Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

5 de abril de 2017

Aula de canção: Canto de Ossanha, ou pequeno tratado contra o anacronismo

Em meio a mil afazeres tirei alguns minutos para tirar a poeira do blog. Sem tempo pra inventar muita moda, e parcialmente motivado pela apresentação que o jornalista Lyra Neto acabou de fazer agora à tarde na Fafich UFMG de seu livro Uma história do samba: as origens (1° de uma trilogia sobre o gênero)  que me levou a um comentário sobre tantas leituras anacrônicas que vem sendo feitas a partir de analogias um tanto quanto descuidadas entre os sambas de 1920-30 e os funks da atualidade, ou entre a misoginia dos sambas-canção de 1950 e do pagode contemporâneo, por exemplo. Nesses eventos o tempo para debate nem sempre é suficiente, e dependendo do contexto a coisa morre por ali mesmo.  O anacronismo, denunciado por todos aqueles historiadores que são as referências de minha formação, é um equivoco imperdoável para o profissional do ofício. Cada tempo tem seus valores e relações, e é preciso evitar nas avaliações retrospectivas julgar os atos e dizeres das pessoas de outra época com se fossem nossas contemporâneas. "The past is a foreign country: they do things differently there", "O passado é um país estrangeiro: eles fazem as coisas distintamente por lá", diz o poema de Hatley do qual o geógrafo David Lowenthal emprestou o título de um livro seminal sobre patrimônio e memória escrito nos anos 1980s que lamentavelmente até hoje não foi editado no Brasil. 

Mas me lembrei dessa postagem que ficou rascunhada, escrita ano passado. Em seu blog Farofafá o jornalista Pedro A. Sanches, comentando a apresentação da cantora Elza Soares na abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, começou dizendo o seguinte:

"Os versos são de Vinicius de Moraes, o poetinha ex-diplomata que nunca chegou a ser o mais progressista dos brasileiros. A música é de Baden Powell, que no final da vida extirpou a palavra “saravá” de suas canções e substituiu os antigos cantos de candomblé pela religião evangélica. Transtornado por Elza Soares, o “Canto de Ossanha” (1966) de Baden e Vinicius constituiu-se, para boas entendedoras, no grande momento político da cerimônia planetária de abertura das tristes Olimpíadas do Rio de Janeiro." [aqui o texto completo]


Eis a interpretação de Elza, com arranjos significativamente turbinados por batidas eletrônicas que ao final assumem a forma mais típica que se utiliza nos funks atuais - só a título de observação nenhuma das batidas faz jus à elaboração rítmica do afro-samba. Enquanto o narrador 'conceitua' pop (obviamente desconsiderando toda teoria social que já se debruçou sobre o assunto), Elza, visivelmente debilitada, manda uma interpretação até solene, que contrasta tanto com o arranjo quanto o cenário - nesse sentido ela não foi nada pop.


 


O que escrevi como comentário, no próprio blog dele, transcrevo abaixo, a modo de concluir :

Concordo com boa parte da sua interpretação, mas com um ressalva. O princípio do texto não faz jus aos AUTORES da canção. Por que, para empoderar quem quer que seja, é preciso trair ou desmerecer os esforços e o sentido que estava posto antes? Vinícius e Baden merecem todos os elogios por tudo que representam os afro-sambas [uma postagem a respeito, aqui]. E a Elza Soares não transtornou nada, ela derivou o sentido diretamente do que estava lançado lá. Perdeu-se nesse tempo de binarismo e identitarismo barato a capacidade de reconhecer a empatia. A descoberta do Outro e a capacidade de compreender e solidarizar com seu sofrimento, ainda que sem vivê-lo na carne. A capacidade do poeta de fingir, no sentido que emprega Pessoa. Se Vinícius não era o mais progressista (?!), em seu tempo foi deveras progressista - quantos brancos educados e privilegiados de sua época devotaram qualquer entendimento ao universo religioso afro-brasileiro? Poucos. E se Baden converteu-se no final da vida, não importa quando o que cumpre é qualificar sua obra  - no caso em questão a forja poderosa de seu violão fabricando uma modalidade absolutamente original de canção - a partir da qual intérpretes do quilate de Elis, Mônica Salmaso e Elza Soares encontram o solo onde plantar o grão de suas vozes. Os dois merecem toda a consideração de quem fizer crítica musical tendo sua obra em pauta. Saravá.   



 E ouçamos Elis, numa de suas poderosas interpretações ao vivo da canção:



Canto de Ossanha
Baden Powell e Vinicius de Moraes

-"O canto da mais difícil
E mais misteriosa das deusas
Do candomblé baiano
Aquela que sabe tudo
Sobre as ervas
Sobre a alquimia do amor"

Deaaá! Deeerê! Deaaá!

O homem que diz "dou"
Não dá!
Porque quem dá mesmo
Não diz!
O homem que diz "vou"
Não vai!
Porque quando foi
Já não quis!
O homem que diz "sou"
Não é!
Porque quem é mesmo "é"
Não sou!
O homem que diz "tou"
Não tá
Porque ninguém tá
Quando quer
Coitado do homem que cai
No canto de Ossanha
Traidor!
Coitado do homem que vai
Atrás de mandinga de amor...

Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!...

Que eu não sou ninguém de ir
Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor
Que passou
Não!
Eu só vou se for prá ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor...

Amigo sinhô
Saravá
Xangô me mandou lhe dizer
Se é canto de Ossanha
Não vá!
Que muito vai se arrepender
Pergunte pr'o seu Orixá
O amor só é bom se doer
Pergunte pr'o seu Orixá
O amor só é bom se doer...

Vai! Vai! Vai! Vai!
Amar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Sofrer!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Chorar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Dizer!...

Que eu não sou ninguém de ir
Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor
Que passou
Não!
Eu só vou se for prá ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor...

Vai! Vai! Vai! Vai!
Amar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Sofrer!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Chorar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Dizer!...(2x)

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