Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

3 de agosto de 2015

A mística do circo e a canção popular

Enquanto encerro o "expediente" no último dia de férias, considerei imperativo fazer ao menos uma postagem para celebrar a marca de 60 mil acessos do Massa Crítica Música Popular, mesmo tendo decidido que dessa vez precisava evitar transformar o tempo de descanso em trabalho, por mais prazeroso que este possa ser.
Ao mesmo tempo uma nota melancólica vai entrar, uma vez que pensei essa postagem também como pequena homenagem. Numa dessas coisas incríveis e assustadoras da vida, estava hj na praça com queridos amigos (+ nossas respectivas filhas rsrsrs) e fiz um comentário casual sobre o Orlando Orfei, sem saber que ele havia falecido, como eles imediatamente me informaram. 

Outras coincidências da vida me fizeram pensar no assunto "circo" como tema dessa postagem. É que na última quinta tive o privilégio de assistir ao espetáculo da Sinfônica Pop, em que a OSMIG, sob a regência especialmente convidada do grande pianista e maestro Nelson Ayres, uniu-se à distintíssima cantora Mônica Salmaso para uma apresentação que combinou requinte no repertório, excelência na performance, mas também informalidade, calor, sentimento. E dentro dessa maravilha de espetáculo a Mônica cantou quatro pérolas da obra em parceria de Edu Lobo e Chico Buarque, O grande circo místico: a canção título, Ciranda da Bailarina, A história de Lily Braun e, num emocionante "triz", Beatriz (que vem a ser o nome da filha dos meus amigos Mariana e Léo que estavam comigo na praça). Essencialmente, creio que poucas vezes se viu e ouviu uma intérprete aliando tão bem técnica e sensibilidade. Simultaneamente, por esses mesmos dias acabei de ler a bem acabada biografia musical de Edu Lobo, São bonitas as canções, escrita por Eric Nepomuceno. Concordando essencialmente com o que escreveu o jornalista Mauro Ferreira em seu blog, o livro não ultrapassa a barreira da narrativa consentida, mas faz bem aquilo a que se propõe, oferecendo ao leitor uma boa apresentação do trabalho e da carreira de Edu. Foi justamente o capítulo que traz alguns detalhes sobre o surgimento e o modo de trabalho da parceria Edu/Chico, especialmente dentro do projeto do Circo Místico, um dos que mais gostei no livro. 
Enfim, uma coisa que me fascina nas canções são certas recorrências e tradições temáticas, que se estabelecem de repente num determinado gênero, mas por vezes também para além deles. Podemos citar o automóvel para o bom e velho rock and roll, o mar na bossa nova, os corpos celestes, especialmente o sol e a lua, em diversos gêneros, e por aí vai. O circo, especialmente nesse formato próprio da modernidade, de espetáculo itinerante que transita dos grandes centros ao interior, que vara o país, que fabrica através de toda uma narrativa e uma atividade artística e atlética concatenadas a atmosfera do sonho, do fantástico, da surpresa e da ilusão,da ultrapassagem dos limites do corpo e da mente, enfim, o circo merece ocupar os tratos à bola dos compositores populares. Além do Circo Místico poderíamos enfileirar um sem número de canções, joias como Gran Circo, de Milton e Márcio Borges, ou Being for the benefit of Mr. Kite, em que John Lennon literalmente musicou o pôster de anúncio de um espetáculo circense. Eu mesmo já me incumbi de escrever uma, chamada Parada no ar, sobre a qual depois devo contar alguma coisa. 
Enfim, que ecoem duradouras palmas ao sr. Orlando Orfei, que no picadeiro da memória de todos nós ele continue apresentando as atrações que tanto marcaram a infância da gente, pois seu nome é sinônimo de circo.


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