Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

12 de fevereiro de 2018

Está Extinta a Escravidão? Samba e História na Sapucaí


Eu tinha sacado alguns sambas-enredo e sentido que o desfile das escolas do Rio desse ano seria diferente, de enfrentamento. Se de um lado não cabe a desmedida visão de ver aí uma redenção infalível que vá imediatamente mudar o cenário do nosso dia a dia, também não se pode menosprezar a força simbólica que tais manifestações retém. 

Vi o início do desfile da Paraíso do Tuiuti e senti firmeza. Mas Morfeu foi mais forte. Agora estou assistindo ao VT. Tá dando gosto. Descubro que o colega historiador Léo Morais foi assistente do carnavalesco Jack Vasconcelos e depois destaque como 'Presidente Vampiro'. Para uma síntese, ver a matéria, aqui, e as fotos

Tantas vezes houve sambas com enredos grandiloquentes e pitorescos, que motivaram o irônico apelido se 'samba do criolo doido' [já fiz uma postagem tratando do assunto, aqui], mas com o tempo uma maior acuidade historiográfica começou a se fazer presente. Eis aí um belo exemplo, um samba-enredo competente, um desfile de encher os olhos e ainda dar o recado. Eu não sou estudioso do carnaval e nem crítico de desfile de escola de samba, mas dentro das minhas limitações me pareceu tudo muito coeso, os temas das alas, a tradução visual do enredo, a força musical do samba puxado pelo trio Nino do Milênio, Celsinho Moddy e Grazi Brasil, que como acabei de apurar tem entre seus compositores Moacyr Luz, grande craque [aliás, covardemente assaltado antes do desfile, aqui]. Vale dar uma olhada no depoimento dos compositores [aqui] . Selecionei um trecho do que disse um deles, Aníbal Leonardo:

"A escravidão é a forma de opressão mais vil que existe, que vem desde as formas mais antigas de organização da sociedade. No caso do Brasil, isso se reflete nas enormes desigualdades que vivemos até hoje, e por isso o samba bate tão forte no seio do nosso povo, pois a exploração abusiva do homem pelo homem se dá inclusive fora da escravidão".

Acho importante ainda trazer impressões dos componentes da escola sobre o samba, que nitidamente empolgou a todos [aqui]. Ariolana Conceição, moradora da comunidade do Tuiuti e membro da velha guarda da escola, disse que: 

– O samba é maravilhoso. Só tenho ouvido elogios do nosso samba-enredo. As pessoas dizem que é o melhor, e é mesmo! O melhor é que ele exalta a nossa raça, as nossas origens conta a nossa história, do negro e do Brasil. Retrata a Africa em poesia, tem ritmo, tem balanço, tem melodia e tem emoção acima de tudo. Ficará para história como outros sambas-enredos.  


Lembro da história da ave atirar seus filhotes em queda, para eles aprenderem a voar. Talvez entre as fábulas colhidas por Da Vinci, narrada no primeiro livro que definitivamente amei na vida.Esse pensamento escapa (ou decola?) agora enquanto penso no enredo da Paraíso (olha pra cima, de novo) do Tuiuti (um pássaro!). Será um grande desconhecimento da história dos sambas-enredo se agora alguém se dá conta de seu teor político, seu engajamento nas questões mais urgentes e também nos dilemas mais profundos da nossa existência enquanto brasileiros. Não, não está aí novidade alguma.
Então onde está o voo do Tuiuti?
Me arrisco a considerar que na forma com que articulou o conhecimento do passado com a interpretação do presente, e simultaneamente a tradição de sambas-enredo com alguma inovação. O samba parece que deu nó em pingo d'água, porque consegue unir os macetes formais costumeiros do samba-enredo, como os refrões poderosos, as rimas internas, e o inventário do vocabulário e do imaginário afro-brasileiros com sacadas atípicas que lhe dão ares contemporâneos, como o elaborado jogo poético com as cores, imagens rebuscadas como a da lua atordoada, mas a sofisticação é dosada de maneira a não torná-lo pedante. Ao fazer a leitura crítica do fenômeno da escravidão, incluindo aí a sua abolição no Brasil, consegue dialogar com a tradição dos enredos sobre a História do país mas dá um salto qualitativo porque está afinado a descobertas historiográficas que costumam passar longe da avenida uma vez que dificultam o ato de exaltar. Ao descortinar o engodo da Abolição, tão celebrada em tantos carnavais, o enredo efetiva o laço com o presente enunciado no título em forma de pergunta. Irresistível a analogia que tenho a fazer: eis aí um Samba-Problema, indo ao encontro do brado metodológico da Escola dos Annales. Certamente os historiadores professores levarão esse samba e o desfile para as salas de aula, do fundamental ao superior, e terão aí um rico material para discutir o tema da escravidão, sua historiografia e seus sentidos no tempo presente. É digno de nota que a Escola conseguiu esse feito sem recair em anacronismos equivocados, ao apresentar uma leitura crítica sob a luz de conhecimento apurado sobre o fenômeno da escravidão para pensar sobre as condições de trabalho ao longo da História e a atualidade do "cativeiro social". No documento chamado Livro Abre-Alas (que é uma espécie de catálogo com os projetos dos desfiles das escolas) consta a bibliografia utilizada pelo carnavalesco e seus auxiliares [aqui].
Ao pensar a escravidão em sua historicidade, ainda, o enredo desdobra o que a letra do samba só insinua, dando perspectiva para refletirmos sobre a exploração do trabalho humano em diferentes contextos. Talvez haja inclusive um eco, intuitivo ou não, da dialética hegeliana do senhor e do escravo, na constatação de que a vida lamenta por ambos. E aí, um trunfo quiçá escondido, o ás na manga, um zap no identitarismo, porque a interpelação não se dirige apenas aos negros escravizados historicamente no Brasil, mas aos escravizados de todas as cores, tempos e lugares, o "irmão de olho claro ou da Guiné", todos de "sangue avermelhado". Ao atualizar o sentido da luta contra a escravidão como luta de libertação de todas as formas de exploração do trabalho, o Tuiuti canta fora da gaiola do cativeiro social e alça voo diante do precipício.

O desfile



A letra do samba, de  Cláudio Russo / Anibal / Jurandir / Moacyr Luz / Zezé:

Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?
G.R.E.S Paraíso do Tuiuti

Irmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o seu valor? Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz

Eu fui mandiga, cambinda, haussá
Fui um Rei Egbá preso na corrente
Sofri nos braços de um capataz
Morri nos canaviais onde se plantava gente

Ê Calunga, ê! Ê Calunga!
Preto velho me contou, preto velho me contou
Onde mora a senhora liberdade
Não tem ferro nem feitor

Amparo do Rosário ao negro benedito
Um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de cor

E assim quando a lei foi assinada
Uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra bondade cruel

Meu Deus! Meu Deus!
Seu eu chorar não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social

Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti o quilombo da favela
É sentinela da libertação




4 comentários:

  1. Da querida colega Glaura Lucas, professora da Escola de Música da UFMG: Muito bom o texto, Luiz, agradeço. Um dado interessante é que o samba começa em tonalidade menor reforçando a gravidade da letra, um artifício tão enraizado socialmente que funciona e é muito usado. Os sambas-enredos da Beija-Flor e da Mocidade também são menores. Viu as letras? Numa escuta rápida, no samba da Tuiuti o refrão libertador: 'Não sou escravo de nenhum senhor', é maior!

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  2. Estou de Alma lavada pela Tuiuti! Nos meus 80 anos, de luta e fé, digo e canto/ SOMOS TODOS TUITUTI! muito obrigada!

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