Nesses tempos de mp3, Ipods e outros "I" alguma coisa, a experiência de ouvir um disco com um conceito, com início, meio e fim, com encadeamentos consequentes entre as faixas, arranjos que dão sensação de conjunto e outros baratos afins, tende a tornar-se rarefeita numa nova atmosfera de escuta. Porém não se dissipa, e ainda guarda sua força de significação, e é ainda essa unidade do disco que serve de baliza à produção, circulação e consumo de uma parte significativa da música popular. Tem discos que a gente vai descobrindo aos poucos, vai até mesmo aprendendo a gostar. Às vezes esquecemos deles e depois quando os colocamos novamente pra tocar esse distanciamento se revela como necessário para voltar a ouvi-lo. Foi assim, para mim, com o CD Noites do Norte de Caetano Veloso. Seu cerne, em letra e música, é um ensaio sobre a história brasileira centrado na questão da escravidão e suas marcas em nossa sociedade, destacando-se aí a canção título, e mais 13 de Maio e a versão de Zumbi (Jorge Ben). Agora até mais do que quando saiu o disco adquire força o trecho de "Minha Formação", de Joaquim Nabuco, musicado por Caetano na canção Noites do Norte:
“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do País, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte"
De um lado devemos evitar qualquer romantismo que guarde a imagem da escravidão, o que se deve fazer contextualizando o discurso de Nabuco em seu tempo e entendendo que Caetano o retoma a partir de sua própria experiência, inclusive como leitor . De outro é fascinante justamente a sua habilidade em conferir à prosa um sentido melódico e uma trama cancional, dotando-a de uma estrutura consequente, de modo que mesmo em sua irregularidade conseguimos como ouvintes identificar uma narrativa condutora, capaz de integrar os aspectos textuais e musicais criando um corpo, uma inteireza. Imagino que tal feito traduz, de alguma forma, uma interpretação do Brasil e um projeto político com o qual se identifica Caetano, "(...) a idéia de que a escravidão tinha organizado -ou desorganizado! - a vida brasileira de tal maneira que o Brasil precisaria de muito tempo e muito esforço para desfazer o trabalho da escravidão.É um bordão do pensamento de Joaquim Nabuco, que, neste momento de "Minha Formação",aparece sob a luz do reconhecimento de um sentimento contraditório : aquele que mais lutou pela abolição da escravatura confessa que sentia saudade do escravo. Para mim, essa reflexão pessoal de Joaquim Nabuco já é uma revelação de algo muito profundo que é o Brasil." [aqui a entrevista dele muito esclarecedora sobre o assunto].
P.S. 2019
Para complementar o debate sobre a Abolição, excelente entrevista com o historiador Luis Felipe de Alencastro.
P.S. 2019
Para complementar o debate sobre a Abolição, excelente entrevista com o historiador Luis Felipe de Alencastro.
Caralho, que entrevista FODA essa do Caetano que você linkou, Balu!
ResponderExcluirDiga-se aqui que o "Noites do Norte", além de um disco-ensaio brilhante, rendeu um dos mais belos DVDs de música que já assisti até hoje.
Grande Paulim, realmente um dos grandes trabalhos na discografia mais recente do Caetano. E a canção Noites do Norte em particular vejo como uma afirmação gigantesca do patamar de inventividade e sofisticação da música popular brasileira.
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