Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

10 de fevereiro de 2014

Stuat Hall - contra as correntes

A definitiva passagem de uma referência intelectual que se admira, se entristece, deve ser ocasião de compromisso com a marca que foi deixada por ela no mundo e em nós, não como reverência vazia, ou como lamento automático, mas como afirmação da força transformadora de seu pensamento e ação, que não irá se dissipar justamente na medida em que ocorra essa determinada opção de manter a voz daquele notável ser humano ecoando em nosso meio. Stuart Hall, certamente um dos intelectuais mais influentes de sua geração, um pensador de esquerda da e na diáspora, de uma ilha até outra, que do coração do velho império contribuiu muito para emancipar o estudo da cultura de diversas "escravidões mentais", em múltiplas frentes. Para mim sua grande contribuição é ter demonstrado que o engajamento intelectual não prescinde da originalidade teórica e da crítica aguda, antes nutre-se delas. Hall deixa a obra de um insurgido que reconfigurou o cenário e ajudou a alterar nossa percepção sobre identidades, migrações, trânsitos culturais, etnicidade, política, cultura popular, meios de comunicação, globalização, e por aí vai.

Transcrevo um trecho de seu texto "Pensando a diáspora" [publicado no livro Da diáspora]:

"A cultura caribenha é essencialmente impelida por uma estética diaspórica. Em termos antropológicos, suas culturas são irremediavelmente "impuras". Essa impureza, tão frequentemente construída como carga e perda, é em si mesma uma condição necessária à sua modernidade (...) Não se quer sugerir aqui que, numa formação sincrética, os elementos diferentes estabelecem uma relação de igualdade uns com os outros. Estes são sempre diferentemente inscritos pelas relações de poder - sobretudo as relações de dependência e subordinação sustentadas pelo próprio colonialismo. Os momentos de independência e pós-colonial, nos quais essas histórias imperiais continuam a ser vivamente retrabalhadas, são necessariamente, portanto, momentos de luta cultural, de revisão e de reapropriação".(HALL, 2006, p.34)

Era também um excelente entrevistado, como é possível perceber nessa que concedeu a Heloísa Buarque de Hollanda e Liv Sovik [aqui] , e desta autora é também um belo texto homenageando Hall publicado 22/02 em O Globo [aqui].
Encontrei também uma lista [aqui] com oito músicas que levaria se naufragasse numa ilha deserta que traz Miles, Marsallis, Marvin Gaye, Billie Holliday, Bach, Puccini e a canção que escolhi para homenageá-lo, de seu conterrâneo Bob Marley. Um trecho da nota de óbito de David Morley e Bill Schwarz, seus amigos e ex-alunos, publicada no site do “The Guardian”, menciona essa mesma lista:
“Quando apareceu no programa de rádio Desert Island Discs, Hall falou de sua paixão duradoura por Miles Davis. Explicou que a música representou para ele o som do que não pode ser, ‘the sound of what cannot be’. O que era sua vida intelectual, senão o esforço, contra todos os obstáculos, para fazer ‘o que não pode ser’, viver na imaginação?”

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