A passagem de Marku Ribas motiva as devidas homenagens e por aqui não poderia ser diferente. Encontrei porém num texto do jovem e talentoso músico Paulim Sartori palavras precisas que compartilho por serem tão bem empregadas para uma tarefa nobre e necessária.
"Diz-se por aí, comumente, que quem nos deixa "vira estrela", ou seja, um astro no intangível céu. Hei de discordar parcialmente de tal aforisma. Certos seres, parece-me, os seres-no-mundo por excelência, que assim se assumem, encantam-nos justamente por serem astros (ou estrelas, como queiram) aqui mesmo no universo ôntico, esta dimensão repleta da mais bela e trágica imanência. Aqui, quando as coisas nos deixam, deixam-nos saudade – essa assimetria incurável da experiência fenomenológica. O paradoxo do tangível-inalcançável para mim se traduz por vezes quando ouço o célebre verso "vida, doce mistério".
Certa vez, dentro em minha irrisória finitude, saindo de um ensaio, deparei-me com a figura destoante de Marku Ribas; destoante porque este sempre portou o ar de um astro que, incompreensivelmente, habitava o âmbito terrestre. Não se questiona algo que emana de um mulato de mais de 1,90m de altura; simplesmente é-se ofuscado por aquilo. É mesmo como se o encontro com o astro fosse o imperativo do silêncio da admiração... cala-se. A estrela de Marku brilhou por todo o tempo enquanto esteve descendente dos céus. Num palco em Tiradentes, há uns anos, vi aquelas enormes mãos tangerem cordas percussivamente, harmonizando singulares e negras toadas, quiçá representações fidedignas de um Olimpo afro-brasileiro. É uma saudade que ficará.
Descrente da literalidade da posterioridade da morte, sempre preferi pensar na poética vívida e vivida. A carga simbólica que trespassa e transborda da obra de um autêntico artista tem mesmo um valor que intermedia o transcendente e o imanente, que legitima a fantasia da perenidade da alma e do pensamento, que faz da produção um hino a ser repetidamente bradado na transversal do tempo, ainda que em suas mais tenras margens.
Eis um canto marginal, genuinamente temperado pelo gênio de um mortal. E mais uma vez: a crítica que não toque na poesia. Zamba bem, Marku, que cá também zambamos."
Certa vez, dentro em minha irrisória finitude, saindo de um ensaio, deparei-me com a figura destoante de Marku Ribas; destoante porque este sempre portou o ar de um astro que, incompreensivelmente, habitava o âmbito terrestre. Não se questiona algo que emana de um mulato de mais de 1,90m de altura; simplesmente é-se ofuscado por aquilo. É mesmo como se o encontro com o astro fosse o imperativo do silêncio da admiração... cala-se. A estrela de Marku brilhou por todo o tempo enquanto esteve descendente dos céus. Num palco em Tiradentes, há uns anos, vi aquelas enormes mãos tangerem cordas percussivamente, harmonizando singulares e negras toadas, quiçá representações fidedignas de um Olimpo afro-brasileiro. É uma saudade que ficará.
Descrente da literalidade da posterioridade da morte, sempre preferi pensar na poética vívida e vivida. A carga simbólica que trespassa e transborda da obra de um autêntico artista tem mesmo um valor que intermedia o transcendente e o imanente, que legitima a fantasia da perenidade da alma e do pensamento, que faz da produção um hino a ser repetidamente bradado na transversal do tempo, ainda que em suas mais tenras margens.
Eis um canto marginal, genuinamente temperado pelo gênio de um mortal. E mais uma vez: a crítica que não toque na poesia. Zamba bem, Marku, que cá também zambamos."
Encontrei uma boa entrevista de 2009 [aqui] em que o próprio Marku sintetiza sua trajetória e fala de seus projetos artísticos. Separei alguns trechos para que fiquem aqui suas palavras como traços riscados no plano da vida:
"A surpresa do chamado original, atávico, autóctone, que são sinônimos do mesmo sentimento, as pessoas que tem cultura própria onde nasceram, já ali. As manifestações folclóricas, a música erudita, eu tive a sorte de presenciar tudo isso com o meu pai, meu avô, meu bisavô, que era mouro. Meu pai, como médico, tinha muito interesse pela vida. Ele gostava de cantar coisas de Caruso, Carlos Gardel, Vicente Celestino, Orlando Silva, fazia serenatas nas horas vagas. Captei a diversidade das coisas, até do cantochão, da música nas igrejas, a confluência indígena, com influência negras e com o meu avô materno português. Sou barranqueiro da gota, como existem os cariocas da gema, os paulistanos etc. Represento uma cultura do rio São Francisco que tem semelhanças de espectro com o Rio Vermelho da China, o Rio Nilo da África, o Mississipi americano, são sentimentos iguais em lugares díspares, mas com uma vivência muito igual de depender da pescaria, da chuva, do sol, da enchente. (...) Faço sons com as mãos, no rosto, na testa, na bochecha, desde que era criança, alguma coisa eu aprendi com a minha mãe. Uma verdadeira sinfonia corporal. Aí, descobri o gutural, os sons onomatopaicos que traduzem não palavras ou línguas, mas sentimentos. Fui incorporando isso tudo enquanto ouvia grandes violonistas como Dilermando Reis, Manoel da Conceição, Baden Powell, Manoel da Conceição Mão de Vaca, Rosinha de Valença, Paulinho Nogueira, e um gênio da minha região, o Deoclécio, que morreu cedo tragicamente e que fazia cada “aranha” nos acordes que a gente não tinha a menor noção do que era, grande guitarrista e violonista. Sou parceiro de Erasmo Carlos, Walter Queiróz, João Donato, Djalma Correa. Tenho essa noção do violão cheio, violão magnífico, que se toca em todas as regiões do instrumento. Sou ainda um aprendiz de tudo, sim, mas tenho o bom senso e a sensibilidade de ter colocado alguns craques no jogo, como o baixista Artur Maia, o violonista Romero Lubambo, o tecladista Jotinha Moraes, que começaram tocando e gravando comigo. Vejo influências minhas em Eduardo Dussek, João Bosco, Tunai, Ed Motta e João Donato, entre outros.(...) Para quem não sabe, meu nome de batismo é Marco Antonio Ribas. Criei o personagem Marku para homenagear a tribo Cariri Macu, da minha região, onde tem um sítio arqueológico de 2.500 anos com resquícios históricos da vivência dessa tribo indígena na barranca do Rio São Francisco, no Norte de Minas Gerais, entre Pirapora e Buritizeiros. Já escrevi contando coisas que ocorreram comigo entre o meu nascimento em 1947 até 1977. Acho que depois farei um segundo volume, contando todo o resto. Nasci em um 19 de maio com eclipse total do sol, que tem toda uma influência cósmica, elétrica, na espiritualidade, também. Vou contar histórias nesse livro que farão muita gente cair de costas (risos). Por exemplo, como era quando eu cheguei em São Paulo em 1967 e gravei logo de cara um LP pela Continental. Eu namorava a passadeira e lavadeira para livrar a passagem e a lavagem de roupa. (risos) Ia às cinco da manhã às rádios para fazer a divulgação do disco, que na época era chamada de “caitituagem”.
Assim se guarde a memória das gentes que zambam, junto à lembrança estrelada do Marku.
"A surpresa do chamado original, atávico, autóctone, que são sinônimos do mesmo sentimento, as pessoas que tem cultura própria onde nasceram, já ali. As manifestações folclóricas, a música erudita, eu tive a sorte de presenciar tudo isso com o meu pai, meu avô, meu bisavô, que era mouro. Meu pai, como médico, tinha muito interesse pela vida. Ele gostava de cantar coisas de Caruso, Carlos Gardel, Vicente Celestino, Orlando Silva, fazia serenatas nas horas vagas. Captei a diversidade das coisas, até do cantochão, da música nas igrejas, a confluência indígena, com influência negras e com o meu avô materno português. Sou barranqueiro da gota, como existem os cariocas da gema, os paulistanos etc. Represento uma cultura do rio São Francisco que tem semelhanças de espectro com o Rio Vermelho da China, o Rio Nilo da África, o Mississipi americano, são sentimentos iguais em lugares díspares, mas com uma vivência muito igual de depender da pescaria, da chuva, do sol, da enchente. (...) Faço sons com as mãos, no rosto, na testa, na bochecha, desde que era criança, alguma coisa eu aprendi com a minha mãe. Uma verdadeira sinfonia corporal. Aí, descobri o gutural, os sons onomatopaicos que traduzem não palavras ou línguas, mas sentimentos. Fui incorporando isso tudo enquanto ouvia grandes violonistas como Dilermando Reis, Manoel da Conceição, Baden Powell, Manoel da Conceição Mão de Vaca, Rosinha de Valença, Paulinho Nogueira, e um gênio da minha região, o Deoclécio, que morreu cedo tragicamente e que fazia cada “aranha” nos acordes que a gente não tinha a menor noção do que era, grande guitarrista e violonista. Sou parceiro de Erasmo Carlos, Walter Queiróz, João Donato, Djalma Correa. Tenho essa noção do violão cheio, violão magnífico, que se toca em todas as regiões do instrumento. Sou ainda um aprendiz de tudo, sim, mas tenho o bom senso e a sensibilidade de ter colocado alguns craques no jogo, como o baixista Artur Maia, o violonista Romero Lubambo, o tecladista Jotinha Moraes, que começaram tocando e gravando comigo. Vejo influências minhas em Eduardo Dussek, João Bosco, Tunai, Ed Motta e João Donato, entre outros.(...) Para quem não sabe, meu nome de batismo é Marco Antonio Ribas. Criei o personagem Marku para homenagear a tribo Cariri Macu, da minha região, onde tem um sítio arqueológico de 2.500 anos com resquícios históricos da vivência dessa tribo indígena na barranca do Rio São Francisco, no Norte de Minas Gerais, entre Pirapora e Buritizeiros. Já escrevi contando coisas que ocorreram comigo entre o meu nascimento em 1947 até 1977. Acho que depois farei um segundo volume, contando todo o resto. Nasci em um 19 de maio com eclipse total do sol, que tem toda uma influência cósmica, elétrica, na espiritualidade, também. Vou contar histórias nesse livro que farão muita gente cair de costas (risos). Por exemplo, como era quando eu cheguei em São Paulo em 1967 e gravei logo de cara um LP pela Continental. Eu namorava a passadeira e lavadeira para livrar a passagem e a lavagem de roupa. (risos) Ia às cinco da manhã às rádios para fazer a divulgação do disco, que na época era chamada de “caitituagem”.
Assim se guarde a memória das gentes que zambam, junto à lembrança estrelada do Marku.
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