Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

6 de agosto de 2012

O caso da censura

Ao ver o trecho do documentário Fabricando Tom Zé (2006) em que o mesmo discorre, da maneira que lhe é peculiar, sobre a censura nos idos da Ditadura Militar, acabei retomando alguma coisa do que escrevi sobre o tema. 
Lembro-me, durante a pesquisa, de vários casos em que a sensação opressiva que vinha da constatação de como a liberdade é frágil, como mentes canhestras podem suprimir o espírito criador, convivia com o riso nervoso diante dos absurdos desprendidos da realidade com que me deparava. Fundindo dois ditos populares numa caixadágua só, eram 'muitos chifres para poucas cabeças de cavalo'. Era simplesmente insano, mas justamente por ser tão imprevisível a censura podia ser burlada. Como escrevi...

"A censura pontual e fragmentada consistiu um mecanismo dúbio, que vetava apenas as formulações mais evidentes e textuais (podia atacar imagens, frases e letras, mas não a música). Tal permitiu aos compositores desenvolver mecanismos de burla e uma linguagem sofisticada e metafórica que a censura ou não detectava ou tolerava. Entretanto, o mecanismo acabava por produzir uma internalização automática, de forma a fazer do compositor seu próprio censor. O que a princípio poderia parecer uma espécie de jogo (lembremos da criação do Julinho da Adelaide de Chico Buarque), onde as negociações simbólicas entre Estado-mercado-artista operavam de forma a não inviabilizar a produção de discos, foi se tornando desgastante, principalmente em se tratando de apresentações ao vivo, visivelmente mais censuradas. A censura deveria ainda compatibilizar sua função política com o interesse do regime no crescimento dos meios de comunicação de massa e garantir o lucro de seus donos privados nacionais e estrangeiros.(...) Esta operação em várias frentes (execução em rádio, ao vivo, gravação em disco) e a pontualidade dos cortes permitiu à censura se compatibilizar com os interesses da indústria fonográfica. As próprias possibilidades técnicas da indústria fonográfica facilitavam este tipo de censura, como a inserção de palmas para encobrir trechos censurados do disco ao vivo de Chico e Caetano.  Ao mesmo tempo, permitia corrigir eventuais brechas e liberações, como no caso de Apesar de você : ao perceber a re-significação coletiva que promovia a canção a hino contra a ditadura, os órgãos censores a retiraram rapidamente de circulação. Vemos que a censura não se limita a uma proibição, uma repressão simbólica. Tão importante quanto aquilo que ela não deixou “passar” é o que ela deixou passar e o que ela não foi capaz de detectar. Lembremos que os diferentes momentos políticos do regime tem correspondência com diferentes estratégias de censura. De fato, no seu período inicial a ditadura conviveu perfeitamente bem com canções críticas e explícitas, para depois iniciar perseguições políticas e pessoais que ultrapassaram os próprios meios da censura.
Os prazos e burocratismos que delongavam sobremaneira a liberação de canções para shows exerciam uma considerável pressão econômica sobre o músico, na medida em que os atrasos poderiam prejudicar suas apresentações (...) A ausência de uma legislação referente à censura musical tornava-a ainda mais indiscriminada e sem critérios, e a atuação errática e subjetiva dos censores fazia ficar ainda mais complicada a vida dos compositores. As contradições geradas pela inoperância burocrática, pelos conflitos de poder entre órgãos e autoridades “competentes”(Dentel, Polícia Federal, ministérios),  pelo caráter empresarial dos veículos de comunicação dependentes do Estado pelo sistema de concessão e pelo caráter informal da censura (muitas vezes aplicada com um mero telefonema), garantiram aos compositores, jornalistas ou escritores uma certa margem de manobra. Entretanto, estas mesmas relações conflituosas, excepcionais, davam ao Estado um poder de controle para além da capacidade de reprimir idéias. O Dentel poderia suspender funcionários ou mesmo uma empresa, o que provocava o recrudescimento da censura interna e mesmo da auto-censura, uma vez gerado o clima de medo e suspeição entre colegas. O ritmo burocrático e autoritário produzia um sentimento de desesperança e imobilidade diante daquele estado de coisas. O efeito psicológico da repressão, engrossado pela censura prévia e irrestrita, acabou por incentivar a censura interna em redações e mesmo a auto-censura entre os próprios compositores." (GARCIA, 2000)

Bibliografia

GARCIA, Luiz Henrique Assis. Coisas que ficaram muito tempo por dizer: o Clube da Esquina como formação cultural. 2000. 154 p. Dissertação (Mestrado) - História, UFMG, Belo Horizonte, 2000.[link]


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