Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

10 de dezembro de 2017

INQUIETAÇÃO

Se muita coisa não correu como eu queria neste ano de 2017, tenho muito o que celebrar nas minhas atividades musicais. Compus muito, com vários e novos parceiros. Isso propiciou uma diversificação de estilos, de processos e de trocas, enriquecendo enormemente minha atividade de criação. E tudo isso acompanhado de preciosas amizades, complementando a mútua aproximação artística. Para mim uma coisa anda junto da outra, parceria junto com amizade é fundamental. Uma dessas coisas que aprendi sendo fã de Clube da Esquina. Alias, poucos eu conheço que são tão fãs quanto esse meu jovem parceiro, Artur Araújo, cearense que trilhou a estrada pra Minas e já pode se considerar mineiro por adoção. Além de talentoso, ele é muito dedicado à carreira, e vejo ele cada vez mais seguindo os rumos que a música lhe propõe. Ele tem esse dinamismo, essa busca. 
Não foi por acaso, assim, que a primeira música que me mandou para que eu desse letra vinha nomeada como Inquietação. Conversamos para que eu pudesse me acercar dos sentimos e ideias que haviam influenciado a música. Entendi o espírito da coisa, ainda que não imaginasse ainda uma solução que pudesse partir do título sugerido. Achei a princípio até um tanto improvável que fosse possível incorporá-lo propriamente à letra. De todo modo, procurei, o quanto antes, encontrar o fio do novelo para puxar. Ultimamente venho recorrendo a um expediente que tem dado bons frutos, que é aproveitar textos já criados com a intenção de virar canções para aditivar a escrita de outras letras. Encontrei então uns antigos versos que tinham um clima noir, que falavam de becos e de personagens soturnas, intitulados 'Assovio'. Ali era o assovio, algo que se esgueirava, que passava entre pedras, que propunha a ideia de algum tipo de resistência, de desafio da ordem. Pensei que combinava com a música, algo misteriosa e grave, e que tinha um eco de While my guitar gently weeps do Harrison, algo que surgiu na conversa com o Artur. A melodia gentilmente sinuosa remete também ao traço, à grafia. Peguei daí o mote do grafite, insinuado num verso de Assovio mas que eu tornei central para a nova letra. Outra inspiração foi o universo imagético de The lamb lies down on Broadway, do Genesis, em que Peter Gabriel projetou nas letras seu alterego rebelde do aerosol, Rael. Assim fui construindo uma letra mais icônica, visual, em alguns momentos até dispensando os verbos, soltando palavras devotadas a passar o conceito básico. E finalmente encontrei uma forma de inserir a Inquietação do título no corpo da letra, transferindo para o protagonista o próprio ato de ver, ou melhor, de antever "os sinais". É a afirmação de que essa figura marginal tem a habilidade de sentir as tensões, desafiar o estabelecido e descobrir o imprevisto.




Inquietação
Música de Artur Araújo, Letra de Luiz Henrique Garcia

Entre trevas
Num beco frio
mensageiro,
assovio

Atravesso
bueiros vis
dos letreiros
neon desvio

Ao relento, comando só
Fiz grafite no muro cru
Apresento aos irmãos do pó
o cordeiro do dorso nu

sujem as mãos
abram desvãos
fujam dos cães
rompam grilhões

aos sinais
de inquietação (x2)

Ruas vastas
Parede em cio
Nada abate
As bestas que crio

Ódio, açoite
eu denuncio
Traço, faca
palavra, fio

Pestilento odor do fel
Feito lança me corta o ar
Fico atento aos sinais do céu
Vista alcança o que insinuar

Sujem...

aos sinais
de inquietação (x2)

Pestilento (volta)

sujem as mãos
abram desvãos
fujam dos cães
rompam grilhões
sujem as mãos de pó...

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