Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

6 de maio de 2012

Batizando tangos brasileiros

Há alguns dias comentei sobre a inauguração do site Ernesto Nazareth 150 anos do Instituto Moreira Salles. Não deu pra fazer aquela visita detalhada mas posso adiantar que a interface está elegante e a navegação parece fluir muito bem. Existe um blog incorporado que traz postagens bem interessantes, uma delas chamou-me a atenção por tratar de uma lista de títulos, "As músicas que Nazareth não compôs" (autoria de Alexandre Dias). Como já comentei anteriormente meu fascínio sobre títulos (aqui) não pude deixar de notar sugestões como "Dardejante", "Precipício" e "Extremado", dentre os possíveis "nomes para baptismo de um tango". Para quem estranhar o emprego do termo "tango", sugiro uma consulta ao altamente recomendável Feitiço Decente, de Carlos Sandroni, livro obrigatório para estudar a música popular brasileira e a constituição do samba como gênero. Ao tratar das fontes do maxixe (enquanto percorre historica e musicalmente o caminho que vai do lundu ao samba) ele recupera o sentido do tango no século XIX, aplicado que era a "coisas dos afro-americanos" (p.77). Como bom pesquisador que é, Sandroni vai agrupando pistas de seu uso em poemas satíricos, operetas, revistas, e obras de compositores diversos, inclusive o próprio Nazareth. Aliás, ele deslinda (pgs. 78 a 80) a polêmica em torno da adoção desse termo para batizar suas obras, tidas por vários críticos como maxixes. Sandroni mostra como se constitui essa querela, em que acusam Nazareth de empregar a palavra "tango" por rejeição às "origens negras" do maxixe, a seu caráter "plebeu" e "vulgar". Cita também artigo em que Mário de Andrade menciona que o compositor considerava que seus tangos não eram "baixos" como os maxixes.  A isto o estudioso contrapõe elementos suficientes para demonstrar que a palavra "tango" tinha uso corrente no Rio do início do século XX e era empregada por outros compositores, como Chiquinha Gonzaga. Para Sandroni, foi a mudança de sentido de "tango", a partir dos anos 1920, que afetou a percepção da crítica. Só então esse gênero passaria a ser visto como "argentino", mas musicalmente diferia bastante daquele adotado na virada do XIX para o XX. Assim, o autor articula a análise musicológica à histórico-cultural, mostrando como se faz e refaz um gênero musical.

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