Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

8 de dezembro de 2017

Equilíbrio e esperança

Mesmo onde aparentemente não, a cultura diz muita coisa. O uso do sarcasmo (e outros efeitos de linguagem) para nomear operações da Polícia Federal denota a transformação de processos internos que deveriam ser conduzidos na maior sobriedade em parte de um espetáculo armado cuja finalidade certamente vai além de apurar o que quer que seja, assumindo conotação política evidente a qualquer observador mais atento. Já disse isso antes. Agora volto ao tema diante desse circo armado pra cima da UFMG, com condução coercitiva do reitor, de sua vice, e outros professores da instituição, dia 06/12 último. Usar como nome "Esperança equilibrista", trecho da canção de João e Aldir, verdadeiro hino da Anistia, com patente escárnio sobre a nossa História, sobre a digna trajetória dos perseguidos políticos, e dos próprios autores da canção, denota exatamente a forma pouco comprometida com o Estado Democrático de Direito que a PF tem adotado, e não é de hoje. Não estou contra qualquer investigação, desde que seja feita dentro dos parâmetros legais. A defesa da Universidade Pública não é incompatível com a defesa da Justiça. Pelo contrário. Não há como construir Universidade, e de todo NADA público, sem Justiça. Não devemos confundir pessoas e instituições, e muito menos um órgão policial do Estado pode fazê-lo. O abuso desse expediente de condução coercitiva tem sido constante. A falta de cuidado com a forma como se investiga, considerando inclusive a presunção de inocência, tem consequências trágicas. É uma barbárie que o suicídio do Cancellier não baste. Nossa 'infraestrutura' jurídica toda ruiu e poucas são as vozes que se elevam para alertar sobre esses abusos, pois interesses políticos os mais reles estão à frente de tudo. Um país em que os próprios poderes constituídos, os representantes eleitos e/ou investidos dos 3 poderes da república, atuam de caso pensado enquanto comparsas para destroçar e privatizar o ensino, com a conivência ou participação ativa de uma parte considerável da população mais escolarizada pode ser outra coisa que não o que já somos?  Não há essa oposição binária entre impunidade e autoridade sem limite. Investigar sem responsabilidade e sem compromisso com os direitos e procedimentos adequados não tratará o fim da corrupção. Já trouxe as trevas, e com ela a caça seletiva às bruxas.

No mesmo dia realizamos um ato junto à reitoria da UFMG em repúdio à forma com que a PF conduziu coercitivamente os colegas, entre eles os atuais reitor e vice-reitora, desrespeitando os procedimentos devidos e transformando sua ação em espetáculo quando deveria ser realizada com a sobriedade que a gravidade das acusações exige. Comentei com vários colegas que estava certo que causaria indignação a João Bosco e Aldir essa apropriação desrespeitosa de sua canção tão emblemática e representativa para nossa história. As reações de ambos foram justíssimas e imediatas:

"Recebi com indignação a notícia de que a Polícia Federal conduziu coercitivamente o reitor da Universidade Federal de Minas Gerais, Jaime Ramirez, entre outros professores dessa universidade. A ação faz parte da investigação da construção do Memorial da Anistia. Como vem se tornando regra no Brasil, além da coerção desnecessária (ao que consta, não houve pedido prévio, cuja desobediência justificasse a medida), consta ainda que os acusados e seus advogados foram impedidos de ter acesso ao próprio processo, e alguns deles nem sequer sabiam se eram levados como testemunha ou suspeitos. O conjunto dessas medidas fere os princípios elementares do devido processo legal. É uma violência à cidadania.
Isso seria motivo suficiente para minha indignação. Mas a operação da PF me toca de modo mais direto, pois foi batizada de “Esperança equilibrista”, em alusão à canção que Aldir Blanc e eu fizemos em honra a todos os que lutaram contra a ditadura brasileira. Essa canção foi e permanece sendo, na memória coletiva do país, um hino à liberdade e à luta pela retomada do processo democrático. Não autorizo, politicamente, o uso dessa canção por quem trai seu desejo fundamental.
Resta ainda um ponto. Há indícios que me levam a ver nessas medidas violentas um ato de ataque à universidade pública. Isso, num momento em que a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, estado onde moro, definha por conta de crimes cometidos por gestores públicos, e o ensino superior gratuito sofre ataques de grandes instituições (alinhadas a uma visão mais plutocrata do que democrática). Fica aqui portanto também a minha defesa veemente da universidade pública, espaço fundamental para a promoção de igualdades na sociedade brasileira. É essa a esperança equilibrista que tem que continuar."
João Bosco

07/12/2017


"Depois da operação 'Esperança Equilibrista', João Bosco e eu esperamos que a Polícia Federal prenda também Temereca, Mineirinho Trilhão157, que foi ajudado pela Dra. Carmen Lúcia, e o resto, aquela escória do Quadrilhão que impera, impune, no Plabaixo. 

A nova Operação se chamaria 'De frente pros crimes' dos que sempre ficam impunes, com ajudinhas de Gilmares, Moros, PFs, etc.

Também esperamos que ninguém se suicide ou seja suicidado nessas operações, o que já é marca registrada das forças repressoras que servem aos direitistas do Brasil." 
Aldir Blanc, 07.12.2017


Tudo que gira em torno dessa apropriação indébita e escarnecedora sinalizam, a despeito, a centralidade da canção para a cultura e a vida social brasileiras. A repercussão da escolha dessa nomeação produz simultaneamente um embate simbólico inevitável e uma oportunidade para pensar a crise porque passamos. Nesse sentido, de imediato corroboro o que disse a colega Miriam Hermeto, do Depto. de História da UFMG na entrevista que segue:





O Bêbado e a Equilibrista (João Bosco/Aldir Blanc)

Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos

A lua, tal qual a dona do bordel,
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

E nuvens, lá no mata-borrão do céu,
Chupavam manchas torturadas, que sufoco!
Louco, o bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil pra noite do Brasil.
Meu Brasil

Que sonha com a volta do irmão do Henfil.
Com tanta gente que partiu num rabo de foguete.
Chora a nossa pátria mãe gentil,
Choram Marias e Clarisses no solo do Brasil.

Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente, a esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se machucar

Azar, a esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar...

Pra encerra, ouçamos a canção na interpretação consagrada da grande Elis Regina:


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