Às vezes passa o dia todo, uma ideia de postagem rondando aqui a cachola, depois ela dança pra lá, gira pra cá, muda, se junta com outra, vira rascunho, às vezes nem isso. Fica perdida no limbo das boas ideias que não se concretizam. Nossa, sou mestre nesse negócio, meu limbo deve ter inclusive um anexo. Fora aquela vontade enorme de escrever, vai formando o texto todo na cabeça, mas quando senta na frente do teclado, parece que o trabalho físico de digitar as letras vai afetar a disposição de passar a outro plano o que nos entrecortados pulsos elétricos que transitam pelos neurônios parece muito bem alojado por ali. Enfim, tinha a ideia antiga de escrever sobre essa situação, não propriamente das versões, das interpretações de diferentes intérpretes para uma mesma canção, mas do caso mais raro em que uma canção vai se reencarnando à medida em que os compositores mudam alguma coisa, ou quando veio à tona inicialmente como tema instrumental e ganho letra depois - ah, como não lembrar da providencial e desbocada intervenção de Nana Caymmi pra "obrigar" o Márcio Borges a fazer a letra de Clube da Esquina n° 2 ?! Mas pirei mesmo quando descobri uma encarnação anterior de A sede do peixe, intitulada então "Nem precisou mais um sol" [ouça, aqui]. A obra de Milton Nascimento está recheada de exemplos. Como entender, por exemplo, a decisão de gravar Pai Grande em 1969 e 1970, em dois LPs seguidos? Os arranjos são bem distintos, e na segunda gravação Naná Vasconcelos descortina uma verdadeira floresta primal de timbres na percussão. Letras censuradas também acabaram motivando reencarnações, mesmo se eventualmente as canções tivessem sido gravadas no exterior, com letra em inglês, por exemplo. Alguns tem detalhes curiosos, como Cadê, letra original de Ruy Guerra censurada em Milagre dos Peixes, que foi gravada posteriormente em inglês como Fairy Tale Song (versão da letra de Mathew Moore) e depois reencarnou em português na voz de Gal Costa.
Eis a letra. Não estou tratando a fundo a censura nessa postagem, mas rapidamente, me parece que aí deve ter sido provocada por uma leitura que passava muito pelo recorte moral, pela forma como se coloca o Eu-lírico feminino.
Meu príncipe encantado
Meu príncipe cansado
Cadê tuas botas de sete léguas?
E a tilim de Peter Pan?
E tua esperança Branca de Neve?
Cadê, quem levou?
Quem levou?
Meu príncipe esperado
Meu príncipe suado
Que é do beijo da Bela Adormecida?
E a espada de condão
E o País Maravilhoso de Alice?
Cadê, quem levou?
Quem levou?
Meu príncipe assustado
Meu príncipe queimado
Corta a noite escura desta floresta
Mata o fogo do dragão
Trás da lenda os jogos de nossa festa
Pra eu poder brincar e sorrir
Meu príncipe cansado
Cadê tuas botas de sete léguas?
E a tilim de Peter Pan?
E tua esperança Branca de Neve?
Cadê, quem levou?
Quem levou?
Meu príncipe esperado
Meu príncipe suado
Que é do beijo da Bela Adormecida?
E a espada de condão
E o País Maravilhoso de Alice?
Cadê, quem levou?
Quem levou?
Meu príncipe assustado
Meu príncipe queimado
Corta a noite escura desta floresta
Mata o fogo do dragão
Trás da lenda os jogos de nossa festa
Pra eu poder brincar e sorrir
Na mesma toada temos Caxangá [Milton a tocaria ao vivo em 1983], reencarnação de Os escravos de Jó, emblematicamente gravadas por vozes femininas tão fortes e entrelaçadas com a dele, a primeira a de Clementina de Jesus, e a segunda, aí com a letra de Fernando Brant, a de Elis Regina. Aliás, antes disso existiu a encarnação "O homem da sucursal" , parte da trilha do documentário Tostão, a fera de ouro. As trilhas também são também caminhos pelos quais vem ao mundo as canções, eventualmente em forma embrionária, que depois se reencarnam. Isso aconteceu no caso de E daí? (a queda) no filme de Ruy Guerra em 1976 e depois no Clube da Esquina 2 em 1978 e Coração de Estudante no filme Jango (1984), tema de Wagner Tiso que recebeu letra de Milton pouco depois, e acabou incorporada ao imaginário nacional desde as Diretas e no subsequente luto pela morte do presidente Tancredo Neves.
Um caso diverso, um tanto mais raro, foi Unencouter (Canção da América), nascida na temporada Losangeliana de Bituca e Brant em 1979 para gravar o LP Jorney to Dawn, e depois o Fernando mesmo fez uma letra em português para o 14 Bis gravá-la, e na sequência o Milton gravou-a em Sentinela (1980).
Tendemos a ouvir a canção, através do registro fonográfico especialmente, como algo que alcançou uma forma final, mas nem sempre parece ser a perspectiva de seus próprios compositores. Um caso especialmente extremo disso me parece a recriação de Novena, que originalmente era Paz do amor que vem, parceria das inaugurais de Milton e Márcio Borges.
Tô achando que tem ainda muito o que escrever mas o cansaço bate. Vou deixar assim por agora, considerando work in progress, achando que essa postagem ainda vai ter outra encarnação.
--\\//--
P.S. Acontece que eu lembrei que eu queria contar uma outra história paralela, de um caso de reencarnações de que eu mesmo participei como compositor. Foi resumidamente o seguinte, escrevi, deve ter sido nos últimos anos do século passado ou primeiros desse, uma letra intitulada "Na floresta", que começava assim "Por entre as frestas das frondosas madeiras...".
Dessa letra o meu parceiro Pablo Castro começou a escrever uma canção. Poucos anos depois, quando foi gravado o disco A outra cidade, ela faria parte do repertório, com uma nova parte feita pelo Kristoff Silva, e deveria ter uma nova letra que o Pablo começou e eventualmente eu poderia completar, mas acabou não dando certo, e daí ficou a instrumental "Madeixas". Ficou uma bela instrumental. Mas eu fiquei com a ideia de ressuscitar aquela velha letra, ou pelo menos algumas das ideias dela, o tema da floresta e tal. Acabei compondo outra melodia (na verdade uma colagem de 5 partes diferentes que lembra o método de Happiness is a warm gun, de Lennon) e acabou saindo uma outra canção, Éden.
Nenhum comentário:
Postar um comentário