Enquanto não acho o tempo necessário para elaborar postagens novas, o trabalho de recuperar e eventualmente ajustar algumas postagens antigas vai andando, e remexer em material antigo pode provocar alguma inspiração. Ao ver a imagem da capa do compacto simples de Strawberry Fields Forever/Penny Lane que utilizei para ilustrar outro texto, e já que estou preparando um texto que aborda uma questão relacionada a capas de discos, lembrei que neste caso já tinha algo escrito e publicado (um artigo) por aí. Decidi destacar de lá algum trecho que tratasse das capas do compacto e também do Sgt Pepper's, mas acabei descobrindo que a análise está mesclada com outros temas igualmente relevantes, relacionando o estudo iconográfico à transgressão musical dos Beatles naquele momento de suas carreiras. Um trecho que funciona de aperitivo para o artigo, e também para discussões vindouras...
Em depoimento ao
jornal underground Internacional
Times (que Paul ajudara a criar), George Harrison dizia que os Beatles não
deveriam mais se limitar ao pop,
achando inclusive que “(...) a gente se
conteve demais em coisas como ‘Strawberry Fields’ (...) acho que provamos que a
música eletrônica pode se misturar com a música ‘pop’, e provaremos que música
indiana, eletrônica e ‘pop’ podem andar juntas” (HEYLIN, 2007: 138). Ele
acrescentaria mais um ingrediente ao caldeirão de sons ao propor unir música de
concerto e instrumentos indianos na canção Within
you, Without you[1].
Essa atitude tornara-se possível num contexto em que os Beatles, abandonado as
excursões, mudaram seus métodos de trabalho, levando canções apenas esboçadas
para construí-las no estúdio e improvisando durante horas - deixando os
técnicos exaustos e entediados. George Martin declarou que a parte mais difícil
do LP foi começar a gravar às sete da noite e trabalhar até as três (HEYLIN,
2007: 100). Seu papel como produtor mudara, do de dar direções para o de concretizar
as idéias dos Beatles – por mais mirabolantes que fossem. Mais importante do
que ter acesso à tecnologia de gravação era ter alguém que pudesse conduzi-la
no rumo desejado. Mas que rumo? Em direção ao passado suburbano ou a última moda
de Londres?
Falando em
moda, SAMUEL localiza na Swinging London de
meados dos anos 1960 o fenômeno do retro-chique,
ou “indústria da nostalgia”, em que a tecnologia recente é aplicada aos
produtos de modo a obter uma estética que remete ao antigo (SAMUEL, 1994: 83),
influenciando do vestuário às capas de disco. Mesmo sendo uma forma de revival,
tem um caráter paródico:
“Ao contrário do restauracionismo e do conservantismo (...) o retro-chique é indiferente ao culto da autenticidade. Ele não se sente obrigado a permanecer fiel ao período (...) borra a distinção entre originais e reciclados (...) abole as diferenças de categorização entre passado e presente, abrindo um trânsito de mão dupla entre eles” (SAMUEL, 1994:112-113)
Há dois pontos
de contato com o caso que estamos investigando. Musical: como vimos, os
arranjos das duas canções atravessam gêneros e temporalidades diferentes. Visual: é
significativo que tenham sido produzidos e lançados filmes promocionais para as duas canções, uma vez que o mesmo
autor identifica
neste mesmo período o início do predomínio do ‘visual’ sobre o ‘auditivo’ na
cultura britânica (SAMUEL, 1994: 337-339). Ironicamente, não há qualquer cena dos Beatles
em Liverpool. No
filme de Strawberry Fields a cidade sequer aparece, pois a única locação
é um morro, em que eles estão junto a um piano de armário sobre o qual está um
tear, cujos fios se entendem até um carvalho. No de Penny Lane, externas
do local mostrando placas e ônibus estampando o nome do logradouro são
intercaladas com cenas dos Beatles atravessando Londres a cavalo, vestindo
casacos de caça à raposa, em direção a um parque onde será servida uma
aristocrática refeição (DANIELS, 2006: 42). Nos dois a montagem segue o ritmo das
canções e consegue traduzir as técnicas usadas nas gravações, especialmente na
cena em que Paul
se move de trás para frente e “cai para cima” de um galho da árvore.
Esteticamente, o primeiro filme é bem mais vanguardista, dando uma pista sobre
a diferença na recepção de cada lado do compacto. As seqüências finais, por sua
vez, evidenciam no improviso iconoclasta - com um quê de nonsense e sem
qualquer agressividade explícita - sua semelhança no confronto entre o
convencional e o transgressor: em uma, após derramar tintas no tear, eles
derrubam o piano; na outra, no momento em que vão ser servidos, derrubam a
mesa.
Transgressão
que voltavam contra sua aparência pop.
Desde 1966 vinham abandonando os ternos e cortes de cabelo padronizados, e
depois que encerraram a última turnê Lennon
passou a usar óculos de ‘vovô’ (aros circulares) e todos adotaram roupas
psicodélicas e bigodes, que passariam depois a ser vistos nos chamados “heróis da classe trabalhadora”, (SAMUEL,
1994: 97). Lay-out propositalmente
datado que aparece na capa do compacto, que ainda traz estampada uma moldura em
torno da foto, de modo a imitar um porta-retratos antigo. O visual combinava
com os uniformes de regimento eduardiano usados depois na capa de Sgt. Pepper’s. A influência do ambiente
contracultural londrino aparece com força nesta legítima criação retro-chique
de um artista do circuito de vanguarda, Peter Blake:
“A capa (...) pertence a (...) uma democracia de entretenimento no qual os showmen dos velhos tempos – reunidos – são amontoados com outros recentemente mortos (...) No som, o tambor da banda de metais, a clarineta e as cornetas tomaram o lugar dos amplificadores eletrônicos(...)um réquiem (...) ” (SAMUEL, 1994: 341)
Como a música,
a capa é uma verdadeira colagem em arranjo surrealista que reúne na pose datada a banda com a platéia por atrás, aproximando a voga do culto aos artistas de cinema mortos, as
referências culturais[2]
dos Beatles e seu desejo de mudar a própria imagem. Àquela altura, o conceito do álbum sobre memórias de infância ganhara outro
colorido. Paul compôs a canção título e imaginou a tal banda como alter-egos
dos Beatles tocando num parque em algum lugar do norte (suas próprias estátuas
de cera assistem ao show). O toque teatral
foi dado a seguir pela entrada (sem intervalo) em cena de seu líder, Billy
Shears, personagem vivido por Ringo na animada canção do norte With a little help from my friends[3],
e como seu próprio intérprete entrega, o conceito de espetáculo foi realizado “(...) nas primeiras faixas e depois isso se
dispersou pelo álbum” (HEYLIN, 2007: 141). O conceito, em seu estado
inicial ou final, de fato é disperso, mas é possível ouvir seu eco, seja nas
referências ao music hall [4]–
gênero “impuro” e “cômico” (FRITH, 1996: 27; 209) - em When I’m 64[5]
(satírica, mas gentil), nas composições que partem de fragmentos
do dia-a-dia ou em frases emblemáticas como “Foi
a vinte anos atrás, de hoje”; “muitos
anos desde agora”; “dar uma volta
pela velha escola”; “um período
esplêndido está garantido para todos”. Encarando de forma mais abstrata, trata-se de metamorfose: morte
e nascimento, réquiem e fanfarra, como explicou um crítico quando o disco saiu,
assegurando ainda que as canções do compacto “foram prévias perfeitas” (HEYLIN, 2007:171)
Dialeticamente,
se toda essa encenação da mudança mostra os Beatles se afastando de suas
personagens de estrelas do pop, era
justamente seu êxito até aquele momento que lhes dava respaldo diante da EMI
para “ir longe”. Harrison disse ao repórter da revista Life que acompanhava uma noite de gravações:
“Acabamos de descobrir o que podemos fazer como músicos. Quais fronteiras podemos cruzar. Não faz mais tanta diferença se estamos em 1º lugar nas paradas. Tudo bem se as pessoas não gostarem de nós. Só não tentem nos podar” (HEYLIN, 2007: 135)
McCartney faria coro,
afirmando que não se abrir para coisas novas poderia significar sucesso e
fracasso ao mesmo tempo. Ele disse a Thomas Thompson, de Life: “(...) vamos perder alguns fãs. Nós os
perdemos em Liverpool quando trocamos nossas jaquetas de couro por ternos (...)
chegamos a um ponto onde não existem barreiras (...)” (HEYLIN, 2007: 135). Mas,
oscilante, também demonstrava estar preocupado em evitar “ir longe demais” e distanciar-se dos fãs – o que explica a ousadia
de Penny Lane ser dosada por uma
melodia cantarolável, com um refrão que ecoa “cantigas de playgroud” (DANIELS, 2006:
41). Era a árdua busca do equilíbrio entre pop
e progresso.
[2] O
encarte da edição em CD traz a lista completa das personalidades reunidas na
capa.
[3] Lennon, John & McCartney, Paul.
The Beatles. LP Sgt. Pepper’s Lonely
Hearts Club Band. EMI, 1967. Esta foi a última faixa nova gravada
para o disco, mas é a segunda na ordem final.
[4]
Variedade espetáculo teatral que envolvia comédia e música popular. Também é
usado como referência apenas ao tipo de música própria dos espetáculos em
questão.
[5] Lennon, John & McCartney, Paul.
The Beatles. LP Sgt. Pepper’s Lonely
Hearts Club Band. EMI, 1967. A canção, refeita por Paul a parir de uma
de suas composições mais antigas, chegou a ser cogitada como lado B para o
compacto até dar lugar a Penny Lane.
Nenhum comentário:
Postar um comentário