Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

8 de novembro de 2015

O ouro da mina virou veneno

Tô meio apertado de serviço para produzir qualquer coisa mais substanciosa que faça conexão entre os estudos de desastre em geral e o recente acontecido em Mariana. O que posso dizer é que nessas horas se revela a importância da História. É ela que permite, por exemplo, estabelecer os nexos profundos entre esse tipo de desastre, o modelo de civilização que adotamos, e as forças que se mobilizam na arena política e no campo da cultura para produzir a justificativa e perpetuação de um estado de coisas. Pelas leituras, e também pela pesquisa em jornais que fizemos, quem se interessar poderá constatar que os recursos retóricos não variam muito, sempre recorrendo ao conceito de "fatalidade" e afins como forma de isentar os responsáveis [ver a fala do secretário de Estado de Desenvolvimento Econômico, Altamir Rôso], e que escusos interesses comerciais invariavelmente estão presentes e são em boa parte os responsáveis por essas catástrofes, que nada tem de natural.

A Estratégia Internacional de Redução de Desastre (ISDR) da ONU define desastre ou catástrofe como “grave perturbação do funcionamento de uma comunidade ou de uma sociedade envolvendo perdas humanas, materiais, econômicas ou ambientais de grande extensão, cujos impactos excedem a capacidade da comunidade ou da sociedade afetada de arcar com seus próprios recursos” (UNISDR, 2009). O risco, portanto, não se caracteriza tão somente a partir das condições naturais, mas da combinação de fatores espaço-temporais que levam em conta os limites de adaptação ou resiliência aos eventos em questão. Daí a importância de utilizar o conceito de vulnerabilidade social, que nos permite articular a percepção dos indicadores de risco ambiental à das desigualdades que caracterizam a ocupação dos territórios, de modo a identificar populações que estão sob condições mais desfavoráveis e repensar políticas públicas que sejam efetivas para combater tal vulnerabilidade. Quem quiser se aprofundar nessas discussões pode recorrer à página do projeto que coordenei enquanto fui professor da Univale, em Governador Valadares [aqui].

Mais uma coisa a se aprender (será que é possível???) - e aqui fica o lamento porque tantas vezes nesse mundo nosso as preocupações e reflexões só deslancham depois que o caldo entorna - é o valor dos profissionais de campos de conhecimento, dos que entendem do riscado e fazem alertas sobre situações como essa por anos e anos [ver o relatório de 2013]. Dos pesquisadores, dos funcionários de órgãos públicos, anônimos, quase afônicos, que redigem relatórios catataus que ninguém lê. Ou que são silenciados pq o que têm a dizer contraria interesses poderosos, vai contra a força da grana. Existe uma falinha nefasta que circula pelas mesas das recepções bacanas, pelas festas invocadas, pela night dos bem nascidos, pregando a privatização de tudo, denegrindo o servidor público em geral, e outras asneiras afins. Mas não é assim que devem ser visto, e sim como servidores, aliados de todos nós sociedade civil, de nós, cidadãos, gente comum que não tem acesso, que não banca campanha de deputado, que não sonega quantias vultuosas nem mantém conta na Suíça. De nós, meros. Essa mesma gente da falinha jamais ergue a voz pra questionar algo que um empresário faz. No máximo sussurra ao pé do ouvido. Pode ser perigoso, seus filhos podem ouvir e começar a achar que ser empresário e ser "do bem" não é a mesma coisa. Enquanto a sociedade não revê seus valores, vamos nessa, um dia todas as torneiras irão jorrar lama. Tóxica.


Mas outras falas se acumulam e se postam contra uma outra morte, a morte do esquecimento, do engano, da omissão, a morte das brechas da lei, dos homens que sabem andar por elas. Somos pela vida e contra todas essas 2as mortes que desde já querem impingir aos mineiros assassinados pela ganância e pela inépcia, pela lama da indústria do minério. E nesse sentido eu recorro à belíssima - e tristíssima - canção Simples, de Nelson Angelo, gravada primeiramente por Milton Nascimento no LP Minas, em 1975. A densidade do arranjo, também obra de seu compositor, expressa perfeitamente a atmosfera pesada que a letra enuncia, ironicamente talvez não tendo muito de simples. O final, arrebatador, é lançado pela poderosa imagem da criança. Se até aqui o eu-lírico nos conduz, de repente como um Virgílio a nós como Dantes a encarar a conversão da terra em inferno, e até então cumpria-nos simplesmente olhar, a criança, interposta - "ali sentada" - diante de nossos olhos, como que antes do cenário de desolação, nos olha de volta. É a expressão do colapso do futuro, de sua eminente não realização. Mas enquanto a voz dilacerante de Milton se perde na micro-eternidade do estéreo, o acorde final é como uma revoada de sons e pássaros, uma promessa de regeneração. Promessa que, ainda que ameaçada, resiste, daí sua volta como expressão de início/nascimento nos primeiros compassos de Geraes (1976), que abre justamente com Fazenda, a canção gêmea desta também escrita pelo Nelson Angelo. Acabei achando uma versão ao vivo executada em 1990, que não conhecia. Encontrei também, por tabela, uma apresentação ao vivo de 1983 em que Bituca executa A chamada, seu impressionante canto de sereia composto inicialmente para a trilha de Os deuses e os mortos de Ruy Guerra. O arranjo de "Simples" nessa performance de 1990, que infelizmente pelo vídeo não consegui determinar o autor, parece ter tirado ideias dela.

Simples (N.Angelo)

Olha a volta do rio virou a vida
A água da fonte nossa tristeza
O sol no horizonte uma ferida


Olha o ouro da mina virou veneno
O sangue na terra virou brinquedo
E aquela criança ali sentada




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