Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

20 de março de 2018

Bolacha completa - Elis (1966)

Ouvi no almoço ao disco "Elis" que a pimentinha gravou em 1966. Baita disco, perfeito da seleção de repertório à performance dela e de quem tocou no disco, além dos arranjos do Chiquinho de Moraes, etc. É notável que Elis fez ali um retrato muito completo do cenário da MPB naquele momento, gravando Gil, Caetano, Chico, Milton, Edu (incluindo duas parcerias com Torquato), irmãos Vale , Francis Hime (com Vinícius), mais um tributo à velha guarda com Carinhoso dos grandes Pixinguinha e João de Barro. Se de um lado essa fotografia ajuda a compreender o impacto posterior da explosão tropicalista , abrindo novas frentes para a criação na música brasileira, de outro  também abre os ouvidos para a evidências de que ela na prática não foi toda a ruptura que alardeou no discurso, e que outros caminhos inovadores que já estavam sendo igualmente abertos acabariam por criar um centro de gravidade que foi mais denso que qualquer movimento de vanguarda em particular, o que ajuda a explicar como a Tropicália acabou reabsorvida pela galáxia MPB nos anos 1970. 

É uma questão que venho trabalhando faz tempo mas ainda estou refinando meus argumentos. Quando publiquei “Vou cantar para ver se vai valer”: a configuração da categoria MPB no repertório das intérpretes (1964-1967) [um resumo do artigo aqui no blog] [acesso ao texto completo] expus algumas observações desde uma parte da minha tese, baseando-me no estudo dos repertórios e gravações de discos de intérpretes como Nara Leão, Flora Purim e claro, Elis. Tem um trechinho que toca justamente neste disco aqui, e insiro abaixo:

Vale lembrar que Edu ainda dividiria um disco com Maria Bethânia pelo selo Elenco em 1966, trazendo, entre outras canções, Candeias , que Gal gravaria em seu disco de estreia, Veleiro e Pra dizer adeus (ambas com Torquato Neto) que Elis gravaria no mesmo ano em seu LP seguinte, Elis. Neste mesmo disco, a cantora gravou composições de Caetano e Gil. Exatamente as duas primeiras - Roda (G.Gil/ João Augusto) e Samba em paz (C. Veloso) exaltam o povo e posicionam-se favoravelmente a uma transformação social da qual o próprio samba - como expressão síntese do “popular” – é protagonista. Diz a canção de Caetano: “O samba vai vencer/ quando o povo perceber/ que é o dono da jogada”. Em tom de desafio, Roda cobra engajamento e preconiza a justiça social: “(...) Quero ver quem vai ficar/ quero ver quem vai sair (...) Se lá embaixo há igualdade/ Aqui em cima há de haver (...)”.

São canções marcantes das quais vale lembrar porque muitas vezes esse engajamento político no mesmo esquema de tantas canções ais quais depois a Tropicália se opôs costumam ser negligenciadas nas apreciações sobre as obras e trajetórias dos compositores. Mas para mim a canção que se sobressai em termos de inovação musical e poética é Lunik 9 de Gil, com suas várias partes e um discurso embaralhando o técnico/acadêmico, o filosófico, o noticiário de jornal,  e o tradicional comentário das ruas que foi depois se tornando uma das marcas registradas da autoria híbrida de Gil.


Lunik 9 
Poetas, seresteiros, namorados, correi 
É chegada a hora de escrever e cantar 
Talvez as derradeiras noites de luar 

Momento histórico, simples resultado do desenvolvimento da ciência viva 
Afirmação do homem normal, gradativa sobre o universo natural 
Sei lá que mais 
Ah, sim! Os místicos também profetizando em tudo o fim do mundo 
E em tudo o início dos tempos do além 
Em cada consciência, em todos os confins 
Da nova guerra ouvem-se os clarins 

Guerra diferente das tradicionais, guerra de astronautas nos espaços siderais 
E tudo isso em meio às discussões, 
muitos palpites, mil opiniões 
Um fato só já existe que ninguém pode negar, 
7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, já! 

E lá se foi o homem conquistar os mundos lá se foi 
Lá se foi buscando a esperança que aqui já se foi 
Nos jornais, manchetes, sensação, reportagens, fotos, conclusão: 

A lua foi alcançada afinal, muito bem, confesso que estou contente também 
A mim me resta disso tudo uma tristeza só 
Talvez não tenha mais luar pra clarear minha canção 
O que será do verso sem luar? 

O que será do mar, da flor, do violão? 

Tenho pensado tanto, mas nem sei 

Poetas, seresteiros, namorados, correi 
É chegada a hora de escrever e cantar 
Talvez as derradeiras noites de luar

Para ouvir o álbum completo: aqui.


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