Meu parceiro Pablo Castro, assíduo escrevinhador dessa página, depois de longo hiato volta com a série "Eldorado", agora trazendo também análises de bolachas completas, remetendo assim a outra seção consagrada aqui do blog.
Vou aproveitar a última semana do ano e fazer algo que tinha me prometido: escutar atentamente os discos lançados em 2017, e falar um pouco sobre alguns deles.
Começando pelo magnífico disco de estréia da compositora, pianista e cantora Pamelli Marafon , chamado Ponteiros. Uma obra inusitada que apresenta uma criadora inquieta, possuidora do ofício de musicista com notável domínio do piano, dos arranjos , das harmonias intrincadas e inventivas, e de melodias às vezes simples, às vezes cromáticas, mas sempre cuidadosas. Percebe-se em Pamelli a filiação àquele inominado gênero de cancionistas, que , embora munidos até os dentes de idéias puramente musicais, conseguem achar o fio condutor da letra como norte tanto para a melodia quanto para a harmonia.
Pamelli tem uma assinatura tanto como letrista quanto como compositora, e a relação dos dois vetores é muito consistente, com a invenção formal como tônica das 10 faixas, 9 canções e um choro instrumental altamente intrincado que prova a veia de arquiteta musical da paulistana que vive em Minas.
"Viver é se perder no emaranhado de você no sincopado de um desejo arbitrário" , como diz a performática " Eu Tenho Problemas com Regras" , alternando um roquinho 6/8 com um baião que, na aceleração da melodia, faz com que a conclusão de uma reflexão que tende ao lirismo se resolva numa condensação de sentido que figura, de algum modo , como resposta às indagações de inadequação do seu eu lírico.
Tango da Lua seja talvez a canção mais redonda, mais "convencional", com melodia envolvente, e sessões mais ortodoxas de A, B, introdução, coda, etc. " Onda de azar mais sete vida / por seis vidas procurei você / nem na sete encontrei
dou risada na oitava sendo a mais feliz escrava do meu reino coração" diz a letra que projeta um sonho lúdico um sentimento romântico, tão raro hoje entre cantautoras : "num atalho do caminho lá pra irará / tinha o bosque solidão e você o anjo amigo que roubou minha alma e coração meu canto meu sonhar
fez da vida um samba bom e me deu anel de vidro pra sonhar" .
faz rima de dor com alegria pra poder continuar".
A canção Água, que fecha o álbum, me lembra do conceito de "Think About Your Troubles", de Harry Nilsson, que fala do ciclo alimentar; Pamelli fecha o ciclo da água sem poupar seus usos mais sujos, se distanciando de qualquer possível idealização purista da mãe água. O refrão, que podia ser cantado mais vezes, reza : " água lava a sujeira do lugar / mas quem que vai lavar água do mar? " .
A sonoridade do disco tende à canção de câmara, tão profícua no que chamo de Eldorado Subterrâneo da Canção Mineira, especialmente no trabalho de nomes como Rafael Martini, Rafael Macedo, Alexandre Andrés, com a preferência pelas madeiras, flautas, clarinetes, também acordeons, sempre com o piano de Pamelli para dar o fio, e com as cordas preciosas do parceiro e arranjador Tabajara Belo, que arrebenta nos violões, guitarras e bandolins e arranjos. A bateria e a percussão são escassas no disco, privilegiando os sutis mosaicos das alturas.
Acho lindo mesmo que uma cantora e compositora arrojada como Pamelli exista assim, meio que silenciosamente no Brasil, fazendo um disco como esse meio que sem ser notado. Porque o que ela revela é uma grande inventividade justamente no âmago do que tem sido sistematicamente boicotado na cultura musical do Brasil: autenticidade e sinceridade nas letras, criatividade na música, fruto de um mergulho profundo nesse limbo que é fazer canção com esse grau de artesania, em português. O piano dela fala muito , e não a deixa mentir !
Nota do Editor:
Posto aqui também vídeos com algumas das canções que figuram no disco,
com outras roupagens.
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