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Neste último sábado tivemos, em horários praticamente simultâneos, dois lançamentos de artistas da mais alta estirpe do cenário musical dessas Minas, o que obviamente é dito sem desconsiderar a dimensão nacional e universal de seus trabalhos. Falo de "Titane canta Elomar na estrada das areias de ouro" no Palácio das Artes e "O anjo na varanda", de Tavinho Moura, no no Bar do Clube da Esquina, ambos em Belo Horizonte. Num daqueles dias em que a gente gostaria de se dividir em dois, compareci ao belíssimo show de Titane e não pude estar no de Tavinho, um lançamento de grande importância. O que já saquei do disco achei de alto gabarito, aliás falar isso do trabalho de Tavinho Moura é chover no molhado.
Aliás, para não ficar redundante, cito as resenhas feitas por meus parceiros Makely Ka para o disco de Titane e Pablo Castro para o show e disco de Tavinho, ambas disponíveis na página de Facebook deste mesmo blog. Obviamente, sugiro que aproveitem o ensejo para conhecer o trabalho de ambos, cuja qualidade os leitores que ainda não conhecem facilmente constatarão. Vamos a elas:
"A proposta de gravar um álbum com a obra do compositor preenche uma lacuna no nosso cancioneiro e se justifica pelo ineditismo do registro de um conjunto de suas canções com forte herança ibérica numa voz feminina de tradição popular. Na linhagem trovadoresca que remete aos provençais e galego-portugueses, Titane estabelece um arco atemporal atualizando a força ancestral dessa obra contemporânea no universo cancional brasileiro. A obra de Elomar é um portal entre dois universos, dois mundos distintos, uma fenda no espaço-tempo para penetrar em um imaginário mítico-poético atemporal. A localização geográfica habitada por seus personagens pode ser visualizada facilmente nos mapas, na divisa entre o norte de Minas e o sudeste da Bahia, mas através do prisma elomariano tudo parece transmudado e se desvela um outro universo.
Titane por sua vez sempre pautou sua carreira pelas escolhas rigorosas, do repertório aos arranjos, tudo sempre foi feito de forma a desafiar os limites de sua interpretação, sustentada por uma voz afiada como lâmina. Seu caminho até aqui é único e seus passos sempre foram firmes a ponto de transformá-la numa das mais importantes intérpretes brasileiras. Ela agora se embrenha nas estradas das areias de ouro, no sertão profundo, provavelmente um de seus maiores desafios, trazendo de sua viagem ecos de outrora, visagens do futuro, regalos do presente.
Titane, em trinta anos de carreira ainda não havia se dedicado a um único compositor. Da mesma forma não há registro fonográfico de outra cantora que tenha realizado um trabalho a partir de um conjunto de canções selecionadas da obra de Elomar. É um encontro especial que celebra outros encontros.
Entre eles, o encontro de Titane e Hudson Lacerda, violonista de grande precisão técnica, compositor erudito impregnado pela música popular brasileira, Hudson é um dos responsáveis pela transcrição de partituras do rigoroso Cancioneiro de Elomar Figueira Mello, obra fundamental de registro com um recorte específico e imprescindível da produção elomariana.
Celebra ainda o encontro do erudito com o popular em uma perspectiva subliminar ao optar por um formato acústico que remete tanto à sofisticação das formações camerísticas quanto à simplicidade de um recital de música popular, destacando a arquitetura dos arranjos já intrínsecos às composições e valorizando a imponência da voz em estado bruto.
Cruzando referências dos negros trazidos para trabalhar no garimpo do ouro e do diamante no Sudeste com a herança hibérica disseminada pelos europeus no Nordeste brasileiro, o encontro da cantora mineira da cidade de Oliveira e do compositor baiano de Vitória da Conquista promove uma aproximação de universos diferentes mas complementares, do ancestral com o contemporâneo, do sertão com o cerrado." Por Makely Ka
Sobre o show em si, acrescento que a performance segura de Titane, sempre em contato direto com a terra e encantando o público com a presença cênica e a força de sua voz, completou-se com a poderosa inserção de trecho do Dom Quixote de Cervantes tratando da condição feminina, como a própria cantora explica nessa boa matéria do Estado de Minas. O desempenho dos músicos que lha ladearam no palco foi impecável, e ela gentilmente reservou a cada um uma apresentação especial, mais que devida. Foram eles meu Hudson Lacerda (violão)e André Siqueira(bouzouki), meu querido parceiro Kristoff Silva (diretor musical do álbum, que cantou lindamente e percutiu delicadamente marimba), Aloízio Horta (contrabaixo acústico) e Toninho Ferragutti (acordeom). Nesta apresentação no Programa Sr Brasil é possível ter uma pequena provinha:
O mestre Tavinho Moura lançou mais um disco ontem, O Anjo na Varanda, modestamente e discretamente no Bar do Clube da Esquina. Sua obra parece marcenaria musical. Ele faz canções com um frescor, aparentemente sem nenhuma ideia pré-concebida sobre o que deveria ser uma canção, que tipo de letra e forma e mesmo harmonia deve ter uma canção. Ele faz canções como objetos sensíveis, como móveis, quadros, cadeiras, mas nada funcionais , apenas objetos nutridos de uma integridade de uma originalidade acachapantes.Do mesmo modo, para completar a apreciação, encaminho aqui um belo texto de apresentação escrito pelo próprio Tavinho e uma pequena provinha.
O seu canto é rigorosamente atado à melhor prosódia possível, um cuidado metódico. É sempre notável como, em comparação com versões de suas canções na voz de Beto Guedes, um cantor mais animado e emocionado, Tavinho imprime uma sobriedade, um certo comedimento, como para que evitar que a música se superponha à palavra.
Acompanhado pelo insubstituível Beto Lopes , com participações vocais especialíssimas de Mariana Brant, Bárbara Barcellos e Amaranto, Tavinho Moura fez um show bonito, mas o que interessa em sua apresentações é a sua obra, antes de mais nada : trata-se de um criador talhado, mas com temperamento de artesão , com uma profundidade e uma convicção que não dá espaço para qualquer tipo de exagero ou afetação.
Eu aconselho vocês ouvirem esse disco recém-lançado, mas também toda a obra desse compositor extremamente original que temos. Tavinho é gênio. Por Pablo Castro
Para além dos evidentes laços geográficos, que demonstram a incontestável pujança da música popular feita em nosso estado, no contexto nacional e internacional - e deixo a provocação: vejamos a frequência com que ambos os discos serão lembrados naquelas famigeradas listas de melhores ao final deste 2018 - o que quero ressaltar é essa qualidade compartilhada em ambos e afirmada em tantas obras que integram a história de nossa música popular: o esmero, o apuro, o rebuscamento, a elaboração que perpassa esse grande oceano de canções, arranjos, gravações, interpretações e apresentações. Dentre os grandes fenômenos da história da cultura no século XX certamente poderemos posicionar a explosão das distinções apriorísticas entre as hierarquias socialmente construídas para criar, reproduzir, circular e ouvir música. Não resta dúvida de que o desafio às fronteiras previamente estabelecidas, valor estético consagrado na modernidade, teve nos músicos populares alguns de seus melhores protagonistas (aqui não resisto a uma ponte com a trajetória de Piazzolla, cuja biografia foi alvo de uma recente postagem, mas remeto-me ainda à resenha que escrevi do livro O triunfo da música, de Tim Blanning). Mas se o liquidificador energizado pela indústria fonográfica tritura ingredientes e põe no balcão tantos milkshakes cuja variação de sabor mal esconde sua semelhança, não a livra, definitivamente, das contradições que são necessárias admitir para que uma certa magia ponha em movimento o câmbio dos gostos. Seu sabor de mercadoria não pode descartar a insistência de outros códigos concomitantes, de outras ordens que não lhe são completamente coincidentes, como as que regem o campo das artes (ver Artistas da fome e o valor da bolacha) ou o do trabalho do artesão, com seus modos de fazer, estética e esmero. É um lugar comum dizer que a música popular historicamente foi definitivamente imbricada à fonografia. Mas como historiador tenho o cuidado de notar que a primeira antecede à segunda, e de que na receita que a compõe há traços de fazeres musicais anteriores e contrastantes à própria modernidade, ao capitalismo e seus valores. Há gente que esquece disso. E o esquecimento é um dos grandes males de nosso tempo. Aparece, por exemplo, quando se constitui uma percepção binária sobre o objeto música, através de associações mecânicas entre os sujeitos em seus lugares sociais de origem e a lógica de sua produção e consumo. Criou-se uma espécie de fronteira artificial, felizmente desconhecida pela maioria dos músicos, mas obviamente muito conveniente para a vida dos críticos e também dos tais "influenciadores de rede social", cujas opiniões são tão estereotipadas quanto a do um fantasioso bunker de defensores do bom gosto que pretendem explodir, ignorando que tal já foi feito ao longo do próprio século XX. Uma boa mostra disso se encontra nesta postagem recente, crítica de uma crítica ao último single da cantora Marina Lima. A revolta extemporânea contra o elitismo que pauta tais críticos e de modo geral nuns tantos autointitulados ativistas da cultura, ao desconhecer as rupturas e aproximações materializadas claramente na obra de um Elomar, de um Tavinho, e de resto um sem número de criadores que povoam a grande galáxia de nossa música popular, aparenta ser inclusiva e tolerante, mas é finalmente conformista, paternalista e excludente, pois sua consequência é subestimar as possibilidades de fruição e elaboração daqueles que supõe defender, além de manter canais fechados onde deveria querer abri-los, como eu já havia considerado nessa postagem em comentário a um texto do Hermano Vianna. Este é um esforço em andamento para superar generalizações e relativizações, e nesse sentido as apreciações dos trabalhos de Titane e Tavinho Moura me pareceram ótimos catalizadores de um raciocínio que ainda preciso burilar, mas que essencialmente trata de reconhecer que o esmero não tem classe, o que não equivale nem de longe a desconsiderar a importância da classe como categoria para pensar sobre estética e criação - o mesmo para qualquer outra categoria chave como gênero, etnia, espaço, campo, tempo, etc. - mas sim entender que a limite para sua influência, como apontei anteriormente em A origem de classe na música popular não é o seu ponto final. Na verdade, me parece estratégico para a compreensão da vitalidade das culturas populares reconhecer que o esmero não é um elemento estranho a elas, incorporado num enxerto de erudição, de valores elitistas. É mais lógico reconhecer que ela tem suas próprias maestrias e sofisticações, através das quais muitas pontes foram construídas como podemos constatar através de estudos tão diversos como os de Ariano Suassuna ou de Peter Burke. Eventualmente imperceptíveis ao ouvido academicista de anteontem, mas que paradoxalmente hoje estão inaudíveis para a crítica pós-modernosa. Se queremos entender as hibridações e trânsitos que de fato foram responsáveis pela demolição de barreiras culturais e consequente polinização mútua de tantas expressões que nos movem, é preciso superar essa audição folclorista invertida, que na prática expropria todo o oceano de variedade e qualidades de ouvintes que são convencidos que a poça d'água que lhes é oferecida lhes basta porque é sua, quando na verdade é deles tanto o mar quanto o sertão.
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