Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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8 de dezembro de 2014

As derramadas lágrimas de Guinga

A noite de hoje está guardada e há de ser glosada nos compêndios da música popular brasileira. Histórias serão contadas sobre os antológicos shows de Zé Miguel Wisnik e Guinga na Mostra Cantautores, digna e pertinentemente coadjuvados por Rafael Martini e Pedro Carneiro, respectivamente. Eu mesmo pretendo ter várias pra contar. Mas até lá hão de surgir instantâneos oportunos e singelos, argutos e espontâneos. Sinto uma profunda necessidade de compartilhar com os leitores do blog este escrito pelo meu parceiro Pablo Castro :

 
Embebido da experiência intensa e profunda de ter podido estar nessa noite de gala, na estreia da quarta edição da Mostra Cantautores [confira site com programação completa] , em que se apresentaram dois luminares da canção brasileira, dois mestres absolutos , da mesma geração, e em certa medida opostos, em certa medida complementares, José Miguel Wisnik com sua dissecação graciosa da canção e das canções, as suas, loas afiadas como pérolas aos poucos, e as nossas, aquelas entranhadas no inconsciente coletivo do que somos;
Guinga, com seu charme carioca, a um mesmo tempo humilde e malicioso, contando anedotas e destilando outras obras primas absolutas, ora com Aldir, ora com Paulo César Pinheiro. O encontro das duas personalidades fundamentais do desenvolvimento dessa arte nas últimas décadas, talvez ainda mais que os baluartes esplêndidos da década de 1960, se dá num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico, ou talvez no ponto exato do centro da Via Dutra, tão representativos são dos ethos paulista e carioca da canção nacional ... e se inscrevem na nossa memória.
A apresentação do arrojado e magnífico Rafael Martini, articulando com primor uma música expandida para além da letra, e para dentro dela, conjugada com a abertura de Pedro Carneiro, um cronista que casa Guinga com Rumo, ilustram, sem esforços, o nível das aventuras que a canção brasileira ainda reserva para os que se dignam a cultivá-la, a ouvi-la, e a guardá-la dentro de si, refutando miseravelmente a tese do fim da canção.
A canção popular é a verdadeira epopéia da cultura tupiniquim, e quem não faz idéia de por onde ela passa, está perdendo uma das melhores sensações de pertencer a esse lugar chamado Brasil.
Que essa noite tenha sido um dia 8 de dezembro me parece muito significativo, em que pese a influência de John e a onipresença luminosa de Tom.


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Guinga derramou sua canção e derramou lágrimas, fez chorar de chorar e chorar de rir. Para dar um gostinho de sal e doce do que foi a noite: essa história da bigamia, canção necessária, desnecessária, etc., foi um dos pontos altos da noite. Acabei de ver a Salmaso contanto a história também, noutro dia, noutro lugar. 


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Mais cedo, pensando no show de Guinga na Mostra Cantautores, encontrei essa maravilha de texto do Túlio Villaça [Guinga e a última canção do beco aqui]. E outro dia assisti um pedaço (tá difícil ver coisas inteiras) do show O fim da canção (Wisnik + Nestroviski + Tatit) que também me botou pra pensar nessas coisas. Há de merecer mais reflexão. Não consigo deixar de pensar que sair do beco implica refazer rotas também, não com pés nostálgicos, mas por ser possível retomar caminhos que eventualmente não foram percorridos até o fim. Se ali na frente houver outro beco, que haja. Do que for decantado no caminho, ficará o encanto. Sim, temos uma cena pujante. Como diz o Pablo, Eldorado subterrâneo da canção. A cobertura da imprensa tem que crescer, ampliar, multiplicar. De pouco adianta divulgar o evento e depois esquecer de novo desse manancial que flui forte já há tempos. É preciso construir público, abrir espaço nas rádios, nas tvs, nos palcos. E é louvável, mais que louvável, o trabalho da moçada que toca desde sempre a preciosa mostra Cantautores! Longa vida!

30 de outubro de 2012

Machado, maxixe, espetáculo!

Eis que hoje me deparo com essa peça, "Breve História da Música Popular Brasileira", atividade dos alunos do curso de Licenciatura em Música do Izabela Hendrix, conduzida pelo "peça", grande músico - e agora se revelando um professor igualmente criativo - Avelar Jr. Uma iniciativa pra lá de bacana que me fez recordar dos tempos de doutorado pela citação do conto Um homem célebre (1896) de Machado de Assis, estudado no ensaio Machado Maxixe: o caso Pestana de José Miguel Wisnik.


Foi daquelas inserções de última hora, descoberta meio casual. Tinha comigo a coletânea Sem receita, do Wisnik, precioso empréstimo de meu parceiro Pablo Castro, mas por causa de outro texto, "O minuto e o milênio ou Por favor, professor, uma década de cada vez", referência importante, muito citado e tal. Mas o tal caso Pestana calhou de ser muito mais interessante, inclusive porque se aproximava de um outro texto que eu tinha encontrado de Machado sobre a polca, citado num desses livros genericões sobre história da música popular brasileira (era praticamente a única coisa que de fato me chamara a atenção ali). Lembro-me até hoje da pressa com que devorei o conto, catado numa edição de obras completas de Machado daquelas da Nova Aguilar, em pé na biblioteca do Unileste-MG, na frente da estante. Essa recuada no tempo, muito fora do recorte proposto para o grosso da tese, era muito em função de que as discussões sobre trocas culturais na historiografia tratavam esse momento como chave, e discutia ali conceitos e dilemas que continuariam presentes, ainda que transmutados, em outros contextos históricos como o que eu propunha estudar, em torno do "nacional" e do "popular". Segue uma provinha:
Neste ponto, a literatura tende a ressaltar o re-processamento local dos gêneros importados – polca-lundu, maxixe, etc. (PERRONE & DUNN, 2001:8; MACHADO, 2002:75-76; entre outros). Aliás, uma crônica de Machado de Assis, escrita para a Gazeta de Notícias em 1887, é bem exemplar:

“Mas e a polca? A póla veio
de longe terras estranhas
galgando o que achou permeio
mares, cidades, montanhas (...)
Pusemo-lhe a melhor graça
No título que é dengoso
Já requebro, já chalaça
Ou lépido ou langoroso”

Surge aqui todo um vocabulário recorrente nas abordagens sobre a música popular brasileira, que aponta o “molejo”, o “requebrar” como índice de brasilidade. Expressões sintetizadas, musicalmente, pela figura da síncope. É significativo que José Miguel WISNIK, no ensaio Machado Maxixe: o caso Pestana, mencione a mesma crônica e destaque através das palavras “requebro” e “saracoteio” o procedimento rítmico que sugere a aplicação da síncope à polca (WISNIK, 2004: 45). Através dos dilemas do protagonista do conto Um homem célebre (1896), Pestana, bem sucedido músico popular que almeja compor uma sublime obra clássica, Machado de Assis penetra nos conflitos e cruzamentos que marcam a vida musical brasileira no final do século XIX, revelados, por exemplo, através da passagem da polca ao maxixe (WISNIK, 2004: 21). [GARCIA, 2007]