Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

14 de julho de 2024

O QUE FAZ FALTA

Este ano de 2024, com o lançamento completo do álbum "O riso e o juízo", do meu parceiro Pablo Castro, finalmente tenho a oportunidade de tratar dessa canção, composta há vários anos. Trata-se de uma balada de separação, ainda que seu andamento seja um pouco mais célere, o que cria um certo impulso que previne o resultado final de ser propriamente triste ou melancólico, ainda que não deixe de ser doído. Quando a ouvi a primeira vez, ao violão, a batida ecoava aquela que Caetano usou em "Você é linda", embora aqui o tom apaixonado convicto, em que a amada é celebrada através de sua associação a elementos e objetos percebidos pela beleza, seja substituído por outro em que o "eu lírico" se dirige a ela entre inquisitivo e perplexo, sondando os sentimentos próprios e alheios diante de seu mútuo afastamento.


Outro detalhe digno de nota é que a letra já ia bastante avançada, e o convite era para que eu a complementasse, o que basicamente consistia em fazer mais um par de estrofes e dar talvez um ou outro pitaco. Ainda que a música tenha me cativado de cara, por outro eu julguei tremendamente difícil entrar numa conversa cujo tom pessoal era evidente. Mesmo considerando os muitos anos de convivência e o nosso introsamento como compositores, seria preciso encontrar um caminho para entrar naquela história que não era minha sem parecer intruso. Só restava tentar entrar me ajustando à estética e ao teor da narrativa propostas. Tinha de um lado a forma ABABCC', de outro um texto com um repertório que remetia à MPB de voos líricos, metáforas surpreendentes e sonoridades bem marcantes, com rimas em "em", "ã", "é", "is". O anasalado era uma recorrência significativa, e apelei dos vocábulos dos mais óbvios como "maçã" aos mais improváveis, como "Irã". O eco djavanístico era irresistível, magnético como a peculiar prosódia em "ímã". Assim procurei me inspirar no estilo por vezes enigmático (porém não incompreensível ou sem sentido como querem os apressados) e inconfundível deste grande cantautor alagoano, sintetisando o inconformismo do emissor com o verso "um velho profeta réu no Irã". Num paradoxo muito humano, essa disposição revoltosa representa força e fraqueza do sujeito, diante da separação, que, por mais adiada, é inevitável.

      

O que faz falta (Pablo Castro/Luiz Henrique Garcia)

O que me faz falta fica pra além
depois de amanhã
O amor vai e volta é como um ímã

O que não se espera
pode aparecer
e a ferida se abrir

Momento de culpa, colo de mãe
demora a manhã
um tempo poeta nu no divã

Vai me perguntar
e contar pra você
onde foi que eu perdi

Não sei se lhe importa
que eu olhe pra trás
ou tente entender o que lhe conduz

Você já não volta
talvez por um triz
se o que lhe faz falta você nunca diz
se o que lhe faz falta é quem você não quis

O que me faz falta pra ficar bem
depois do café
amargo a revolta e como a maçã

A mochila pronta
pode parecer
preparada pra ir

Momento de raiva, golpe na fé
adeus num afã
um velho profeta réu no Irã

Vai me desvendar
e contar pra você
o que me fez sentir

Não sei se lhe importa
que eu pire de vez
ou tente encontrar de onde vem a luz

Você já não volta
talvez por um triz
se o que lhe faz falta você nunca diz
o que me faz falta é ver você feliz

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