distância condicionou essa forma de interagirmos. O fato é que eu esteva muito nessa onda de brasilidade, ali por meados de 2020. Com a verve de historiador falando alto, comecei com uns versos que pareciam adaptação de livro didático ou versão de samba enredo, diante de uma melodia sinuosa, que me sugeria o mar e uma narrativa forte, densa, solene.
Pindorama, litoral
Veio a nau da Guiné de Bissau
Sesmaria, pau brasil
chão dividiu
gente arredou
Só o primeiro verso resistiu rsrsr. Mas naquele momento segui naquela toada, fiz outra estrofe e depois o B (este manteve ao final a mesma redação) que de alguma forma sugeria uma reflexão sobre a passagem do tempo, e expressava também a vontade de ver mais um momento de crise do país ser superado de alguma forma. Daí cravar ao final: o futuro vai passar. Do ponto de vista das figuras brasileiras que eu evocava, o futuro delas era o nosso presente, que também deixa de ser, em meio a essa imagem alegórica e sincrética refletida num objeto simbólico pertencente a uma divindade afro-brasileira, o que me fora instigado pelo título da "demo", que já era Machado elétrico.
Satisfeito naquele ponto, enviei ao parceiro o resultado. No retorno, com toda a delicadeza e muita sensibilidade, ele foi destrinchando pra mim a motivação por traz do que compusera, homenagem a um querido amigo e parceiro musical dele que havia deixado essa nossa precária existência. Além de comovido eu me senti incumbido da tarefa de me acercar minimamente, através do relato dele, de algumas músicas gravadas, da pessoa do homenageado. Entre as nossas conversas fui procurando um jeito de conciliar o impulso original do que eu escrevera com essa nova perspectiva. Fico feliz de constatar, revendo essas mensagens, que fizemos tudo com muito respeito mútuo e paciência. Esse é o fundamento de qualquer parceria, porque querendo ou não estamos nesse barco expostos a tudo. Não é mole a vida do compositor, em especial a do cantautor que interpreta suas próprias canções, muitas vezes colocando pra fora o que tem de mais íntimo esperando que isso faça sentido pra outras pessoas. Busquei, assim, capturar dentro de um mesmo universo imagético o limiar entre a vida e a morte, a praia e o mar, o passado e o futuro, enfim, a mudança que é algo que experimentamos como indivíduos e como sociedade. Acho que o resultado final foi digno do desafio, e a canção como um todo ficou muito bonita, como é possível conferir nessa versão voz e violão:
Machado elétrico (Daniel Guimarães/Luiz H. Garcia)
Pindorama, litoral
Vento risca nas dunas de sal
Corta a voz do cantador
Céu carregou
Vem temporal
Junta contas no cordão
Sente areia escorrendo da mão
Sol e sombra na feição
Espuma nos pés
Desafia o ar
Guerreiro tupinambá
Ergue a vista sobre o mar
Vê a lua brilhar
No machado de Xangô
Entre sangue e resplendor
O futuro vai passar
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