
Antes de qualquer coisa deixo bem claro ao meu leitor que não sou versado em boa parte do repertório do funk, um gênero que não me atrai e do qual conheço basicamente aquilo que circula pelas cadeias midiáticas ou que eventualmente sou levado a ouvir na condição de pesquisador. Estarei a partir daí sob a exigência de não deixar qualquer antipatia implícita ou explícita nublar o teor dos meus argumentos. Há portanto pontos cegos sobre os quais eventualmente algum leitor poderá esclarecer e até encontrar por eles inconsistências no que vem abaixo. Enfatizo também que isso aqui não é um tribunal de julgamento de um gênero musical como um todo, e sim uma simultânea crítica da crítica e crítica do objeto da crítica, portanto, dessa canção especificamente.
Começo do começo, ou seja, do título da crítica: Marina faz história ao reproduzir códigos e linguajar do funk com o imortal Cicero. Achei extremamente exagerado. Como historiador eu poderia adentrar numa enorme digressão sobre o significado modernamente fetichista da expressão "fazer história". Tentarei evitá-la. Trata-se um clichê conveniente que serve para rapidamente afirmar a importância de algo a partir da percepção linear sobre o tempo. Vou me abster de elencar toda a historiografia do século XX dedicada a mostrar que qualquer um de nós, notório ou anônimo, "faz história". A expressão tem uso corrente e fácil quando se trata de um objeto estético qualquer, e nesse sentido fazer história seria inovar, fazer o que ainda não foi feito, surpreender. Ora, justo o primeiro parágrafo do texto contradiz seu título. Nada mais banal do que 'n' artistas brasileiros que não pertencem ao universo imediato do funk praticarem o diálogo com o mesmo. Não tenho receio em cravar, assim, que esse funk não 'faz história' no sentido em que o Mauro reivindica. Nem mesmo pelo argumento mais que furado de assinalar a erudição do "imortal" Antonio Cicero. Ora, antes de mais nada é curioso reivindicar numa crítica que pretende questionar uma "elite cultural" [as viúvas da MPB, assunto que ainda retomarei] tomando como crivo uma instância caquética (ABL) que esta mesma elite não tem o costume de reconhecer. Acredito que não preciso provar que Chico Buarque ou Caetano Veloso - pra ficar em dois grandes nomes do panteão da MPB - teriam méritos suficientes para figurar entre 'imortais' se fosse o caso, os dois já buliram com o funk e nem por isso fizeram história. Também não causa choque nenhum o encontro entre a Academia e o Funk a essa altura. Há teses e dissertações de sobra sobre o tema, e já faz tempo que a Popuzuda virou 'professora' de filosofia. Marina, por outro lado, não faz nada de novo, nada "de/mais" nesse flerte, afinal sua carreira navega nas ondas do pop desde sempre, como o próprio texto mostra muito bem. Não vai aqui nenhuma intenção de jogá-la na vala comum - onde não está - mas simplesmente de relativizar o peso da sofisticação (eu nem colocaria aspas) no todo de sua obra. Trata-se de uma crítica, e não de "jogar pedra". Aliás, sintomático que a resenha venha com esse contra-ataque preventivo. Numa retórica equivocada, pretende antecipar que a crítica que venha seja enquadrada como reação impertinente, careta. Careta é a tentativa de vedar a crítica a priori.
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Como também dispensável, voltando à crítica, o queixume sobre uma suposta "elite cultural" que pretende impor os parâmetros de qualidade da MPB à toda apreciação musical. Além de lugar comum, acho desnecessária por dois motivos. O primeiro é que essa suposta elite, se existe, não apita nada, não tem influência sensível no que toca nas grandes mídias e portais das redes, não orienta a produção mais do que no alcance do pequeno nicho que lhe presta atenção. Estou certo que a Marina não precisa se preocupar em nada com supostos detratores, desempoderados que são. Segundo, e muito mais sério, é um desserviço apontar as baterias a quem já perdeu hegemonia no mercado (e daí?) e nunca pretendeu ser o único parâmetro. Atribuir a pecha de 'viúvas' a seus apreciadores e praticantes, nos quais me incluo duplamente e sem o menor constrangimento, é um grande equívoco. A MPB está vivíssima, provavelmente mais como bichos livres nas matas do Brasil do que como animais de zoológico. Acho uma tremenda falta de compreensão sobre o que representa a MPB na história da nossa música popular esse tipo de comentário. Como escrevi nas notas a O pós-futuro do pós-brasil, em esforço combinado com o crítico Túlio Ceci Villaça, nos anos 1970 até a subversiva e includente Tropicália "passou de supernova a anã branca, foi inevitavelmente atraída pelo campo gravitacional da galáxia MPB em expansão"[aqui o artigo completo]. Diante da responsabilidade do crítico com a história e com a formação dos ouvintes me sinto obrigado a ressaltar que Chico e Caetano, "imortais" da MPB, chegaram antes de Marina e Antonio Cícero.Seria mais adequado convidar os interessados em funk em procurar saber disso. Não acho que funkeiros tenham que pedir a bênção nem nada do gênero. É até normal que rejeitem quem vem antes, eis aí uma das mais manjadas estratégias de aparecer no campo da arte, tanto quanto se afirmar como continuador, e, desde a modernidade, bem mais eficaz. Mas pode ser um trabalho válido da crítica justamente questionar toda forma de "guetificação" da criação e da audição, e não só, num indisfarçável paternalismo, a que supostamente é praticada pela tal "elite cultural". Identifico em muitos músicos que reverenciam a MPB uma atitude bem mais aberta ao que está fora do seu escopo do que em outros gêneros. Bater nela com esse pau parece muito clichê, e lamentavelmente ganha o aplauso fácil de desavisados que recaem, eles sim, num binarismo condenável.
Numa uma última volta crítica, digamos que eu não esteja percebendo (e nesse sentido o Mauro também não teria percebido) que tudo isso, como a coxinha, tem uma outra massa, envolta na capa. Haveria aí uma crítica à massificação, à fórmula pronta, ao entupir o ouvinte com os clichês? A provocação ao consumo fácil? Talvez a obviedade ululante da letra permitisse essa leitura. Mas aí não fazem sentido as menções aos elogios de Marina direcionados a Anitta, por exemplo. Parece mais uma tentativa sincera, e mal sucedida, de produzir um funk irônico em relação aos coxinhas, sem caninos suficientes para dar a dentada, tornando-se assim uma bem comportada provocação de supermercado.
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